Drauzio Varella na região do Rio Negro (Divulgação)

Divulgação Científica,

As muitas margens do rio Negro

Com precisão e magia, Drauzio Varella relata paisagens, dramas, histórias locais e a potência do grande afluente do Amazonas

31mar2025

Drauzio Varella está numa maratona de entrevistas. O médico, escritor, divulgador científico (e maratonista de fato) de 81 anos acaba de lançar O sentido das águas: histórias do Rio Negro. Em seu novo livro, ele conta das paisagens e pessoas que encontrou, histórias que viveu e descobertas feitas em suas viagens pelo alto e médio rio Negro, na Amazônia.

Varella percorreu a região amazônica por mais de três décadas, a bordo do barco Escola da Natureza, da Unip (Universidade Paulista), em um projeto para identificar, catalogar e isolar moléculas de espécies vegetais da região que podem ser usadas no tratamento de tumores malignos e infecções causadas por bactérias resistentes a antibióticos.

Fotografia tiradas pelo médico e escritor Drauzio Varella durante as viagens pelo Rio Negro, na Amazônia (Divulgação)

Mas nem só de ciência dura vive o homem. O deslumbramento com a paisagem, o interesse pela vida das pessoas, pela história do Brasil e suas questões sociais e ambientais urgentes levaram o autor do premiado Estação Carandiru (Companhia das Letras, 1999) a colocar as vivências no rio Negro no papel, “pelo prazer de escrever mesmo e pelo prazer de documentar” — embora tenha dito à Quatro Cinco Um que não se achava à altura de escrever um livro sobre aquela região. 

Varella percorreu a região amazônica por mais de três décadas, a bordo do barco Escola da Natureza

Para encarar a missão, diz ter se preparado muito, com leituras de ficção e não ficção e com especialistas de áreas como antropologia, botânica e história e instituições que atuam na região, como a foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) e o isa (Instituto Socioambiental).

Na entrevista a seguir, Varella conta um pouco da viagem que foi fazer esse novo livro.

Você já deve ter ouvido essa pergunta mil vezes, mas é inevitável: como consegue fazer tantas coisas? 
Um dos segredos é não entrar nas redes sociais. Eu faço um trabalho educativo no meu canal no YouTube, mas gravo e deixo o pessoal cuidar das redes. Elas têm esse lado bom, de dar acesso [à informação]. Há algum tempo, era a TV que fazia isso, hoje são as redes sociais. 

O fato de ser uma figura pública e aparecer na televisão facilitou o acesso às pessoas da região?
De um lado isso facilita, de outro cria uma relação um pouco esquisita. Eu chegava em uma pequena comunidade no médio rio Negro e aparecia alguém dizendo: “Como vai, doutor? A gente conhece o senhor”. E acabava aí. Eu fazia muitas perguntas: “quantas pessoas moram aqui? Como está o rio, teve muita seca?”. Queria saber de tudo. E eles não faziam uma pergunta a meu respeito. 

No livro há uma menção sobre isso, quando volta ao local onde adquiriu  febra amarela…
Depois do que aconteceu comigo, o serviço rural vacinou todo mundo daquela comunidade. Quando voltei para lá, uma senhora indígena disse que achavam que nuca mais voltaria; o chefe da comunidade me contou que o filho teve febre amarela com dois anos, mas não morreu. Pronto, foi tudo. Ninguém me perguntou o que tinha acontecido comigo, não se interessam por nossas vidas.

Esse desinteresse incomoda?
Eu não estava lá para contar minha história, estava lá para ouvir. 

Como contraiu febre amarela?
Eu bobeei, não tomei a vacina. É uma doença muito grave, a taxa de mortalidade é de 60%. Na fase que eu cheguei, a hepática, o risco de morte é de 80%. Eu estava com 61 anos, imagina, poderia não ter feito tudo o que fiz nos últimos vinte anos. Fiquei quase um mês internado no [hospital] Sírio Libanês e mais um mês e meio em casa. Dá muita coceira, é horrível. Fora o medo.

As viagens começaram para uma pesquisa sobre as propriedades das plantas amazônicas, mas se desdobraram em pesquisas meio informais sobre a vida da população? 
Eu tenho interesse em conversar com as pessoas. Fiz isso a vida inteira. É como o repórter, não pode ver uma situação que já quer entender o que está se passando. Gosto muito de entender o mundo em que as pessoas vivem. No decorrer dos anos, aprendi como se aborda uma pessoa, como você consegue tirar dela as informações que quer. Eu conversava e, de vez em quando, escrevia uma dessas histórias ouvidas. 

Já tinha a intenção de colocá-las em um livro?
Era pelo prazer de escrever, de documentar, mas não me achava à altura de escrever um livro sobre aquela região. Porque precisa mais do que contar histórias para falar da Amazônia. Ainda não me sinto à altura, mas fui me preparando, lendo bastante, conversando e tentando chegar mais perto daquela realidade. Chegou num ponto em que pensei: “não tenho preparo para [escrever] isso, outros podem fazer melhor do que eu. Mas tenho acesso a um grande público, posso falar para que as pessoas que não têm noção do que é essa região entendam alguma coisa”.

