O escritor português João Guilhoto (Divulgação)

Encontro de Leituras,

No meio dessa gente endomingada

Contos de João Guilhoto trabalham a loucura como única forma de redenção para os desencantados

01jan2025 • Atualizado em: 22jan2025 | Edição #89 jan

Simónio era tão inútil que não servia sequer para sonhar: um dia, quando se forçou a imaginar outra realidade, colapsou. Teve que ser internado às pressas. Sua falta de serventia era tanta que havia se tornado uma atração turística. Era o rapaz que não podia ser modelo vivo porque constrangia os pintores. Aquele que se dedicava apenas às tarefas desimportantes e não dava conta de nenhuma. Ele mesmo sabia: havia nascido para não prestar para nada. Por isso, numa tarde, decide deitar na grama e não sair mais de lá.

Protagonista do terceiro conto da coletânea Os inúteis, do português João Guilhoto, o destino de Simónio dá o tom dos personagens das seis narrativas do livro: seres desesperançosos e resignados.

Em primeira ou terceira pessoa, acompanhamos uma mulher cujo projeto de vida é não fazer nada; um homem que só encontra prazer na eclosão de uma guerra; outro que come o cadáver do próprio cachorro para lidar com o luto; e um rapaz chamado K — uma alusão a Kafka sobre a qual trataremos melhor mais adiante —, cuja doença o obriga a apertar o dia inteiro uma única tecla do computador. Todos convergindo para a imobilidade.

O primeiro conto, “Nada”, é um exemplo do esvaziamento que paralisa o livro. Não há trama ou espaço para mudanças bruscas na narrativa. O que lemos é um conto longo, cheio de repetições, que trata da obsessão de uma mulher em se livrar de qualquer compromisso.

Com ecos de Um homem que dorme, livro de Georges Perec, de 1967, em que o personagem principal ambiciona viver deitado para sempre, a narrativa descreve a saga de uma figura incerta, sem nome nem características físicas, que faz de tudo para permanecer inerte. Desiludida com a empreitada impossível, enlouquece. Foge do sanatório e, em desfecho pouco sutil, decide cortar a si mesma até não sobrar… nada.

Dá para notar: trata-se de um livro tão espirituoso quanto soturno. O saldo é uma comédia baseada na alienação, como ocorre em Kafka, mas com chave inversa: se os contos do tcheco prezam pela supressão quase total das informações até um final que libera os significados submersos do texto, em Guilhoto tudo é exposto. Com uma prosa cristalina e refinada, o autor troca as entrelinhas pela exposição completa dos mecanismos narrativos.

A força dos contos, portanto, não se dá no término, e sim no seu desenrolar. No acúmulo de situações esdrúxulas. Com isso, o absurdo é neutralizado pelo excesso de dados e acasos improváveis. A tragédia risível se torna, assim, uma parábola inesgotável.

Insanidade variada

Simónio, K e outros protagonistas anônimos de Os inúteis nutrem um espanto negativo pela vida. Vivem à beira do terror diante do cotidiano. Aos moldes de um Bartleby contemporâneo, empacam em um estado depressivo de recusa.

Os atos mais ordinários são insuportáveis. Tudo que lhes é familiar precisa ser implodido, fato que pode ser notado na construção hábil do autor para romper a linha que separa o devaneio da realidade. A loucura cumpre o papel de ser a redenção possível para o estado de alheamento. Uma saída individualista, sim, mas condizente com a exclusão que lhes foi imposta pelos úteis.

Trata-se de um livro tão espirituoso quanto soturno. O saldo é de uma comédia baseada na alienação, como ocorre em Kafka

A insânia se dá de formas variadas. No segundo conto, “Foi assim a guerra”, talvez o mais poético do livro, um homem recluso só recupera seu desejo pela vida quando um batalhão inimigo invade sua cidade. Enquanto todos se afligem, ele sorri pelas ruas em busca de seus possíveis últimos amores, culminando numa dança romântica.

