Literatura,

Força libertadora

Em seus escritos, Patrícia Galvão e Leonora Carrington transformam o trauma do confinamento em arte

20nov2023 | Edição #75

Em tempos encomiásticos à persona de Patrícia Galvão (1910-62), mais conhecida como Pagu, homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty de 2023, é fundamental lembrar de sua face subversiva, avessa portanto ao status quo. Dificilmente ela gostaria da imagem que gerações sucessivas têm dela, a de musa, heroína revolucionária. Imaginamos que talvez preferisse ser reconhecida como uma escritora de aventura, como a definiu Augusto de Campos, ou ser chamada de pomba-gira — espíritos de mulheres insubmissas nas religiões de matriz africana — como fez o poeta santista Marcelo Ariel.

Esse perfil vai ao encontro da artista surrealista britânica Leonora Carrington (1917-2011), que viveu no México a maior parte da vida e, como Patrícia Galvão, também foi uma mulher livre e rebelde, além de ter passado um período de sua vida confinada não em prisões como Galvão, mas num sanatório. Como decorrência também desse período prisional, ela teve problemas psíquicos e produziu alguns escritos sobre loucura.

Nesse sentido, podemos aproximar duas obras das autoras: a crônica “Lobotomia, a moça frenética, etc.”, de 1949, assinada pela brasileira, e o pequeno relato Lá embaixo, de Carrington, cuja primeira versão foi elaborada três anos depois de uma experiência manicomial em 1940. Em Até onde chega a sonda, recém-publicado pela editora Fósforo e organizado por um de nós [Silvana Jeha], podemos ler textos de Galvão do período em que esteve presa e visitou os subterrâneos da existência, inspirando-se em Memórias do subsolo, de Dostoiévski. Na crônica, ela já se aproxima do enlouquecimento, ou “esmagamento” (como o chamava), um sentimento explícito na construção abismal do texto para dentro de si.

Até onde chega a sonda (Fósforo) traz textos de Patrícia Galvão do período em que esteve presa e visitou os subterrâneos da existência

Essa experiência prisional marcou profundamente a escrita da autora, principalmente crônicas e poemas da década de 40 assinados com pseudônimos. Neles, lemos uma mistura de temas existenciais com fatos diversos, passando da Segunda Guerra Mundial à história de uma menina com sua mãe num bar de madrugada; de um encontro fortuito com o arquiteto e artista de vanguarda Flávio de Carvalho no Viaduto do Chá à Revolução Chinesa. Entre a melancolia e a prosa poética experimental, um (mal) estar na cidade de São Paulo e no mundo, estranhando a realidade, subvertendo-a através da escrita.

Estranhamento

Sabemos que no ano de 1949 Galvão morava numa das casas da vila modernista construída por Carvalho na alameda Ministro Rocha Azevedo, e ali tentara suicídio. Segundo familiares, ela foi acometida por seguidas crises depressivas depois do período prisional. Mas nada que paralisasse sua produção jornalística e literária. Naquele ano, os textos assinados como Pt, que publicou no suplemento cultural Literatura & Arte, do extinto Jornal de São Paulo, são extremamente experimentais e oferecem poucos nexos para o leitor. A crônica “Lobotomia, a moça frenética, etc.” é a que mais deixa entrever este estado de estranhamento com o mundo.

No ano em que foi escrita, o português Benjamin Egas — um dos inventores da cirurgia cerebral chamada tecnicamente de leucotomia pré-frontal, conhecida vulgarmente como lobotomia, muito utilizada na época no Hospital Psiquiátrico do Juquery, nos arredores de São Paulo — ganhou o Nobel de Medicina. Tratava-se de uma intervenção no cérebro com um instrumento de ferro com a intenção de cura ou melhora de uma doença psiquiátrica, o que no mais das vezes apenas incapacitava o indivíduo para sempre. Hoje, o tratamento é visto com espanto, uma vez que esse tipo de psicocirurgia foi condenado a certo ostracismo depois do grande abuso que ocorreu entre as décadas de 40 e 50.

Provavelmente abismada com a notícia do prêmio, Galvão o ironiza e faz uma ponte entre Egas e outro cientista do século 19, Marie-Jean-Pierre Flourens. Este foi precursor de estudos do cérebro, valendo-se de pombos em suas experiências. A crônica conta a história de um carteiro que bate a cabeça num poste e é tomado como cobaia por Flourens. O carteiro iria encontrar uma moça frenética à sua espera numa janela na rua da Consolação, em São Paulo, já poluída e cheia de carros e bondes. Tempos depois, ele aparece como pombo para a moça, mantendo ainda o boné de carteiro. No crepúsculo, tira um papelzinho preso no dedo com a palavra “lobotomia” e troca as sílabas da palavra.

No fim da história, Galvão indica aonde quer chegar, descrevendo a imagem formada “no subsolo do pensamento”: “Um homem de boa conduta com a sua plácida aparência e vem uma multidão de indivíduos com o dever expresso de manter a ordem comunal ou então candidatos a uma lobotomia qualquer para virar pombo, enquanto não houver outra cura para o mal urbano. Quanto à moça continua vendo os pombos, mas substancialmente está frita.”

Na crônica de Galvão, percebemos a experiência da loucura na maneira com que ela articula a linguagem e desenvolve a narrativa.

A escritora, que acabara de tentar o suicídio ou estava perto de cometê-lo, à maneira dos surrealistas ou de Franz Kafka, descreve o mundo normativo contra uma moça frenética, diante do congestionamento que “soltava poeiras no horizonte, impedindo a definição da cor” de uma São Paulo que cresce explosivamente, cujos líderes, homens “de boa conduta”, dirigem membros de uma multidão que, se não se adequarem à ordem, serão eliminados.

