Divulgação Científica,

Cidades nem tão perdidas assim

A arqueologia e o colonialismo pensados a partir de um projeto hollywoodiano em Honduras

01out2019 | Edição #27 out.2019

Durante muitos anos trabalhei como arqueólogo na Amazônia Central, próximo a Manaus, onde costumava coordenar rotinas de escavação com dezenas de alunos. Fomos visitados, certa vez, por uma equipe estrangeira que estava produzindo um documentário sobre a arqueologia na região. Estávamos acampados ao redor de uma casa velha em uma fazenda abandonada, enquanto alguns de nós dormíamos em redes na casa-sede. O apresentador era americano, o diretor, inglês; mas podiam também ser paulistas. Como é típico nesses casos, chegaram com pressa e uma ideia preconcebida do que queriam registrar e, sobretudo, de qual história pretendiam contar — e essa narrativa não era exatamente compatível com as hipóteses que se desenhavam ao longo da nossa pesquisa.

Logo na manhã do primeiro dia de filmagem surgiu um problema: o diretor queria fazer uma cena de deslocamento por uma estrada de terra, mas ficou decepcionado porque nosso veículo era um modesto Fiat Uno branco bastante usado. “Impossível”, ele disse. “Temos que arrumar um Jeep — é muito anticlimático filmar vocês dirigindo um carro desses.” Muitas horas depois, um velho Jeep verde foi localizado na cidade mais próxima, para alívio do diretor.

Esse pequeno causo diz muito sobre as imagens e expectativas que o público tem da arqueologia. Jeeps, chapéus, coletes cheios de bolsos, chicotes e facões compõem a indumentária e as traquitanas que, segundo a indústria de entretenimento, deveriam ser usadas por arqueólogos. A raiz desse estereótipo está na origem colonialista da disciplina, associada em seu início às concepções racistas tão em voga no final do século 19. Um século e meio depois, a arqueologia ainda não conseguiu se libertar totalmente dessa herança. É constrangedor notar como ainda existem pesquisadores que se filiam a essa linhagem. Do outro lado, há também a desconfiança, se não o ódio, que as populações indígenas têm de arqueólogos, vistos, em muitos casos — e nem sempre sem razão —, como totalmente descomprometidos com os destinos e as vidas dos povos que habitam os locais no entorno dos sítios que escavam (ainda que, por vezes, possam ser descendentes dessas mesmas populações).

Desconhecida para quem?

Foi, portanto, com um tanto de receio que aceitei resenhar A cidade perdida do deus macaco. Desde Heinrich Schliemann (1822-90), a busca por cidades perdidas é um tópico surrado, embora ainda possa garantir sucesso profissional e riqueza para os que se aventuram nisso. Hiram Bingham (1875-1956), o “descobridor” de Machu Picchu, regressou aos eua para cumprir uma bem-sucedida carreira na política, elegendo-se governador de Connecticut. Outros, menos afortunados ou mais arrogantes, pagaram com a vida, como o inglês Percy Fawcett (1867-1925), que desapareceu na região do alto Xingu (sua história deu origem ao clássico do jornalismo literário brasileiro Esqueleto na lagoa verde, de Antonio Callado). Um livro escrito em 2017 sobre a busca de uma cidade perdida por uma equipe dos Estados Unidos em um país da América Central — Honduras — me soava francamente colonialista. É comum, afinal, que cidades consideradas perdidas para homens brancos tenham sido previamente conhecidas e visitadas por populações locais — algumas até presentes em mapas nacionais, como é o caso da própria Machu Picchu, que aparece em mapas peruanos já na década de 1870.

O autor não fugiu das polêmicas: ele apresenta uma perspectiva crítica do neocolonialismo estadunidense

No caso de Ciudad Blanca (a do “deus macaco”), a situação é ainda mais complicada. Exemplo de uma típica república das bananas da América Central, Honduras sofreu ao longo do século 20 uma série de golpes de Estado apoiados pelo governo dos eua e mesmo por uma companhia privada, a United Fruit, grande detentora de terras no país. Doris Stone (1909-94), talvez a arqueóloga mais importante a trabalhar em Honduras no século passado, era justamente filha de Samuel Zemurray, ou “Sam the Banana Man”, um imigrante russo que enriqueceu vendendo bananas nos eua até tornar-se presidente da United Fruit, e  exerceu enorme influência no desenvolvimento da política externa dos eua com a América Central. A tradição golpista em Honduras infelizmente não se extinguiu no século 21 — como se sabe pela deposição de Manuel Zelaya em 2009.

Por essas razões, muitos arqueólogos locais e estrangeiros que trabalham em Honduras, como Rosemary Joyce, da Universidade da Califórnia em Berkeley, viram com desconfiança a série de expedições na região de Mosquitia, no leste do país, financiadas de forma privada por dois milionários americanos.  Chris Begley, arqueólogo que já trabalhara naquela parte de Honduras, explica, em um artigo intitulado “A cidade perdida que não estava perdida, não é uma cidade e não precisa ser descoberta”, que os indígenas Pech sabem há séculos da existência da “Ciudad Blanca” e que deliberadamente a deixaram esquecida na floresta. A Mosquitia é uma região isolada: não há estradas que levem a ela desde a capital, Tegucigalpa. A logística para trabalhar num local assim é muito cara e as equipes de campo contaram com apoio do Exército hondurenho, bem como de mercenários ingleses e ex-soldados dos eua. Fazer arqueologia dessa maneira hoje é, além de anacrônico, ofensivo.

