Crítica Literária,

Teoria e ternura

Colunas de Tatiana Salem Levy reunidas em coletânea tratam das dores e dos conflitos nacionais e internacionais

09nov2018 | Edição #3 jul.2017

Há dez anos, Tatiana Salem Levy fez um gesto inaugural. Em vez de enviar uma tese teórica para sua banca de doutorado, no departamento de Letras da PUC-Rio, mandou um romance — com um apêndice crítico. Até hoje, não há um só mês em que a ex-aluna não seja mencionada.

O episódio é marcante por duas razões. A primeira é a ousadia de tensionar os limites entre produção literária e teórica, borrar fronteiras, de modo a esgarçar a instituição até abrir um novo campo de possíveis, o que viria a alterar as práticas do departamento: a também escritora Alice Sant’Anna defendeu um longo poema. A outra razão está nas qualidades que marcam a trajetória de Tatiana: uma teórica sólida e requintada.

Sempre me surpreendeu que essas duas qualidades não transparecessem na escrita romanesca de Salem Levy. Não há citação, exposição de conceito ou jargão crítico. Nenhum vício que demonstre superioridade ao leitor. A teoria está sempre por trás do romance, animando a escrita, mas não se apresenta na linguagem. O gosto da escritora é o de pegar o leitor pela mão e conduzi-lo através da narrativa e suas emoções.

Convite ao pensamento

O mundo não vai acabar é uma oportunidade para conhecer a cabeça por trás da ficção. E o que aparece é teoria e ternura. O gesto acolhedor que a narradora Tatiana faz em sua literatura é repetido agora, através de um convite ao pensamento. O livro é uma compilação de suas colunas sobre literatura publicadas desde 2014 no jornal Valor Econômico. Posso imaginar uma torcida de nariz depois dessa frase. Se muitas vezes compilações formam conjuntos mal-ajambrados, esse não é o caso. O jeito como a autora lê o mundo com os livros, apontando para fora deles, e para dentro da vida, dá forma e unidade aos brevíssimos ensaios, que não esgotam o assunto, mas revelam um ângulo novo, param de pé depois de um passo de dança.

Para falar de feminismo, a autora convoca os dados sobre a mentalidade brasileira acerca da violência contra a mulher, sua experiência numa pesquisa em delegacia e o romance Desonra, de J.M. Coetzee. Para pensar a complexidade das relações entre palestinos e israelenses, ela coloca haters e comentaristas do Facebook em diálogo com as ideias do escritor e ativista judeu Amós Oz sobre fanatismo. Sobre os atentados de Paris e as ameaças ao Estado laico, a autora põe em diálogo o argelino Kamel Daoud — que reescreveu O estrangeiro do ponto de vista do árabe que é morto pelo narrador do clássico de Camus — e o polêmico Houellebecq. A estratégia injeta imaginação no leitor. Nisso, ela injeta utopia na realidade.

A escrita é a ferramenta de Tatiana para tentar responder à questão que mobiliza o livro: “Se não acreditarmos no melhor dos mundos, de que vale estarmos aqui?”. 

O que não significa, no caso dela, fazer literatura engajada, porque “a literatura é justamente o espaço da liberdade… Há uma política da escrita que diz respeito à liberdade… Mas liberdade é também abrir-se ao Outro. Por isso uma política mais justa passa também por uma política da leitura.”

Ler com a leitora Tatiana é uma forma de resistência, de imaginar possíveis, de dar relevância ao aparentemente irrelevante e de ainda abrir o apetite pelos livros nos quais ela passa através das páginas. Ler com a escritora Tatiana é entrar na forma como opera a mente de uma escritora, sempre em busca das camadas mais sutis de significado nos textos e no mundo. 

A maior virtude do livro é nos aproximar do pensamento. Através do cotidiano, do concreto, do corpo. Em tempos de crise de autoridade e escalada autoritária, isso não é pouco.

Quem escreveu esse texto

Antonia Pellegrino

Roteirista, é curadora do blog #AgoraéQueSãoElas, hospedado no site da Folha de S.Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.