Divulgação Científica,

Curiosidade animal

Coletânea reúne 97 textos do biólogo e jornalista Fernando Reinach sobre pesquisas e descobertas da ciência relacionada aos seres vivos

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

O que há em comum entre as folhas de lótus e as plantas carnívoras dotadas de um escorregador para mosquitos? São microestruturas antiaderentes que se livram rapidamente de água ou lama, no primeiro caso, ou permitem obter uma boa refeição, no segundo. Descobrir essa engenharia da natureza já é um encantamento por si só, mas ela pode, ainda por cima, dar origem a aplicações tecnológicas como panelas que não grudam. 

O espanto diante da engenhosidade aprimorada pela evolução, que pode ser cooptada para usos utilitários de nossa parte, conduz o olhar do biólogo Fernando Reinach nas crônicas reunidas em Folha de lótus, escorregador de mosquito, seu novo livro. Com uma escrita envolvente que mais parece a de um menino curioso, ele constantemente traça conexões inusitadas e nos coloca no cenário do que a evolução fez de mais inventivo na natureza em termos de comportamento dos animais e até das plantas.

As árvores usam canudinho para beber no solo. Mas se a quantidade de água escassear o sistema colapsa, como quando um canudo não está completamente mergulhado no suco. E, se isso acontecer, não haverá mais suco para se tomar. Cada uma das 97 crônicas, publicadas entre 2010 e 2017 no jornal O Estado de S. Paulo, tem ao fim a referência do artigo científico que lhe serviu de ponto de partida. É a prova de que não se trata de divagações da mente imaginativa desse autor que se põe como personagem da ciência cotidiana. 

Afinal, aranhas não podem ir ao cinema ver filmes em 3D, e não é só porque os óculos são grandes demais e não têm lentes suficientes para a profusão de olhos desses invertebrados. O que acontece é que o sistema que elas usam para captar a luz é diferente daquele usado por vertebrados. Mesmo tapando os olhos laterais e um dos frontais de uma aranha da espécie Hasarius adansoni, deixando apenas um funcional, ela consegue ter noção de profundidade e saltar com precisão em cima de sua presa. Isso se dá graças à disposição em camadas dos sensores de cores distintas, na retina, deixando algumas partes da imagem em foco e outras não. Os óculos 3D, que direcionam a luz em ângulos que permitem a nosso cérebro construir uma imagem tridimensional, não funcionam nesse sistema. 

Os artigos científicos, meio de comunicação entre pesquisadores com linguagem técnica e sisuda, se transformam em conversa

Falando em caçadores eficientes, vegetarianos podem deixar de ter a desculpa da compaixão para sua escolha alimentar: as plantas praticam um sistema sofisticado de comunicação e devem ser levadas a sério! A couve-de-bruxelas, por exemplo, emite um cheiro que atrai vespas até ovos de borboletas depositados em suas folhas. A vespa ganha uma bela refeição e a planta se livra das futuras lagartas que a devorariam. Não contentes em conversar entre si, as couves se comunicam com insetos.

Assim os artigos científicos, o meio de comunicação entre pesquisadores que, com sua linguagem demasiadamente técnica e sisuda, costuma ser praticamente inatingível para não especialistas, se transformam em conversa. E ganham vida, como a possibilidade de acompanhar a caçada de um guepardo em detalhes para entender se esse felino é mesmo o mais rápido dos animais.

O comportamento dos seres vivos é o fio condutor desses textos selecionados, mas ao autor interessam as minúcias. Os mecanismos por trás desses comportamentos. Não é à toa que ele fez carreira científica como bioquímico na Universidade de São Paulo (USP), durante a qual se especializou em compreender a contração muscular. Detalhe do detalhe, completamente fundamental para quem quer se mexer. Também foi um dos coordenadores do projeto de sequenciamento do DNA da bactéria Xylella fastidiosa, causadora de uma doença que causa graves danos à citricultura brasileira. Concluído em 2000, o trabalho é considerado um marco importante no amadurecimento da ciência nacional e vem rendendo frutos ao longo dessas quase duas décadas — muito embora a bactéria ainda esteja longe de vencida. 

Este pequeno currículo não é importante por suas credenciais, mas pelo olhar que denota: compreender o funcionamento dos músculos e a ação de uma bactéria por meio das instruções genéticas que a compõem e das moléculas ativas em sua constituição. E com essas informações aprendemos que o beijo de língua dos beija-flores é a menor e mais rápida bomba da natureza, um primor de engenharia hidráulica.

Percorra o caminho que vai da atmosfera musical para a biomecânica, física, engenharia e a evolução envolvidas na relação entre língua e água

Outro fruto do projeto de sequenciamento genético foi a passagem do cientista para o outro lado, o das empresas de tecnologia. Talvez o próprio afastamento do dia a dia da produção científica tenha ressaltado ainda mais o olhar de menino curioso, já solto das amarras do rigor técnico e acadêmico. 

O distanciamento também acaba causando algumas imprecisões, como chamar ecólogos de ecologistas (são coisas distintas; a profissão de ecólogo é oficialmente reconhecida no Brasil) e salamandras de répteis (são anfíbios). Pequenos deslizes que não chegam a prejudicar o prazer ou a qualidade da leitura, mesmo para esta jornalista bióloga aficionada pelo rigor em comunicar ciência.

As crônicas tratam de plantas e florestas, de insetos e outros bichos, inclusive os humanos. Tratam de mente e de sexo, sempre em um tom coloquial — o que não necessariamente significa simples — e com saltos de associação por vezes vertiginosos. 

Quer saber como o suspiro de uma fã no show do Caetano Veloso transporta o autor a considerações sobre como um gato bebe água? Pois leia Folha de lótus, escorregador de mosquito e percorra o caminho que vai da atmosfera musical para biomecânica, física, engenharia e a evolução envolvidas na relação entre língua e água. 

Cada um dos textos tem pouco mais de duas páginas. Significa que é difícil parar: sempre parece que dá para ler mais um. E continua a parecer, depois que o livro acaba.

Quem escreveu esse texto

Maria Guimarães

Bióloga, escreveu Guia dos jardins de Roberto Burle Marx no Instituto Moreira Salles (IMS).

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.