Arte, Crítica de Arte,
Invisibilidade oceânica
Ver e ser visto é uma questão persistente para artistas afrodescendentes dos países banhados pelo Atlântico
26nov2018 | Edição #15 set.2018Histórias Afro-Atlânticas é uma exposição necessária, com um recorte potente e enciclopédico da presença africana nas culturas de diversos países banhados pelo oceano Atlântico, e exibe obras e documentos relacionados aos “fluxos e refluxos” entre África, Américas, Caribe e Europa.
Por suas dimensões continentais, oceânicas, a mostra foi montada em dois espaços expositivos de São Paulo, o Masp e o Instituto Tomie Ohtake, e se espraia por mais de mil páginas de duas publicações distintas, que buscam dar conta da amplitude das pesquisas, das referências, dos textos, imagens e informações sobre a exposição e seu processo de realização.
O primeiro volume, com formato de catálogo, é recheado de belas imagens das obras e de diferentes textos produzidos pela equipe curatorial. São oito capítulos narrativos, que refletem os núcleos espaciais temáticos montados na mostra: “Mapas e margens”; “Emancipações”; “Cotidianos”; “Ritos e ritmos”; “Rotas e transes”: “Áfricas, Jamaica, Bahia”; “Retratos”; “Modernismos Afro-Atlânticos”; e “Resistências e ativismo”.
O segundo volume, Antologia, apresenta um conjunto referencial fundamental de 44 ensaios levantados durante a pesquisa e registros das discussões realizadas previamente à abertura da exposição. Escritos por autores de diferentes nacionalidades e épocas, os textos estão organizados em ordem cronológica e revelam a importância histórica e contemporânea do legado africano para a formação sociocultural de vários países afro-atlânticos, sobretudo o Brasil.
Os pontos de partida são “E eu não sou uma mulher?” (1851), assinado pela abolicionista americana Sojourner Truth, e “O negro brasileiro nas artes plásticas” (1968), do crítico baiano Clarival do Prado Valladares. E, apesar da existência de cerca de uma dezena de textos publicados no século 20, a grande maioria é mais recente, dos últimos dois anos, e está diretamente conectada com assuntos e questões da contemporaneidade.
As duas publicações são de alta qualidade estética e editorial e cumprem o papel de perpetuar, difundir e salvaguardar a belíssima imersão investigativa realizada pelos curadores. O bonito design separa o catálogo das obras, colorido, da Antologia, que não tem imagens, toda em preto e branco.
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A mostra traz cerca de quatrocentos documentos históricos e obras de mais de duzentos artistas, datados do século 16 ao 21, e abarcam uma ampla narrativa sobre os diálogos estabelecidos entre africanos e outros povos que forjaram a cultura dessas regiões. As obras estão agrupadas a partir dos núcleos citados e dos assuntos abordados neles: geografias, deslocamentos, temporalidades, utopias, espaços sociais, hábitos, costumes, festas, cerimônias, crenças, religião, influências, resistência, corpo e miscigenação.
O diálogo fica evidente não somente pelas aproximações contextuais, mas também por sutis junções formais, fruto de aproximações estéticas que atravessam gerações. Mesmo sem uma apresentação cronológica das obras, percebemos uma evolução histórica a partir da narrativa proposta na divisão nuclear e na linha do tempo, que tem como marco zero a chegada dos primeiros africanos no continente americano, em 1510, e como ponto final o assassinato da vereadora Marielle Franco, em março passado.
Ver e ser visto
Como afirmou o curador camaronês Simon Njami, para o africano na atualidade “existe a necessidade de ver e ser visto”. A ideia é compartilhada por teóricos que insistem em uma imprescindível releitura histórica que inclua a produção daqueles que ficaram omissos ao longo dos séculos.
Isso inclui praticamente todos os artistas não europeus ou norte-americanos, boa parte das mulheres, mesmo as europeias, e também os negros, africanos e afrodescendentes em geral, independentemente da nacionalidade. Nas palavras de Adriano Pedrosa, um dos curadores da exposição e diretor artístico do Masp, “a disciplina da história da arte, com suas raízes, estruturas e modelo profundamente europeus, é o aparato mais poderoso e duradouro do imperialismo e da colonização”.
De acordo com Njami, “o choque de ser visto não é mais apenas uma experiência ontológica, faz parte de uma abordagem política que levou inexoravelmente às independências (africanas). Para a pessoa que vê, isso desencadeia um processo de conscientização”. Uma consciência de que o brasileiro ainda carece, diga-se.
A monumental escala da exposição, que envolveu instituições e colecionadores do Brasil, Angola, Argentina, Colômbia, Cuba, Dinamarca, Estados Unidos, França, Holanda, Itália, Jamaica, Peru, Reino Unido, República Dominicana, e a longa pesquisa de diferentes museus e curadores, que resultou em duas expressivas publicações, ressaltam a seriedade com o qual o tema foi abordado.
A potência estética de alguns trabalhos salta aos olhos, e muitos emocionam pela carga energética e pela intrínseca verdade que suas abordagens carregam. Percebe-se a falta de alguns grandes artistas africanos ou afrodescendentes que estão inseridos no circuito mundial de arte, apesar de não faltarem nomes importantes desse mesmo circuito. Contudo, a revelação daqueles que se encontram atualmente na invisibilidade é um dos grandes feitos da mostra.
O desafio de mudança está posto e passa por uma tomada de consciência social que, apesar de ir além do meio artístico, tem nas artes um possível aliado, que pode contribuir para dar visibilidade a todas estas questões urgentes. “Ver e ser visto” é um primeiro passo para uma conscientização coletiva ampla, sendo o choque de quem vê tão grande quanto o de quem é visto, e a transformação torna-se assim bilateral. Assim Merleau-Ponty ressaltou o “poder de ver”: “Meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Aquele que olha para todas as coisas também pode olhar para si mesmo, e então reconhecer no que ele vê o ‘outro lado’ de seu poder de ver”.
Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.
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