Quadrinhos,

Épico espacial

Adaptação fracassada do livro ‘Duna’ para o cinema deu origem a um dos maiores clássicos dos quadrinhos de ficção científica

01mar2022 | Edição #55

Um dos maiores clássicos dos quadrinhos nunca teria existido se não fosse o fracasso de outro projeto audacioso e de proporções titânicas. Incal, escrita pelo cineasta e escritor franco-chileno Alejandro Jodorowsky e brilhantemente ilustrada pelo cultuado quadrinista francês Jean Giraud, conhecido como Moebius, nasceu após o naufrágio da primeira tentativa de levar o clássico da ficção científica Duna, de Frank Herbert, para as telonas.

Muito antes das versões de Denis Villeneuve (2021) e David Lynch (1984), Duna quase virou um filme de doze horas em meados de 1970 pelas mãos de Jodorowsky. Mas, considerado insano demais para os padrões hollywoodianos da época, após dois anos de trabalho e alguns milhões de dólares o projeto foi cancelado. Jodorowsky então decidiu, junto com Moebius, transformar o material na lendária saga em quadrinhos Incal.

Experimental e psicodélica, a hq, que mistura alquimia e tarô em uma trama épica espacial, foi publicada pela primeira vez na badalada revista francesa Metal Hurlant nos anos 80. Anos depois, a aventura ganhou spin-offs com a participação dos desenhistas Zoran Janjetov, da Sérvia, e José Ladrönn, do México. Por ironia, Incal se tornou um clássico e agora vai virar filme. A notícia foi divulgada no final de 2021 pela revista norte-americana Variety e coincidiu com o relançamento da série completa no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim. O terceiro e último volume acaba de sair do forno.

Para os desavisados que decidirem navegar pelas novecentas páginas da trilogia, vale avisar que não se trata de uma história em quadrinhos comum. Pelo contrário, a grandeza e o fascínio que desperta estão ligados a sua complexidade — o que certamente tem a ver com as ideias engenhosas de Jodorowsky para o projeto cinematográfico nunca concluído. O imbróglio é contado em detalhes no documentário Jodorowsky’s Dune (2013), no qual o autor revela que a intenção era expandir a consciência da indústria audiovisual: “Queria fazer um filme que causasse os mesmos efeitos do LSD”.

Para atingir o objetivo, o cineasta chamou nomes estelares da cultura pop e do mundo das artes. A trilha principal ficaria a cargo da banda inglesa Pink Floyd, e no elenco estariam Mick Jagger, Orson Welles, David Carradine e até o pintor surrealista Salvador Dalí. “Não era só fazer um filme. Queria criar algo sagrado, livre, com novas perspectivas, para abrir a mente”, disse Jodorowsky. A bíblia (o projeto de um filme no jargão do audiovisual) de Duna, incluindo um storyboard com mais de 3 mil desenhos de Moebius, foi distribuída a todas as grandes produtoras norte-americanas. Nenhuma embarcou na ideia.

Apesar de “o maior filme jamais realizado” nunca ter saído do papel, críticos de cinema garantem que ele influenciou grandes produções, como Star Wars e Blade Runner. Por sorte, Jodorowsky teve a ideia de também expandir a consciência dos quadrinhos.

Pink Floyd, Mick Jagger, Orson Welles e Salvador Dalí estavam no projeto original do filme

Uma constante em Incal são as múltiplas referências míticas, filosóficas, místicas e literárias. Parte da diversão é encontrá-las. Uma delas é uma versão underground e safada da Cinderela. Rica e sedenta de sexo, a personagem inspirada no clássico conto de fadas contrata os serviços de John Difool, um detetive particular decadente e medíocre, personagem central da trama, para levá-la a uma balada em um inferninho nos submundos esquisitos do planeta onde a saga começa.

Tal como no conto popular, ela precisa sair de cena pontualmente à meia-noite. Mas, insaciável, não consegue desprender-se dos braços de outro personagem curioso da história, Kill “Cara-de-Cão”, uma mistura bizarra de homem e cachorro. Entretanto, a mulher não se transforma em uma abóbora, e sim em uma velhota. Isso porque, na verdade, estava usando uma tecnologia para disfarçar a idade real, um recurso com validade limitada chamado “holomaquiagem”.