Apesar desse contexto evidentemente negativo, A cidade perdida do deus macaco é um livro interessante. O autor, Douglas Preston, além de romancista, escreve regularmente sobre ciências e aventuras para publicações como The New Yorker e National Geographic e claramente domina seu ofício — o texto é leve e a narrativa tem ritmo. Nota-se também que Preston fez um bom trabalho de pesquisa prévia e procurou calçar o livro com as melhores informações científicas disponíveis. Inteligentemente, o autor não fugiu das polêmicas: entrevistou as pessoas envolvidas com os trabalhos de pesquisa e tentou dar a todos — inclusive aos opositores do projeto — uma voz no debate. E mais: ele apresenta uma perspectiva crítica do neocolonialismo estadunidense na América Central, especialmente em Honduras, com destaque para um excelente e curto capítulo sobre a história da United Fruit. Há ainda referências à ação da agência americana de inteligência, a cia, na política regional, e ao golpe que depôs Zelaya. Preston não é ingênuo: conhece o vespeiro onde se meteu e faz um trabalho honesto, apesar do título infeliz do livro.

Não há mais espaço no mundo para esse tipo de narrativa que reforça a associação entre a vida nos trópicos e a insalubridade

A cidade perdida do deus macaco narra os achados de uma equipe de arqueólogos e cientistas espaciais. A expedição foi financiada pelo cinegrafista Steve Elkins e pelo produtor de cinema Bill Benenson, dois sujeitos com trajetórias de sucesso em Hollywood. Eles se associaram para achar a tal cidade e depois lucrar com a produção de filmes e outros materiais a respeito. Mas o projeto contou com o apoio institucional do governo hondurenho e de suas forças armadas. Até aí, nada de muito novo. A grande inovação da empreitada foi o uso do lidar (Light Detection and Ranging), um tipo de sensor a laser transportado por aviões (ou drones) que permite a identificação de feições topográficas em áreas com densa cobertura florestal. Apesar de proibitivamente caro, o uso do sensor está revolucionando a arqueologia de regiões tropicais. Na Guatemala, por exemplo, áreas previamente tidas como pouco habitadas revelaram a presença de templos, cidades, estradas, poços e canais. Cada vez mais disseminada, essa tecnologia era ainda pouco conhecida quando foi usada pela equipe de Elkins e Benenson, em 2012.

Ao ler o livro, ficamos sabendo como os possíveis sítios arqueológicos foram selecionados a partir das informações coletadas pelo sensor a laser em vários sobrevoos num velho avião. Depois de identificados os locais, organizaram-se idas a campo que mais pareciam operações de guerra: descidas de helicópteros por rapel para a abertura de clareiras na mata, montagens e desmontagens de acampamentos e muitas, mas muitas, referências a serpentes venenosas, com destaque para a fer-de-lance (Bothrops asper), uma parente da nossa jararaca. 

Preston participou de um dos sobrevoos, foi dos primeiros a armar sua rede no acampamento montado na selva e acompanhou de perto todos os aspectos da pesquisa de campo; é dessa proximidade que vem a força do seu texto. Ao longo do livro, ele percorre o caminho tênue entre contar a história de um projeto que teve o explícito apoio estatal de Honduras — o próprio presidente Juan Orlando Hernández visitou o sítio em 2016 — e expressar o receio quanto aos impactos que os achados podem provocar no patrimônio arqueológico e na floresta. Uma excelente discussão sobre as epidemias trazidas pelos europeus para as Américas no século 16, quando talvez 90% da população nativa tenha perecido, mostra que Douglas Preston sabe que o maior feito narrado pela arqueologia é menos o dos arqueólogos e suas descobertas, e mais o dos povos tradicionais que resistiram e sobreviveram ao longo dos séculos. O livro se encerra com uma discussão interessante sobre a história natural e a epidemiologia da leishmaniose, doença que acometeu muitos dos participantes das etapas de campo, inclusive o próprio autor.

Várias interpretações

Superficialmente um livro leve de aventuras, A cidade perdida do deus macaco pode ser interpretado de várias maneiras. Um pouco fora de época, mas moldado na melhor tradição de Jules Verne, é também, num outro nível, um testemunho da carga política que há na arqueologia, seja através de sua associação com o colonialismo, seja pelas narrativas e imagens que fornece para a construção de identidades nacionais. Na América Latina, os melhores exemplos desses usos se encontram no México, no Peru e na Bolívia, mas há até países nomeados a partir de sítios arqueológicos, como é o caso do Zimbábue, na África. 

Finalmente, há a maneira como a vida nos trópicos é apresentada no livro: políticos corruptos, narcotraficantes, doenças contagiosas, cobras venenosas, chuvas torrenciais e até areia movediça compõem a paisagem sensorial na qual se desenrola a história. No meio desse inferno de calor e umidade, uma suposta cidade perdida pronta para ser descoberta pela melhor tecnologia disponível. Não há, ou não deveria haver, mais espaço no mundo para esse tipo de narrativa, que reforça a associação entre a vida nos trópicos e a insalubridade. Pelo contrário, os achados feitos em Mosquitia, na Amazônia ou na Guatemala mostram que as regiões tropicais já foram densamente ocupadas, que os bosques que as recobrem resultam do manejo indígena e que, se hoje estão vazias, isso se deve ao colonialismo. Invariavelmente, em locais ermos, identifiquei sítios arqueológicos que atestam antigas presenças indígenas. Não tenho dúvidas de que a utilização de novas tecnologias na Amazônia pode revolucionar nossa ideia sobre a história antiga do Brasil. Há cidades perdidas em toda parte, cobertas pelas florestas que herdamos dos povos que um dia as habitaram. 

Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira

Quem escreveu esse texto

Eduardo Neves

Professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, é autor de Arqueologia da Amazônia (Zahar).

Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.