Divulgação Científica,

Ciência e ausência

Rosa Montero entrelaça suas memórias com os diários de Marie Curie para tratar de perda, luto e da condição feminina

01out2020 | Edição #38 out.2020

“Era 19 de abril de 1906. Estavam juntos havia onze anos. Ele tinha 47; ela, 38. O obituário do Le Journal dizia: ‘Madame Curie seguiu o caixão do marido de braço dado com seu sogro até a sepultura cavada ao pé da taipa […]. Ali permaneceu imóvel um instante, sempre com o olhar fixo e grave.’” Um século depois, em 2009, Rosa Montero sentia esse mesmo vazio com a partida de Pablo Lizcano, seu companheiro por 21 anos, depois de enfrentar um longo tratamento contra o câncer. A dor da ausência é o que conecta as duas mulheres em A ridícula ideia de nunca mais te ver.

Rosa Montero é um dos principais nomes da literatura espanhola contemporânea. Jornalista, nascida em Madri em 1951, publicou dezenas de livros, entre romances e obras de não ficção, e colabora desde 1976 com o jornal El País. Seu trabalho está traduzido para mais de vinte idiomas e recebeu diversas premiações.

A ridícula ideia de nunca mais te ver, seu nono livro publicado no Brasil, trata do luto e é também uma nada óbvia obra de divulgação científica, que humaniza a trajetória de Marie Curie (1867-1934), recorrentemente retratada pelo prisma da excepcionalidade. Nascida na Polônia, Curie foi a primeira mulher a receber um prêmio Nobel e a única pessoa a receber dois deles em áreas distintas das ciências, física e química. A partir da leitura dos diários da cientista, Montero trabalha a ideia de que cientistas não são unicamente seres céticos neutros, objetivos e racionais.

“Fiquei um dia a mais em St. Rémy e não voltei até quarta-feira […]. Queria proporcionar às meninas mais um dia no campo; como pude estar tão equivocada? Foi um dia a menos que vivi contigo”, lamenta Marie em seu diário, que pode ser lido no apêndice da publicação. Embora o texto da orelha o apresente como “inclassificável”, o livro poderia ser categorizado como um registro de memórias. Ao construir pontes entre seu próprio processo de luto e o de Marie Curie, Rosa Montero cria uma narrativa emocionante sobre a carreira da cientista, atravessada por tragédias e alegrias pessoais. Curie se viu sozinha com duas filhas pequenas após a morte prematura de Pierre, atropelado por uma charrete em um dia comum. Sobre as meninas, Montero escreve que “comparar o perfil das duas irmãs — Irène, a filha obediente à autoridade materna, e Ève, a rebelde — equivale a um tratado de várias páginas sobre o que é e o que não é o feminino, e sobre o #lugar e o não #lugardamulher”.

Uma das coisas difíceis de entender é seu silêncio em relação aos problemas que enfrentou por ser mulher

Entre memórias pessoais, interpretações dos diários e embates com outras obras sobre a cientista, Rosa Montero costura hashtags, fotografias de acervo pessoal, imagens históricas dos laboratórios dos Curie e obras de arte, revelando uma sagaz e bem-humorada habilidade para falar de uma grande figura para além da escrita.

Ao refletir sobre a ausência, a obra evoca outras questões da vida doméstica: relações turbulentas entre mães, pais e filhas; expectativas da sociedade; a força do patriarcado que impele mulheres a #honraropai e #fazeroquesedeve. O tom irônico aparece na apropriação das hashtags, mas também no uso de itálico para destacar a sutileza do sexismo: “Obviamente que Marie teve sorte por contar com um marido tão compreensivo”.

De Patti Smith a Lady Gaga

Se o estereótipo da mulher cientista se construiu em uma ideia de “masculinização”, emular uma persona racional, guiada por valores historicamente considerados masculinos — como a objetividade e a neutralidade —, é um mecanismo de defesa e de sobrevivência. Nas fotos de Marie Curie, isso parece se manifestar no semblante sério, nas roupas discretas, em uma aparente falta de vaidade. Montero conta que não conseguiu encontrar nenhuma imagem dela sorrindo. Sobre os tais atributos masculinos, dispara: “Com o tempo, nós mulheres aprendemos que ser como os homens não era exatamente o mais desejável. E, em vez de uma Patti Smith, as garotas de hoje têm uma Lady Gaga, que se veste de homem, de mulher ou de filé-mignon, se lhe der na telha. Muito mais livre”.

“Você se apaixona por elas, elas se apaixonam por você, e quando você as critica, elas choram”, disse Tim Hunt, Nobel de medicina, sobre a presença de mulheres nos laboratórios. “A física foi inventada e construída por homens”, alegou o pesquisador Alessandro Strumia em palestra em 2018 na Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern). Infelizmente, essas frases ainda reverberam com uma força perversa nos corredores dos mais importantes institutos de pesquisa do mundo.

Uma das coisas difíceis de entender sobre Marie Curie é seu silêncio em relação aos problemas que enfrentou por ser mulher. Para tratar disso, Rosa Montero convoca Simone de Beauvoir e seu conceito de “mulheres-álibi” — aquelas que, “depois de triunfar com grandes dificuldades na sociedade machista, eram usadas por essa mesma sociedade para justificar a discriminação; e, assim, seu exemplo voltava-se contra as outras mulheres com a seguinte mensagem: ‘Estão vendo? Ela triunfou porque tem valor, se vocês não conseguem não é por impedimentos sexistas, mas porque não têm valor suficiente’”.

Sabe-se, por exemplo, que a imprensa da época acusou Curie de ser uma destruidora de lares por ter se relacionado com um homem casado. Essa tentativa de macular sua imagem quase lhe custou o segundo Nobel, sobre o qual ela escreveu corajosamente: “O prêmio foi concedido pela descoberta do rádio e do polônio. Creio não haver qualquer relação entre meu trabalho científico e os fatos de minha vida privada”.

Ainda que a autora deixe claro que não está comprometida com os fatos como estaria uma historiadora, o livro é uma sensível porta de entrada para a vida de uma mulher fascinante.

Em um ano que soma centenas de milhares de mortes pela Covid-19, sua leitura é uma forma de ressignificar a devastação emocional da ausência e de sentir Marie Curie viva. “Acontece algo curioso com os mortos queridos, é como se ocorresse uma espécie de possessão. Como se seu morto reencarnasse em você de alguma forma.”

Este texto foi feito com apoio do Instituto Serrapilheira

Quem escreveu esse texto

Verônica Soares

É pesquisadora de divulgação científica e  professora de comunicação.

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.