Desigualdades,

Questão de hierarquia

Historiador investiga os caminhos que normalizaram a concentração de riqueza como elemento constitutivo da sociedade brasileira

01abr2024 | Edição #80
O historiador João Fragoso [Divulgação]

Os estudos sobre desigualdade social têm ganhado espaço no mercado de ideias brasileiro. Nos últimos anos, autores têm exposto suas teorias, antes limitadas ao campo da economia e da pesquisa acadêmica, a um público mais amplo. Em 2018, Pedro Henrique Souza publicou Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013) (Hucitec); no ano passado, Marcelo Medeiros lançou Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade (Companhia das Letras). Agora, ganham a companhia de João Fragoso, que também joga luz sobre temas que pareciam distantes do leitor comum com A sociedade perfeita: as origens da desigualdade social no Brasil (Contexto).

Como o título sugere, o notável trabalho de Fragoso aborda o fenômeno da desigualdade a partir de uma leitura histórica. Professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o autor analisa, a partir de ampla pesquisa bibliográfica (e com acesso a importantes fontes primárias), os caminhos que normalizaram a concentração de riqueza e a distinção social a ponto desses fenômenos serem encarados como constitutivos da sociedade brasileira. A sociedade perfeita à qual Fragoso se refere tem a ver com a prática muitas vezes perversa, outras tantas autoritária, da dinâmica do poder em território nacional. Ao longo de 352 páginas, ele demonstra como essas práticas ganharam tração no Brasil, fruto das origens e da formação do país antes mesmo de ele se estabelecer como nação.

Numa viagem no tempo, o autor conduz o leitor a uma época anterior ao “descobrimento”, na qual a lei e o mando se consolidavam por uma legitimidade simbólica, uma vez que não estava baseada no chamado estamento burocrático. Logo no primeiro capítulo, aponta que a sociedade do século 16 se organizava a partir de um procedimento sui generis: “O camponês deveria sustentar a casa senhorial, que, em troca, deveria garantir proteção militar e acesso à terra do lavrador”.

Essa dinâmica, sustenta o historiador, preparou o terreno para uma estrutura social na qual o Estado, da maneira que hoje conhecemos, não tinha instrumentos para controlar a vida do indivíduo. Mas controle que realmente interessava era aquele capaz de desenhar uma sociedade que visa a manutenção do poder ao longo de gerações.

Fragoso mostra como e por que a desigualdade no país é uma das suas instituições mais sólidas

É aqui que a interpretação sobre o Brasil começa a ganhar destaque. Para explicar as relações de poder no país, o autor apresenta uma lúcida investigação do que chama de “antessala da sociedade perfeita”. De acordo com Fragoso, entre os séculos 14 e 16, a Europa forjou e normalizou um modelo de sociedade que se baseava na hierarquia social. Nas palavras do autor, “a preocupação com a hierarquia social e a permanência das desigualdades estava presente mesmo entre os que defendiam a democracia e o domínio das assembleias de cidadãos na direção nos negócios da república”.

O edifício do livro de Fragoso depende fundamentalmente desse primeiro pavimento, no qual o autor não só reforça o valor do organograma político como sublinha o papel do rei, que podia sempre distribuir graças, como títulos nobiliárquicos, comendas militares e ofícios da Coroa. Original da Europa, essa estrutura, que só foi possível graças à força do cristianismo e da Igreja católica, se transforma num modelo tipo exportação.

Fragoso não faz apenas uma compilação dos textos já elaborados a respeito da formação do Brasil, da escravidão e de suas consequências para a sociedade brasileira até os nossos dias. Ainda no prefácio, o autor alerta que não está tratando do “Brasil contemporâneo, urbano, industrial e do agronegócio com seus subprodutos: miséria, racismo e machismo”. Com efeito, o historiador não pontua questões do seu tempo — mesmo que alguns dos elementos por ele citados possam ser atemporais.

Em vez de discutir o presente, Fragoso está mais atento em ler com cuidado as obras que pautaram a interpretação do capitalismo e da escravidão. No primeiro caso, propõe uma distinção nada óbvia entre comércio e sistema econômico. A prática de compra, venda e troca de produtos sempre existiu, escreve ele, que completa: “Acreditar na associação de comércio com capitalismo implica em naturalizar o capitalismo: sempre existiu, como o céu e a terra”. Essa discussão em torno da natureza do capitalismo ganha contornos mais robustos à medida que a leitura avança, e Fragoso acaba dialogando com autores centrais da literatura econômica internacional. 

Comércio de escravos

Uma das grandes contribuições do livro é a análise da força da religião e da escravidão nessa estrutura. Diferentemente de certa visão politicamente incorreta que polemizou no debate público na última década, o capítulo “Resgate de cativos na África e na travessia atlântica no Brasil”, escrito pelo também historiador Roberto Guedes, observa que considerar as práticas de comércio de escravos como atividades capitalistas “significaria dizer que elas [as sociedades] foram meras marionetes nas mãos de europeus e cristãos quando, de fato, estes não gozavam de nenhuma superioridade em territórios africanos”.

Assim como faz Fragoso nos demais segmentos do livro, Guedes dialoga com pesquisadores que estudaram a escravidão, num mergulho que raramente se vê nas obras de divulgação que tentam entender o fenômeno. Trata-se de uma discussão elevada de um tema cruel demais para a sociedade brasileira, ainda que necessário.

Chama a atenção a passagem em que Guedes comenta a importância da cristandade como tecido que diluía a imoralidade da escravidão. Num fragmento que parece inconcebível para os padrões atuais, o autor diz que os cativos eram batizados no litoral africano perto do embarque, mas não eram aceitos como escravizados porque “não tinham nomes cristãos”. O novo batismo só acontecia quando se sabia os seus primeiros senhores. “Não pode passar despercebido que a própria legislação civil, para além das ordenanças canônicas, se encarregou de fazer escravos e senhores pelo batismo católico”, diz Guedes.

Ao longo de A sociedade perfeita, Fragoso ancora as análises ora numa abordagem que problematiza interpretações consagradas — como a de Lévi-Strauss a propósito do incesto, uma vez que houve sociedades que se organizaram se relacionando entre famílias —, ora na demonstração de como a historiografia tem promovido outra leitura sobre a formação do país, que redimensiona o papel da escravidão e da religião na sedimentação da desigualdade. Ao final, o leitor compreende por que a hierarquia da sociedade brasileira tem raízes tão profundas, a ponto de não se questionar seu funcionamento.

A sociedade perfeita mostra como e por que a desigualdade no país é uma de suas instituições mais sólidas. Para compreender (e talvez mudar) essa conjuntura, convém entender como os pilares do mundo de hoje foram estabelecidos.

Quem escreveu esse texto

Fábio Silvestre Cardoso

Jornalista, é autor de Capanema: a história do ministro da Educação que atraiu intelectuais, tentou controlar o poder e sobreviveu à Era Vargas (Record).

Matéria publicada na edição impressa #80 em abril de 2024.