Artes plásticas,
Tunga pós-Tunga
Exposição do Masp se ressente da ausência do artista morto em 2016, mas é um passo importante na consolidação de seu legado histórico
15nov2018 | Edição #9 mar.2018O artista francês Marcel Duchamp afirmava: “Aliás, são sempre os outros que morrem”. Na frase, gravada em sua lápide, ele comentava a impossibilidade de percebermos nossa própria morte e, ao mesmo tempo, reverenciava a condição do artista, que, por meio de sua obra, teria a possibilidade de se manter eternamente vivo. Se com a morte os ciclos produtivo e criativo que existem no pensamento e na prática artística são interrompidos, em contrapartida inicia-se um processo de salvaguarda de seu trabalho no sistema de arte, o que possibilita a suposta imortalidade. Durante um hiato indeterminado, entretanto, estabelece-se um tempo de ausência presente que ocasiona uma transição entre o fim de uma trajetória artística e o começo de um legado histórico.
Tunga: o corpo em obras é a primeira exposição acerca da produção do artista após seu precoce falecimento, aos 64 anos, em junho de 2016. De acordo com Isabella Rjeille, curadora da mostra no Museu de Arte de São Paulo (Masp), “a exposição propõe uma leitura de obras do artista e dos elementos articulados por ele como um corpo […] cuja sexualidade agencia e catalisa as relações que estabelece com o meio e os outros corpos”.
A seleção das obras seguiu um recorte temático, com referência ao programa do Masp para 2017, cujo tema era a sexualidade. São escolhas vinculadas a questões curatoriais, que também ressaltam uma das principais vertentes da sua obra: a sexualidade e sobretudo o erotismo estão presentes na produção de Tunga — cujos trabalhos constantemente sugerem conexões e encaixes formais, entrelaçamentos e união de corpos complementares, junção de elementos e forças ambivalentes.
Percebe-se um erotismo latente nas formas e nos conteúdos das instalações do artista. Nas suas exposições, contudo, a ativação desta energia era muitas vezes realizada por meio de performances e interações entre os elementos expostos, incluindo pessoas/performers, objetos e substâncias semanticamente carregadas. Ações que o artista chamava de instaurações e que, segundo a crítica Catherine Lampert, significava para Tunga “mais que aquilo que o dicionário descreve como ‘restauração ou renovação’: a arte adquire uma ‘alma’ que estava até então dormente, incompleta, que é reencarnada”.
O ápice de sua trajetória se deu em 2012, quando foi inaugurada a Galeria Psicoativa Tunga em Inhotim, organizada pelo próprio artista
A exposição Tunga: o corpo em obras marca este momento de transição e de absorção da obra do artista pelo museu. Obviamente não houve instaurações naquele espaço: o tempo, o maestro propositor, já não se encontra presente. Mas ressoam seu traço e sua poética, interpretados e traduzidos pelo outro. Este outro pode ser o curador e, de preferência, o público, para quem o artista agora tem de confiar a ativação “instaurativa” dos seus trabalhos. Definitivamente, trata-se da primeira exposição de Tunga pós-Tunga — e a primeira, de muitas que virão, sobre Tunga.
Institucionalização da obra
Quanto mais potente e reconhecido o trabalho daquele artista em vida, mas rápida será tal transitoriedade temporal do “artista ainda presente”. O sistema da arte rapidamente inicia uma inserção de seu legado de acordo com demandas institucionais, curatoriais, históricas e mesmo mercadológicas: grandes exposições são montadas, publicações importantes são lançadas e suas obras se valorizam — uma triste equação inerente ao sistema. A mostra no Masp marca essa passagem entre o tempo do artista e o tempo de seu legado.
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Com essa exposição (a primeira sobre a produção do artista curada por Rjeille), Tunga é “recebido” no mais importante museu brasileiro pela primeira vez — um reconhecimento institucionalmente tardio, porém realizado em um momento justo e oportuno. Não quero com isso dizer que Tunga não tenha sido reconhecido em vida, pois era considerado tanto pela crítica quanto pelo público especializado como um dos principais artistas brasileiros — e seguirá sendo.
Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão, ou Tunga, apelido da infância, nasceu em Palmares (PE), porém cresceu e viveu no Rio de Janeiro. Possui uma trajetória singular na arte brasileira, tendo desenvolvido um trabalho poético pessoal carregado de referências multidisciplinares, provindas da própria história da arte, mas também da filosofia, da psicanálise, da literatura, das ciências exatas e biológicas e da alquimia.
Tunga criou um léxico próprio — as “narrativas ficcionais de Tunga”, segundo a crítica Marta Martins —, no qual misturava histórias fantasiadas com outras mitológicas para “explicar” seu trabalho — um enredo que servia para o próprio artista tecer a sua obra, como uma trança de nó borromeano, conectando facetas aparentemente díspares por meio de performances, intervenções, instalações, vídeos, desenhos e pinturas.
Primeiro brasileiro a realizar uma exposição individual no Museu do Louvre, em 2005, Tunga participou ainda da Documenta de Kassel, da Bienal de Veneza, da Bienal de Havana e de inúmeras edições da Bienal de São Paulo. Realizou também mostras individuais na Argentina, Inglaterra, Espanha, Estados Unidos e França — país em que viveu quando jovem.
O ápice de sua trajetória se deu em 2012, quando foi inaugurada a Galeria Psicoativa Tunga no Museu Inhotim, em Brumadinho (MG). O prédio reúne grandes instalações e obras fundamentais de sua trajetória, e foram organizadas pelo próprio artista naquele espaço. Esse fato faz com que a galeria, em conjunto com seu ateliê e sua casa, ambas no Rio de Janeiro, sejam os locais onde, além de fruir a obra, podemos também sentir a presença do artista.