Já na quinta história, “De certa doença”, a alegoria da insânia é mais escrachada: o narrador descreve uma enfermidade que obriga os doentes a passarem dias e noites acionando uma tecla do computador.

Nota-se, aqui, que o comportamento maníaco não parte de uma vontade pessoal, mas é imposto por um fenômeno maior, externo, descrito como uma doença nova — como aquelas criadas a cada ano no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM. 

Na narrativa, o distúrbio faz com que K acione apenas a tecla ESC, abreviação de escape. A exemplo do antecessor homônimo, o K português bem que tenta, mas não consegue fugir de sua condição.

Mazelas humanas

Ainda que bem-humorado, o tom predominante do livro é o crítico. O desengano, a inércia e o delírio são frutos de um mundo que parece ter esgotado sua capacidade de imaginação. Um mundo que, assim como a personagem de Os inúteis, se resignou diante das mazelas humanas a ponto de normalizá-las. O mérito da prosa de Guilhoto é tocar nesse ponto sensível. Ao criar alegorias e parábolas de muita força no pólo da negatividade, transforma o desencanto no seu contrário. Expõe, com êxito, o
valor da invenção.

Parte da potência reflexiva ocorre por meio da elaboração de uma atmosfera indeterminada. Pouco sabemos sobre a temporalidade e os detalhes geográficos dos contos. Com exceção dos nomes de alguns personagens, as cenas e as descrições prezam pela indefinição. As histórias ganham, assim, um caráter universal: ainda que não saibamos onde nem quando ocorrem, reconhecemos imediatamente as situações, as angústias e os dilemas expostos como se dissessem respeito a uma característica humana fundamental.

É, mais uma vez, algo que poderíamos tratar como herança kafkiana. Como escreveu David Foster Wallace na palestra-ensaio “Um comentário sobre a graça em Kafka”, as evocações dos contos do tcheco são “inconscientes e subarquetípicas”, algo infantil e “primordial, da qual derivam os mitos”.

Tal aspecto também pode ser encontrado no livro de Guilhoto: o inespecífico garante a identificação coletiva das narrações, por mais exageradas que sejam. Lemos, parafraseando e adaptando Wallace, um tipo diferente de piada bem contada: ao nos depararmos com uma narrativa geral e crítica, somos transportados para uma história comum a todos que, em vez de causar o riso, traz “um belo insight metafísico”.

O recurso, no entanto, nem sempre funciona. No último conto, “O governo invisível”, o aspecto político–social é tratado de modo pouco elaborado e, na maior parte do tempo, trabalha com obviedades. O texto trata do sumiço dos governantes de um país que resulta na ascensão de um poder misterioso e impessoal. Ninguém sabe quem está no comando. Com o tempo, o comando invisível passa a ser guiado por regras compiladas no “Novo Livro”, uma espécie de Constituição engordada. Esse livro pauta a vida de todos os habitantes e promove uma ideologia de submissão completa. Ignorando outros detalhes menos importantes, a história se desenvolve como uma distopia genérica. Não combina com a inventividade dos outros textos. A forma literária também derrapa. Em várias passagens, a narração pende para o lado da tese política e empobrece o saldo final do livro.

Desconforto

Tal percepção de falha — sempre subjetiva — não diminui a qualidade do projeto literário de Guilhoto: o autor escreve, com engenho e habilidade, na contramão das obras confortáveis e voltadas para memórias e histórias familiares.

Ainda que vez ou outra peque pelo didatismo, o autor tem coragem de subverter até mesmo o modismo dos livros curtos. Em Os inúteis, a forma é de um livro fácil, mas o desconforto é sua matéria-prima: podemos até rir de nós mesmos, mas de desespero. Há esperança, só não para nós.

Quem escreveu esse texto

Guilherme Pavarin

Poeta e jornalista, é autor de O maquinário fantasma (Urutau).

Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025. Com o título “No meio dessa gente endomingada”