Divulgação Científica,

A culpa não é do morcego

Ao escrever cartas endereçadas ao único mamífero que voa, bióloga defende a comunicação com plantas e bichos para revertermos o desequilíbrio ambiental

01dez2021 | Edição #52

Esse livro, composto de dez cartas ao morcego, persegue uma velha questão: “Existirmos, a que será que se destina?”. Mas a pergunta agora não é mais entre humanos, é entre seres vivos, ou mesmo inanimados. É sobretudo sobre a nossa relação com a natureza. É sobre ciência, poética e conversa de botequim. Nurit Bensusan tem lamentado o uso corrente da palavra biodiversidade no lugar de natureza. Porque natureza todo mundo sabe o que é, é uma palavra afetiva, afeta as pessoas. Já biodiversidade é técnica, complica. Natureza tem a mesma etimologia do verbo nascer. Então uma das definições possíveis de natureza é tudo que nasce. Mas também morre e pode até se extinguir.

Bensusan se define como “uma ex-humana, diante dos descalabros da espécie, desistiu da [de uma certa] humanidade, mas continua bióloga”. Formada em biologia e engenharia ambiental com doutorado em divulgação científica, há quase três décadas sob uma perspectiva socioambiental, transita por diversas áreas do conhecimento, atua no terceiro setor, é escritora, inventora de jogos com temas relacionando ações humanas e natureza. Esse livro é para você, é para seus filhos, seus pais, para ricos e pobres, é para humanos e demais organismos da natureza. Toda vez que uma palavra difícil aparece, ela explica em seguida. Para falar de adaptabilidade em ambientes hostis, ela nos conta que plantas ruderais são as que nascem nas frestas do asfalto, nas ruínas e no meio-fio. E que os morcegos podem morar em ambientes tão diversos quanto florestas, cavernas e cidades e representam quase um quarto das espécies de todos os mamíferos; existem há mais de 50 milhões de anos; e dentro dessa classe do reino animal são os únicos que voam. E como o tema é voar, ficamos sabendo que os pássaros são descendentes dos dinossauros. “Como gostam de dizer os paleontólogos, os dinossauros seguem aqui conosco.” Para a autora, a ciência pode e deve ser conversa de botequim.

A proposta é pensar com os bichos, as plantas e demais organismos da natureza. Uma tendência em várias áreas do conhecimento, que além de dialogar com saberes e cosmologias indígenas vem propondo novas epistemologias científicas desde pelo menos a década de 70. Exemplar dessa produção é o livro A queda do céu, escrito pelo antropólogo Bruce Albert e pelo yanomami Davi Kopenawa. Todas as inspirações de Bensusan são comentadas numa bibliografia singular, que inclui poucos biólogos, livros e vídeos da socióloga e historiadora indígena boliviana Silvia Rivera Cusicanqui; textos das antropólogas Anna Tsing e Els Lagrou, a primeira estadunidense e a segunda belga radicada no Brasil; vídeos no YouTube da historiadora e cineasta portuguesa Teresa Castro; livros sobre plantas do filósofo italiano Emanuele Coccia; o pensamento de Ailton Krenak; o site Casa dos Morcegos, “para se sentir em casa com os morcegos”; entre outros. O fato de esse diálogo se dar principalmente entre mulheres não é uma coincidência; a autora sugere que as mulheres cientistas são fundamentais para uma nova percepção do conhecimento.

Uma das principais hipóteses científicas da causa da pandemia do vírus Sars-CoV-2 que provoca a Covid-19 é aquela que descreve um ciclo vicioso que já gerou outras epidemias. Bichos que perderam seu habitat com a destruição de florestas migram para áreas urbanizadas, entram em contato com humanos e seus bichos de estimação e transmitem um dos diversos vírus que trazem em seu corpo. No caso da Covid-19, os seus principais transmissores teriam sido morcegos deslocados de áreas naturais devastadas para áreas urbanas ou simplesmente comercializados no mercado de Wuhan, China, que contém uma área de venda de animais silvestres, dentre os quais também figura o pangolim, que pode ter sido o vetor intermediário entre os morcegos e nós. História fácil de espalhar com tons racistas, como a expressão “o vírus chinês”, “essa gente bárbara que consome animais estranhos”.