A montagem da galeria de Inhotim é fluida e misteriosa, formada por núcleos de instalações que se intercruzam visualmente e contextualmente. Existe um nítido diálogo entre os distintos trabalhos e entre estes e a arquitetura circundante. A relação entre o espaço e a instalação das obras era uma informação inerente aos projetos expositivos de Tunga, tendo se tornado uma das características mais impactantes de suas obras, normalmente ativadas e modificadas pelas já citadas instaurações.
Exposição sem o artista
Em Tunga: o corpo em obras, os trabalhos selecionados continuam emanando a potência formal e poética com que foram concebidos, mas a ausência do artista fica evidente. A expografia foi desenhada em função da separação temática proposta pela curadoria. Não acontece o possível — e almejado diálogo — entre as obras de Tunga e o prédio de Lina Bo Bardi. Nem sequer foi aproveitado o vantajoso pé-direito do local — um espaço diáfano que o artista, que criou um grande número de instalações penduradas, comumente utilizava em suas obras.
Acertadamente, em nenhum momento ele tenta ser um livro de artista: é uma publicação sobre o artista. Graficamente limpo e bonito, com muitas fotos
Contudo é normal que os museus incorporem a obra dos artistas falecidos dessa forma, de acordo com seus critérios curatoriais. O catálogo da exposição, por sua vez, parece estar próximo da linguagem do artista, e creio que ele aprovaria integralmente a forma e o conteúdo propostos na publicação. Em nenhum momento, acertadamente, ele tenta ser um livro de artista: é uma publicação sobre o artista e sua obra. O tratamento editorial é o de um livro: graficamente é limpo e bonito, com textos ilustrados e muitas fotografias, incluindo a imagem de todas as obras da exposição.
O texto de abertura é dividido em dois capítulos, o primeiro assinado por Heitor Martins, diretor-presidente do Masp, e o segundo pelo diretor artístico Adriano Pedrosa e pelo curador Tomás Toledo. Eles justificam a escolha de Tunga a partir do eixo curatorial da instituição e traçam um breve panorama de sua obra.
O primeiro ensaio, de Isabella Rjeille, é uma coerente análise entrelaçando os diferentes períodos da produção de Tunga, relacionando-os à sexualidade e ao erotismo. A amarração conceitual entre a obra e a temática proposta fica mais evidente na versão escrita do que na montagem da exposição, inclusive nas afinidades propostas entre as obras.
Catherine Lampert
A publicação conta também com outros textos de críticos e estudiosos que conhecem Tunga profundamente, como Suely Rolnik, Marta Martins e Catherine Lampert, esta última o grande destaque da publicação.
Lampert é uma das mais importantes historiadoras de arte do mundo — escreveu textos e organizou exposições de artistas como Francis Alÿs, Miquel Barceló, Frank Auerbach e Rodin. Ela foi diretora da Whitechappel Gallery em Londres, onde conheceu Tunga em 1988, quando realizou uma mostra do artista.
Lampert insere a obra de Tunga no contexto da história da arte, revelando as influências fundamentais e cotejando sua produção com a de Duchamp e Rodin
Seu ensaio, intitulado “Entre a língua e o palato”, aborda o uso da linguagem nos trabalhos do artista. Trata-se do prenúncio da monografia de Lampert sobre a obra de Tunga, que tem o potencial de inserir o artista no contexto da história da arte mundial. Lampert revela as influências fundamentais e coteja a produção de Tunga com a de artistas como Duchamp e Rodin. A erudição da autora e a sua intimidade com Tunga possibilitam uma leitura única sobre o significado da obra e o seu modus operandi.
Morfologias do erotismo
Outro texto inédito publicado no catálogo é “Morfologias do erotismo”, da artista visual, ensaísta e narradora de ficção Marta Martins, autora do livro Narrativas ficcionais de Tunga, fruto de uma investigação acadêmica sobre as histórias embutidas nas instaurações e instalações do artista.
Neste ensaio escrito especialmente para a exposição, Martins se detém na última série de esculturas de Tunga, intitulada Morfológicas. A autora ressalta com muita propriedade a dimensão erótica destes trabalhos, aproximando a produção do artista ao pensamento fundamental acerca do erotismo elaborado pelo pensador francês Georges Bataille, autor de História do olho (1928).
O texto “Um experimentador ocasional em equilíbrio instável”, de Suely Rolnik, foi originalmente publicado em 2007 e adaptado e revisado pela própria autora antes de ser reeditado em Tunga: o corpo em obras. A formação de Rolnik — psicanalista, escritora e curadora de arte, está estreitamente ligada às referências de Tunga, o que lhe permite uma elucidação única com relação à poética do artista. No ensaio ela destrincha as estratégias conceituais empregadas por Tunga cruzando-as com autores de distintas áreas do conhecimento, entre os quais Freud, Gilles Deleuze e Lygia Clark.
Outro ponto alto do catálogo é o fac-símile da raríssima publicação “O mar e a pele”, de 1977, que conta com um ensaio do renomado crítico de arte brasileiro Ronaldo Brito, fotografias do artista visual Arthur Omar e projeto gráfico do curador Paulo Venancio Filho. O texto e as imagens abordam a construção de uma das versões das obras seminais da trajetória de Tunga: Vê-nus.
No seu final, o livro conta ainda com uma lista completa das exposições coletivas e individuais realizadas pelo artista e uma bibliografia selecionada acerca de seu trabalho.
Afinal, como afirmou Georges Didi-Huberman, “a exposição é menos que um texto. É algo que desaparecerá dentro de três meses, portanto, é um experiência. E o texto existirá para sempre”. Que assim seja!
Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.