Divulgação Científica,

O abismo vertiginoso

Em linguagem concisa e amigável, o físico italiano Carlo Rovelli faz relato apaixonado do funcionamento da teoria quântica

01jan2022 | Edição #53

“Posso afirmar sem medo que ninguém realmente entende a mecânica quântica.” 

Influenciado ou não pela afirmação debochada de Richard Feynman (1918-88), Nobel de Física que se dedicou ao assunto, Carlo Rovelli evitou a teoria quântica em seus primeiros livros, todos traduzidos para o português: Sete breves lições de física dedica apenas um capítulo ao assunto; A realidade não é o que parece cede espaço considerável à teoria da relatividade, tratada por fim de forma exclusiva em A ordem do tempo. Enfrentar os quanta parecia tarefa dura demais e, depois da última empreitada, Rovelli cogitou parar de escrever. Para nossa sorte, o físico italiano repensou e decidiu encarar “a maior revolução científica dos nossos tempos”, como nos conta nas primeiras páginas de seu livro mais recente.

Como esclarecer para leigos uma teoria que está no centro do que há de mais obscuro na ciência, mas é onde “a física se torna extraordinária”? Saber e explicar não são a mesma coisa, afinal. O autor parece seguir Carl Sagan, que sugeria a seus colegas cientistas não falar com o público em geral do mesmo modo como falavam para seus pares. A linguagem concisa e clara é uma característica de Rovelli e, se na introdução de O abismo vertiginoso, ele põe em dúvida a possibilidade de descrever a teoria quântica, as páginas que seguem são o certificado de seu triunfo.

Descoberta

“Tudo ainda é muito vago e não está claro para mim, mas parece que os elétrons já não se moverão em órbita”, escreve o jovem Werner Heisenberg para seu colega na Universidade de Göttingen, na Alemanha, Wolfgang Pauli, relatando sua pesquisa feita no verão de 1925. “Mas parece…”: os gênios hesitam diante de suas descobertas. Acometido de uma alergia, Heisenberg se isolara em Helgoland, um pequeno arquipélago localizado no mar do Norte, onde se entregou ao problema que obcecava a ele e a seu mestre, o dinamarquês Niels Bohr. 

Bohr estudava as propriedades dos átomos, as pedras fundamentais do universo. Os elétrons, partículas que circundam seu núcleo, se movem em órbitas e ele observava que apenas alguns deles eram precisos em sua trajetória. Elétrons por vezes “saltavam” magicamente entre uma órbita e outra: os saltos quânticos. Heisenberg queria decifrar os motivos desse comportamento e encontrar a força responsável por essa singularidade. 

A descoberta em Helgoland é o ponto de partida para a tese fundamental que rege a teoria quântica e serve de espinha dorsal ao livro de Rovelli. A narrativa alterna entre o testemunho de momentos históricos para a ciência — como os diários em que Heisenberg conversa consigo mesmo, “aturdido só de pensar que agora teria que investigar essa nova riqueza de estrutura matemática que a natureza tão generosamente dispunha diante de mim” — e a explicação da teoria, que se torna acessível aos leitores tão magicamente quanto os saltos quânticos dos elétrons de Bohr.

Nas palavras de Heinsenberg, o objetivo de seu estudo seria “lançar os fundamentos para uma teoria da mecânica quântica baseada exclusivamente em quantidades que em princípio sejam observáveis”. Mestre em transformar ciência em literatura, o italiano sintetiza essa tese assim: “toda realidade é interação”. Para explicar a afirmação, o autor convoca o experimento mental proposto pelo austríaco Erwin Schrödinger em 1935. 

O autor cita o cubismo e o teatro de Pirandello para descrever a fragmentação da realidade 

Um gato é encerrado em uma caixa vedada, dentro da qual há um equipamento e onde um fenômeno quântico tem 50% de probabilidade de acontecer. Caso ocorra, um veneno capaz de matar o gato é liberado. Um observador encontra a caixa e se pergunta se o gato está vivo ou morto. Enquanto a caixa continuar fechada, diz-se que há uma sobreposição quântica. O animal está vivo e morto ao mesmo tempo. Duas situações antagônicas coexistem e são verdadeiras. 

Para descobrir se o animal está vivo ou morto é necessário abrir a caixa e, portanto, no mundo quântico uma observação é capaz de alterar a própria realidade. Essa experiência mental subverte a lógica científica de que existiria uma verdade estática — a partir do verão de 1925, Heisenberg nos ensinou que a natureza passa a se revelar por meio de relações e da probabilidade. São conceitos tão revolucionários que contra eles o ateu Albert Einstein cunhou a célebre frase “Deus não joga dados”. Heisenberg foi condecorado com o prêmio Nobel de Física em 1932 e Schrödinger em 1933; não apenas Deus joga dados como joga de forma honesta. 

Impressiona o esforço de Rovelli em descrever de maneira amigável o universo muitas vezes amedrontador e árido da física. Ao longo das quase duzentas páginas, há uma única equação:

XP – PX = iħ

É a expressão central da teoria quântica, que estabelece a impossibilidade de determinarmos com exatidão a posição (X) e velocidade (P) de um elétron de forma simultânea. Nesse universo subversivo, a ordem dos fatores altera o produto.

“Nossa cultura é tola em separar a ciência da poesia.” Ambas existem a partir de interações entre coisas, entre pessoas. Em A realidade não é o que parece, Rovelli se serve de Dante Alighieri para explicar sua concepção do cosmos. Em O abismo vertiginoso, cita o cubismo e o teatro de Pirandello para descrever a fragmentação da realidade do ponto de vista dos diferentes observadores. Aqui vale lamentar a alteração do título original do livro, Helgoland — um tributo à ilha onde Heisenberg rabiscou a certidão de nascimento da teoria quântica. Se toda realidade é interação, o arquipélago é personagem indissociável dessa história.

Carlo Rovelli não disfarça a empolgação ao escrever. Compara seu sentimento ao ler sobre a origem da teoria quântica com as palavras de Galileu Galilei ao perceber uma regularidade matemática em suas medidas da queda dos corpos sobre um plano inclinado: “Não existe emoção maior que vislumbrar a lei matemática por trás da desordem das aparências”. Os relatos apaixonados sobre a ciência são sempre arrebatadores.

Quem escreveu esse texto

Arthur Mello

É sócio da Livraria Megafauna — Livros no Centro, em São Paulo

Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.