Caçado pelo raivoso “Cara-de-Cão”, o detetive se lança por um duto de ventilação. Lá, perseguido por outros seres estranhos, é salvo por um monstro alienígena, que lhe entrega um estranho objeto místico com poder sobre o destino do universo: o Incal. Ao recebê-lo, Difool é lançado em uma jornada iniciática vertiginosa de camadas lisérgicas. Uma aventura regada a ação e elementos típicos da ficção científica, como carros voadores, naves estilizadas, alienígenas bizarros, realidades distópicas, armas siderais e duelos mortais para salvar o universo.

Alucinógenos e tarô

Apesar do combo sci-fi completo para nenhum fã do gênero pôr defeito, a história rapidamente envereda por caminhos absurdos e aleatórios, com muitos questionamentos filosóficos sobre a existência e a alma humanas. Trata-se de um labirinto hermético e ao mesmo tempo livre, cheio de sinais e pistas, que pode deixar perdido o leitor menos familiarizado com a obra.

Um desses momentos é quando o protagonista tenta se comunicar com o objeto de poderes estranhos, que ele pensa ser um pequeno computador. A coisa descamba para algo que lembra mais uma experiência com alucinógenos. Difool se vê fragmentado em quatro partes, e seus pedaços começam a discutir qual deles seria o verdadeiro “eu” do detetive. O trecho parece fazer uma analogia com a sensação de dissolução do ego, comumente relatada em experiências psicodélicas. Jodorowsky já contou em entrevistas conhecer LSD e cogumelos mágicos.

Além das camadas de psicodelia, a estrutura simbólica de Incal está largamente amparada no tarô. Até o sobrenome do protagonista, Difool, é inspirado na carta do baralho esotérico chamada The fool (O louco). Jodorowsky é um especialista no tema — desenvolveu até uma terapia que combina tarô e outras práticas, chamada por ele de psicomagia.

Incal traz elementos de outras fontes místicas. Os capítulos “O que está embaixo” e “O que está no alto” vêm do misterioso texto “A tábua de esmeralda” — atribuído ao egípcio Hermes Trismegisto, suposto criador da alquimia —, em que se lê: “o que está embaixo é como o que está no alto e o que está no alto é como o que está embaixo”. Há também referências à cabala e à numerologia por toda a história.

“Para escrever Incal, procurei antes de tudo apagar a minha capacidade intelectual de definir para me colocar em posição de ‘receber’. De receber a história, diretamente do meu inconsciente”, declara o autor em uma entrevista reproduzida em partes no último volume da série. Cabala, segundo ele, significa “o que é recebido”. “A verdadeira arte é aquela que é recebida. Acho que a aventura de John Difool não poderia ser escrita por um ser humano. Não fui eu que a escrevi.”

Conhecer os antecedentes “contraculturais” de Jodorowsky pode facilitar o trânsito pelo universo caótico de Incal. Antes do lendário projeto de Duna, ele ficou conhecido pelos filmes experimentais, El topo (1970) e A montanha sagrada (1973). Apesar da fama que conquistou como cineasta, no teatro também incomodou muita gente com sua arte provocativa. No México, na década de 60, após a apresentação de Esperando Godot, de Beckett, encenada por atores com deficiências físicas, o público destruiu o teatro.

Na saga literária sideral criada pela dupla Jodorowsky e Moebius, o primeiro volume apresenta um universo caótico, distópico e cheio de planetas esquisitos. Depois, com o desenhista Zoran Janjetov, no segundo livro, Antes do Incal, publicado entre 1988 e 1995, Jodorowsky mostra o passado de John Difool. No último, Incal final, Moebius reassume os desenhos para pôr um fim na história. Mas o ponto final definitivo vem em Depois do Incal, desenhada por José Ladrönn, também no terceiro volume da série.

A edição inclui ainda o livro Os mistérios de Incal, um dossiê minucioso sobre a saga escrito pelos franceses Jean Annestay e Christophe Quillien, com um material farto explicando em detalhes a hq. Além de curiosidades dos bastidores da série, reúne entrevistas e informações sobre os autores e outros artistas. E o mais importante: explicações sobre um bocado de palavras estranhas que saltam por quase todas as páginas da história, como “homeoputas”, “conaptos” e “cublares”. Vale muito para uma legião de fanáticos pela série, e mais ainda para os tantos outros que estão descobrindo agora esse clássico incontestável dos quadrinhos.

Quem escreveu esse texto

Carlos Minuano

Jornalista, escreveu Raul Seixas por trás das canções (BestSeller). 

Matéria publicada na edição impressa #55 em outubro de 2021.