Divulgação Científica,
Corrida contra o tempo
Um médico e um neurocientista defendem prevenção baseada em mudança de hábitos como forma de lidar com a doença de Alzheimer
29out2018 | Edição #16 out.2018Uma das contrapartidas indesejáveis da conquista de uma vida mais longa são as enfermidades associadas à velhice. A doença de Alzheimer, degenerativa, irreversível e, em grande medida, intratável é uma delas. Sua incidência aumenta conforme o envelhecimento das populações. E, apesar de cada vez mais conhecida, ela não é bem compreendida por ser complexa e delicada — não apenas para o portador, mas para todos à sua volta.
Dois livros recém-lançados são um esforço para desmistificar estereótipos e evidenciar aquilo que vai além da presença de placas e emaranhados no cérebro e da perda progressiva da memória. Os autores se dedicam a aproximar os leitores da perspectiva científica da doença de Alzheimer.
Abordam processos de pesquisa, conceitos, elementos bioquímicos e critérios de diagnóstico. Procuram superar uma leitura fria e abstrata do processo biológico para que seja possível vislumbrar os efeitos reais no cotidiano. Embora desenvolvam questões similares, expressam perspectivas distintas sobre o desenvolvimento científico e as possibilidades de tratamento e cura.
Medicina preventiva
Há quem discorde do diagnóstico sombrio e desolador da atual incapacidade da medicina de impedir o declínio cognitivo do Alzheimer, o que coloca a aceitação e a adaptação às mudanças como única opção. Esse é o caso do médico e pesquisador americano especialista em doenças degenerativas Dale Bredesen. O fim do Alzheimer saiu originalmente em 2017.
O título já antecipa um posicionamento controverso no atual momento das pesquisas científicas e uma contraposição à abordagem médica tradicional. O autor se identifica com o emergente campo da medicina preventiva e integrativa, tendência crítica a concepções e paradigmas predominantes da biomedicina.
Bredesen define a doença de Alzheimer como uma morte em vida, mais temida do que o câncer. Não se trata apenas de uma sentença, mas a certeza de definhar e se esvaziar muito antes de morrer de fato.
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O mal é um revés nos campos da neurociência e da biologia molecular. O autor é pouco complacente com os esforços científicos realizados desde o século 20 para compreender e solucionar esse tipo de demência. O foco nas placas e emaranhados, identificados por Alois Alzheimer (1864-1915) em 1906, teria levado a uma concentração das pesquisas científicas na hipótese amiloide, que pressupõe que o acúmulo de placas de beta-amiloide é o responsável pela destruição das sinapses no cérebro. Portanto, para descobrir um tratamento eficaz seria necessário compreender as etapas de formação dessas placas. Hegemônica, a hipótese amiloide estaria direcionando as pesquisas e os investimentos, dando pouca margem a outras abordagens.
Esse cenário justificaria o relativo fracasso dos testes que tentam encontrar uma única droga que solucione a degeneração. Sem nenhum novo remédio há mais de uma década e com o tímido desempenho das disponíveis, o autor pretende convencer os leitores de que há caminhos alternativos.
Por meio de um breve histórico de descobertas significativas, Bredesen defende que as placas amiloides não são a causa do declínio. Elas são parte de um mecanismo normal e saudável de proteção do cérebro que saiu do controle. É preciso alterar as condições que levam a esse descontrole.
O livro pretende ser um manual para hábitos e intervenções que otimizem o metabolismo a fim de evitar a constância de processos que alteram a produção de sinapses e provocam uma reação de defesa no cérebro — o que, a longo prazo, leva ao desenvolvimento do Alzheimer.
Bredesen defende que é possível não apenas prevenir mas reverter a doença. A estratégia de tratamento depende de uma classificação criada por ele. Seriam três os tipos de Alzheimer: o primeiro, “inflamatório ou quente”, é considerado o que apresenta a melhor resposta. O tipo dois, “atrófico ou frio”, é vinculado a um quadro de baixos níveis hormonais e responde mais lentamente. Esses dois tipos podem ocorrer simultaneamente. O terceiro, “tóxico ou vil”, é provocado pela exposição a compostos tóxicos e tem a pior resposta.