Carrington relatou em Lá embaixo (lançado no Brasil em 2020 pelo selo 100/cabeças, com tradução de Alexandre Barbosa de Souza) sua experiência num sanatório em Santander, na Espanha, durante a Segunda Guerra Mundial. Escrito por sugestão do surrealista Pierre Mabille, seu amigo, a artista começa contando como seu corpo reagia à prisão de seu companheiro, o artista Max Ernst, durante a ocupação nazista na França. Na tentativa de ajudar Ernst a escapar via Espanha, ela é internada pela família.

Em suas deambulações por Madri durante uma crise nervosa, o pai — proprietário da Imperial Chemicals — envia emissários que lhe ministram três doses de Gardenal e uma injeção em sua coluna de Luminal, medicamento que produz uma “morte temporária”. Dessa maneira, Carrington foi “entregue como um cadáver”, conforme relata, à clínica do Dr. Luis Morales, que a tratava com doses de Cardiazol — medicamento que provocava convulsões, também usado à época no Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo. A artista foi submetida às mais variadas violências e abusos, como ser agredida fisicamente ou ficar amarrada nua na cama por vários dias, observada pelo médico.

Presa por cerca de quatro anos, Galvão também foi torturada durante o período de ditadura do governo de Getúlio Vargas. Aqui temos outra proximidade entre as autoras: ambas lidaram de modo íntimo com a loucura provocada por situações-limite e a experiência da reclusão forçada. Levadas ao encarceramento por motivos diferentes — uma na prisão, outra num manicômio —, elas transformaram em imagens e palavras o trauma do esmagamento.

Na crônica de Galvão, percebemos a experiência da loucura na maneira com que ela articula a linguagem e desenvolve a narrativa, sem se guiar por encadeamentos lógicos ou lineares, inclusive valendo-se do recurso de deformação da palavra “lobotomia” — que se torna “botolomia mialoboto” — fruto da deformação do pensamento causada pela cirurgia realizada no carteiro que vira pombo.

Por sua vez, o relato de Carrington está perpassado pelo corpo, e sua subjetividade será fundida com a de objetos exteriores, maneira à qual ela recorre para não sucumbir definitivamente à loucura. A narrativa é feita como se fosse “a frio”, o que não ameniza o horror vivenciado por ela.

Errância

Outro fato partilhado entre as duas autoras é a errância pelo mundo durante a juventude. Ao sair de Santander e fugir definitivamente do controle de sua família, Carrington, então com 24 anos, parte para Portugal, onde se casa de modo arranjado com Renato Leduc — que ela havia encontrado tempos antes em Paris e que à época atuava na embaixada mexicana —, seguindo para os Estados Unidos e depois para o México. Podemos evocar o que diz Marcus Rogério Salgado acerca do triplo caráter dessa viagem, em seu posfácio à edição brasileira de Lá embaixo: trata-se de um percurso geográfico, psicanalítico e iniciático.

Antes de ser presa no Brasil em 1936, Galvão realizara uma volta ao mundo quando tinha 23 anos, na qual passou por Estados Unidos, Japão, China, União Soviética, Alemanha e França. Nesse último país, ela frequentou o mesmo círculo surrealista de Carrington e ficou hospedada na casa do poeta Benjamin Péret e da cantora brasileira Elsie Houston. Voltou ao Brasil em 1935, extraditada por atividades políticas clandestinas, e foi presa meses depois, enquanto Carrington chegou na cidade em 1937.

Duas mulheres à deriva no mundo tumultuado daquela década, cujas tentativas de interdição, apesar de violentas, não as tiraram do campo de guerrilha da produção artística. Para completar a aproximação, o pesquisador Sergio Lima escreveu em seu posfácio do livro Estrela da manhã: surrealismo e marxismo (Boitempo, 2018), de Michael Löwy, que Galvão teria encenado uma peça de Carrington em Santos no ano de 1957.

Sabemos que, nos anos 50, Galvão atuou no campo do teatro como tradutora, dramaturga e diretora. No fim da década, ela se correspondeu com o mexicano Octavio Paz, de quem traduziu e publicou o poema “Duração” e encenou, com sua autorização, a peça “A filha de Rappaccini”. O poeta a concebeu a partir do conto homônimo de Nathaniel Hawthorne, para ser encenada pelo grupo mexicano Poesía en Voz Alta. Quando Paz e Carrington participavam desse grupo, sugeriram que, ao invés de se recitar poemas, fossem montadas obras de teatro. A ideia de adaptar o conto foi dos dois, e Carrington ficou responsável pelos figurinos e cenário.

Galvão e Carrington desvelam corpos emancipados e, por isso mesmo, subjugados por um regime que não tolera a liberdade feminina, o que resulta em uma sobrecarga psíquica que, no caso delas, foi transformada em obras de arte. A insurgência e a irredutibilidade das autoras não permitiram que seus corpos se sujeitassem a qualquer submissão, e a prova disso pode ser testemunhada na força libertária e libertadora de seus textos e, no caso de Carrington, também de suas pinturas. Conectadas pela aventura, pela experiência do esmagamento, pelos círculos internacionais de artistas, hoje elas se tornam cada vez mais reconhecidas num mundo que não se livrou do autoritarismo, da misoginia e das ameaças sempre combatidas pelas artes.

Quem escreveu esse texto

Silvana Jeha

É autora de História da tatuagem no Brasil, publicado pela Veneta.

Diogo Cardoso

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.