Divulgação Científica,

Florestas abstratas

Ian Stewart perfila 25 indivíduos que contribuíram para o avanço do pensamento matemático

01dez2019 | Edição #29 dez.19/jan.20

Pode-se afirmar que o inglês Ian Stewart é um pop star da divulgação científica — além de homônimo de outro pop star, o pianista que fez parte da formação inicial dos Rolling Stones. Autor de dezenas de livros de ciências, entre teóricos, técnicos e didáticos, Stewart é professor emérito da Universidade de Warwick e um dos mais populares matemáticos da atualidade. Recebeu diversos prêmios por sua contribuição para a popularização da ciência e também se aventurou pela ficção científica. Desbravadores da matemática, por sua vez, é uma obra sobre matemática, e não de matemática.

Publicado originalmente em 2017, o livro reúne 25 perfis de cientistas que contribuíram para avanços inovadores nesse campo. Como toda estrutura organizada em forma de lista, se há quem esteja dentro, pressupõe-se que muitos ficam de fora. Ian Stewart esclarece que não pretendeu estabelecer uma seleção definitiva, e sim pintar um quadro representativo, que fosse ao mesmo tempo diverso em termos de gênero e distribuição geográfica, e abarcasse um arco histórico de mais de 2 mil anos.

No entanto, a “diversidade” da lista final pode ser questionada, conforme veremos a seguir. O resultado parece ter muito da subjetividade do autor na escolha das contribuições que foram fundamentais para o pensamento matemático.

A metáfora do desbravamento, usada no título da edição brasileira, quer explicar o “processo místico” que traz a nova matemática à existência. É o que Stewart defende na introdução: esse processo estaria associado ao desenvolvimento de novas maneiras de pensar — daí viria seu pioneirismo. Os desbravadores sobressaem não por serem “gigantes altos e fortes”, mas por abrirem caminhos enquanto a maioria de nós apenas os segue no “emaranhado matagal que se alastra pela extensa selva”. Desdobra-se daí a ideia de que tais personagens não apenas descobriram coisas que estavam lá: é como se tivessem criado a floresta à medida que seguiam adiante, “como se novas plantas brotassem para a vida no seu rastro”.

Newton e a pedra filosofal

Embora as biografias estejam em ordem quase cronológica, vários capítulos usam o artifício de um vaivém temporal para evidenciar a importância de certas descobertas. É o caso do texto sobre Arquimedes, que se inicia em 1973, quando houve a reprodução de um célebre experimento para destruir navios inimigos com fogo. O relato usa dados da atualidade para dar contexto a episódios ocorridos séculos antes de Cristo, e com leveza volta em seguida ao presente para explicar como as contribuições do cientista grego são fundamentais até hoje para disciplinas como as engenharias naval e civil.

O senso de humor é outro elemento que marca presença no livro de Stewart, como no perfil de Isaac Newton, que teria inventado a “portinhola para gatos” enquanto desenvolvia seu famoso experimento do prisma de vidro no sótão. Sobre o físico inglês, aliás, não falta a menção a suas vinculações com o sobrenatural, incluindo sua busca pela pedra filosofal.

Os detalhes e as curiosidades contribuem para humanizar essas figuras históricas: ficamos sabendo, por exemplo, que Girolamo Cardamo (1501-76), além de um matemático magistral, era viciado em jogo e perdeu toda a fortuna da família; e que Pierre de Fermat (1607-65) podia ser maldoso e gostava de atormentar outros matemáticos apresentando seus resultados como um quebra-cabeça difícil de resolver.

Infelizmente, o livro escorrega em alguns estereótipos, como o do matemático paranoico e excêntrico, que aparece nas histórias de Kurt Gödel (1906-78), cujos teoremas mudaram para sempre toda a visão filosófica da matemática, e de Alan Turing (1912-54), o pai da computação, que se dedicou a decifrar mensagens em código dos inimigos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

Ao mesmo tempo, há um evidente esforço em superar a visão eurocêntrica que ainda domina a literatura que se produz sobre ciência. Existem representantes da China, da Pérsia e da Índia, e babilônios e outros povos do Oriente são mencionados mais de uma vez. O autor reafirma a importância dessas culturas para o que mais tarde se desenvolveu no Iluminismo europeu, e admite que a trajetória da matemática ocidental precisa passar por uma revisão.

Na lista existem apenas três mulheres: a britânica Augusta Ada King, conhecida como Ada Lovelace (1815-52), pioneira na concepção do que resultaria na programação de computadores; a russa Sofia Kovalevskaia (1850-91), que supostamente se interessou por matemática a partir do papel de parede de seu quarto, formado por páginas de um livro sobre cálculo; e a alemã Emmy Noether (1882-1935), que chegou a trabalhar de graça na Universidade de Erlanger, na Alemanha, porque às mulheres não era permitido ocupar cargos acadêmicos remunerados. Stewart reconhece que elas desbravaram duas selvas simultaneamente: a do pensamento matemático e a da sociedade machista. Ao que parece, a segunda ainda é um desafio em diversas áreas do conhecimento científico.

Desbravadores da matemática não pressupõe que seus leitores tenham algum conhecimento prévio sobre matemática. Aí se encontra um dos maiores desafios da divulgação científica: como atrair não especialistas e despertar conexões mesmo entre quem não compartilha dos saberes relativos ao assunto que se divulga? Para Stewart parece ser mais importante que o livro estimule primeiro o desejo de ler sobre as pessoas. A partir daí, ficaria evidente que a matemática, como todas as ciências, é um “constructo mental humano compartilhado” localizado no tempo e no espaço, e capaz de impulsionar o fascínio pelos números, para além dos seres por trás das fórmulas.

Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira

Quem escreveu esse texto

Verônica Soares

É pesquisadora de divulgação científica e  professora de comunicação.

Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.