A alimentação sugerida é baseada em hortaliças, carnes em pequenas quantidades diárias, pouco carboidrato e consumo de gorduras insaturadas para promover cetose moderada — processo de acidose que estimula a queima de gordura. Outra medida é a prática de jejum de doze a dezesseis horas para induzir o corpo à autofagia, com a renovação de componentes celulares e o esgotamento da reserva de glicose. Esses são apenas alguns exemplos do que ele propõe.
Também seria importante a prática regular de exercícios físicos para aumentar a cetose, reduzir a resistência à insulina e os níveis de estresse e melhorar a qualidade do sono, fatores críticos no desenvolvimento do Alzheimer. O uso de suplementos é incentivado tanto como forma de otimizar a nutrição quanto de combater diretamente as condições que levam à inflamação crônica e à oxidação.
Há uma resistência ao desenvolvimento de ideias contrárias aos paradigmas atuais da ciência
Grandes enunciados como esse necessitam de evidências proporcionais. As afirmações de Bredesen não são singelas. E os exemplos retirados da própria prática substituem a comprovação por estudos clínicos. O autor destaca que a tentativa de aprovar esse protocolo cientificamente falhou pelo caráter múltiplo da abordagem, que não se adequa ao modelo de monoterapias focadas em um único aspecto do problema, para o qual os testes clínicos foram estabelecidos. Não haveria como testar a eficácia de uma estratégia baseada principalmente na reorganização do estilo de vida na estrutura médico-científica atual.
A obra é uma crítica aos padrões científicos que, limitados por concepções hegemônicas, restringem as possibilidades de investimento em alternativas. Ao longo da apresentação de cada um dos fatores de risco e das respectivas ações a serem implementadas, há uma reivindicação por mudanças na forma de conceber o Alzheimer e de conduzir as pesquisas.
A doença na história
Na mesma linha, a relação entre o ambiente científico e o desenvolvimento de tratamentos é o foco do neurocientista britânico Joseph Jebelli no livro Em busca da memória, publicado no ano passado. O autor combina análise histórica com uma abordagem mais humanizada. Ele demonstra a necessidade de associar os experimentos em laboratório à manifestação real da doença por meio do acompanhamento da trajetória dos pacientes.
Jebelli recria a trajetória do mal de Alzheimer, cuja concepção muda de acordo com as transformações científicas. Da mesma forma que Alois Alzheimer precisou enfrentar a hegemonia da psicanálise em sua época, o avanço na compreensão e no tratamento hoje dependem das concepções em movimento na ciência contemporânea. O autor critica a resistência ao desenvolvimento de ideias contrárias aos paradigmas atuais e considera a diversificação de abordagens vantagem estratégica.
Apesar da crítica, Jebelli é otimista, sobretudo em relação aos avanços da genética. Sua análise se volta, assim como a de Bredesen, para a multiplicidade de fatores que podem influenciar favoravelmente nessa batalha: a qualidade do sono, o aprimoramento da dieta, a prática de exercícios físicos, o treinamento cognitivo.
Jebelli considera a conjuntura favorável à descoberta de uma solução a curto prazo para esta epidemia que devasta o que temos de mais humano: nossa biografia erigida pelas memórias. Seu livro é um alerta de que é preciso reunir esforços para solucionar um processo que diz respeito à existência da humanidade.
Essas leituras nos levam a pensar não na tragédia individual, mas numa condição que nos afeta coletivamente, na medida em que compartilhamos os fatores envolvidos no seu desencadeamento, bem como suas consequências. É notável, também, o encaminhamento para a percepção do Alzheimer não como um problema da velhice, mas como um processo determinado ao longo de toda a vida.
Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.