Não escrevi um estudo acadêmico, mesmo tendo algumas explicações na área de botânica, antropologia, história A intenção foi fazer um livro popular, com essa coisa linda da crônica do dia a dia, para interessar a quem não tem ligação com esse tema.

Acha que os brasileiros sabem pouco sobre a região?
Sim, como eu era quando comecei a ir para lá. A primeira vez que vi o rio Negro, a imensidão das águas, aquele rio parado refletindo como um espelho, pensei: “como é que não conhecia esse lugar?”. Olha que descaso com meu próprio país, que tem milhões de quilômetros de floresta, um caso único no mundo. Se eu conseguir despertar a simpatia das pessoas e de alguma forma alertar para as questões mais urgentes, sem fazer isso na forma de discurso político, pode ter algum impacto.

As histórias têm esse impacto, como a de um homem que, para receber o Bolsa Família, precisa remar por duas semanas, ou da mulher que foi picada por uma cobra…
Esta mulher teve que remar por mais de duas horas para chegar na comunidade. Picada de jararaca causa destruição dos tecidos no local, deve ser uma dor horrorosa, mas sozinha naquele lugar, ela não tinha alternativa, ou encontrava forças para remar ou morria ali mesmo. Como médico, essas coisas me pegam muito. Teve uma menina indígena que me pediu para ver seu pai, que tinha uma ferida no pé. Quando olhei era um tumor, com várias lesões. Qual a chance de conseguir tratamento para uma pessoa dessa? Zero. 

Para o Drauzio médico, como foi o encontro do homem da ciência com esse universo da floresta e a medicina dos povos originários?
O que eu aprendi com essa história toda é o seguinte: você tem do lado de cá a sociedade ocidental que mistifica a medicina indígena, “ah, eles têm os remédios deles, eles se cuidam”. Essa fantasia serve também para se eximir de levar saúde àquela população.

Porque eles têm sua medicina, mas há problemas que não conseguem resolver. Não há nenhuma planta que vacine uma pessoa contra sarampo ou febre amarela. Mas eles têm plantas que vêm sendo usadas há gerações e que eles dizem fazer efeito. Não podemos partir do princípio de que é uma fantasia. Pode haver uma substância ativa na planta que temos que estudar, aprender com eles, e usar a nossa tecnologia para tentar tornar a substância aplicável.

É um dos objetivos do projeto de pesquisa Escola da Natureza?
Nós identificamos, catalogamos e temos hoje 2.500 extratos vindos da região do rio Negro. Testamos a atividade [da molécula da substância ativa] em células tumorais malignas e nas bactérias resistentes. Temos material para cem anos de pesquisa, eu vou morrer e esse projeto vai continuar. Isso é maravilhoso.

Você conta que há resistência, da sociedade e do governo, para esse tipo de pesquisa. Por quê?
Porque tem um mito no Brasil de que essa atividade é roubar nossas riquezas. Lembro de Gordon Cragg, que chefiava a pesquisa de produtos naturais terapêuticos no Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, me dizer: “No Brasil, se a pessoa entra na floresta com uma motosserra, ninguém pergunta aonde vai; chega um pesquisador com uma tesoura de podar e, pronto, é pirataria”.

‘As pessoas com quem convivi nos mostram a artificialidade da vida que levamos na cidade’

Isso é ignorância: nossas riquezas foram roubadas no período do Brasil Colônia, levavam pedras preciosas, ouro, madeira para a Europa. Destruíram uma parte das florestas brasileiras para alimentar o mercado europeu. Mas um pesquisador vai chegar lá e pôr fogo na floresta, cortar árvores? Não. Quem vai fazer isso é o criador de gado, o madeireiro. Atrair os cientistas para a floresta Amazônica é uma forma de garantir a preservação.

Além de conversar com a ciência, O sentido das águas conversa muito com a literatura brasileira, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha. Como foi essa troca literária?
No caso do Guimarães Rosa é a história sobre onça, é óbvio que pensei imediatamente no [conto] “Meu tio o Iauaretê”, que li anos atrás. Um caboclo em uma casinha no meio do rio começou a conversar e o jeito de ele falar me lembrou imediatamente o Rosa. E o Euclides da Cunha pelos Sertões, um trabalho que, além de literário, é quase científico. 

Como a convivência com caboclos, indígenas, ribeirinhos te impactou?
Essa gente que vive apartada do mundo urbano tem muita sabedoria. Um exemplo que está no livro: fomos de barco para uma coleta e vimos um homem sentado num tronco de árvore olhando o rio. Quando voltamos, umas três horas depois, ele ainda estava sentado e alguém perguntou o que fazia ali. “Estou sentado”, ele respondeu. É muito maravilhoso, uma sabedoria que não temos. A cidade está o tempo inteiro te solicitando, te chamando, te empurrando para lá e para cá. Essas pessoas com quem convivi nas viagens ao rio Negro nos mostram a artificialidade da vida que levamos na cidade. 

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, editora da Quatro Cinco Um, é autora de Tantra e a arte de cortar cebolas (Editora 34).

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