O vírus é global, fruto de uma prática global de destruição da natureza. Há possibilidades, por exemplo, de uma nova pandemia estar sendo produzida no Brasil, como resultado da destruição das florestas, da profusão das monoculturas e da criação de animais em ambientes confinados e do tráfico de animais silvestres — todas práticas globais, mas que se intensificaram nos últimos tempos no nosso território.

Reverberação

Bensusan, que já escreveu outros livros de divulgação e acredita no poder das palavras tanto quanto no dos vírus, inverte o título da canção de Laurie Anderson: vírus é uma linguagem. O vírus da Covid-19 pode ter sido a comunicação que o morcego fez com a humanidade, quando foi obrigado a migrar do ambiente florestal para o urbanizado. Assim, ele divide algo que não lhe faz mal, mas que faz mal para a gente. Não por “vingança”, mas porque a vida é uma: quando ela desequilibra em Wuhan, reverbera em Pindamonhangaba e nos Alpes suíços. Essa reverberação é o meio e a mensagem; no entanto, poucos compreendem. É preciso “entender, finalmente, que não existe natureza, que ela é uma construção humana para nos separar dos outros seres e da intricada teia de relações que permeia o mundo, e que para pensar com outros seres uma língua comum pode se fazer necessária”.

Um outro exemplo de “comunicação” produzida pelos morcegos é objeto de uma pesquisa que se faz em cavernas onde eles vivem há milênios, na Jamaica. É através do guano, seus excrementos, que pesquisadores estão lendo a temporalidade da chegada dos primeiros humanos à ilha há mais de 4 mil anos, dos europeus há quinhentos, seguidos dos africanos escravizados e do plantio da cana-de-açúcar. O acúmulo de suas fezes e urina nos conta nossa história. E finalmente, outra troca que fazemos com esses mamíferos voadores é a presença deles na Biblioteca de Coimbra há séculos. Duas colônias de morcegos devoram todas as noites milhares de insetos bibliófagos, auxílio fundamental na preservação de livros antigos. Assim eles se alimentam, e nós, humanos, somos beneficiados pela preservação de um patrimônio cultural. Isso é o mutualismo.

Numa gangorra de esperança e pessimismo, a autora assina cada uma das dez cartas com as seguintes palavras, nesta ordem: cordial, amistosa, ansiosa, perturbada, estonteada, delirante, atordoada, ávida, angustiada e transbordante. E nos identificamos com esses estados; afinal, há bem mais de um ano, boa parte da população mundial está trancada em casa, tem deixado de se divertir, corre perigo na rua, está passando fome, tem temido a morte, tem perdido gente querida. E devido à desigualdade social há gente que nem sequer foi vacinada e não sabe quando será. Mas o que surpreende é que a ficha não caiu. Pouco se fala, da grande mídia às redes sociais, sobre as causas dessa catástrofe: o desequilíbrio ambiental provocado pela mão do homem, principalmente um certo grupo de homens que detêm o poder econômico e político. E mesmo assim, o “Viva a ciência” tem se endereçado quase exclusivamente à produção de vacinas, um setor específico da ciência.

A ideia é interceptarmos e espalharmos as cartas ao morcego para vivermos outramente, deixarmos de ser antropocêntricos, nos tornarmos mais uma das espécies que vivem por aqui no planeta Terra. Nas cartas, Bensusan aposta na mudança das metáforas de guerra predominantes na história natural como predação, eliminação, competição pela ideia da prevalência da cooperação mútua, da simbiose, da vida como um emaranhado de interdependência de seres. A culpa não é do morcego. E saibam: apenas três das suas mais de 1.400 espécies se alimentam de sangue, preferencialmente de outros bichos que não os humanos. Não são uma ameaça à vida; pelo contrário, espalham a vida, são pesticidas naturais, fertilizantes de caverna, polinizadores e poderosos dispersores de sementes, como as adoradas e admiradas aves e abelhas.

Talvez nós, humanos, sejamos a única espécie que está perdendo o instinto de sobrevivência. 

Quem escreveu esse texto

Silvana Jeha

É autora de História da tatuagem no Brasil, publicado pela Veneta.

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.