Arte, Crítica de Arte,

Paleta de cores

Estudo pioneiro sobre Modesto Brocos e o preconceito racial na pintura brasileira abre uma longa e relevante discussão

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

Faz poucos anos (cinco, para ser exato), um deputado federal, em defesa protocolada no Supremo Tribunal Federal, reiterava aquilo que havia publicado no Twitter causando polêmica: prevalece sobre os povos originários da África uma maldição que os marca a todos. Para a defesa do deputado, os africanos descendiam “de Cão (ou Cam), filho de Noé. E, como cristãos, cremos em bênçãos e, portanto, não podemos ignorar as maldições”.

O político, que na época era alvo de um inquérito no STF por preconceito e difamação, repisava uma passagem da Bíblia em que Noé amaldiçoara seu filho mais novo, Cam, por tê-lo visto nu, após uma bebedeira. Noé teria, então, esconjurado Cam (e seus descendentes), afirmando que, a partir daquele momento se tornaria escravo de seus irmãos. Reza a lenda que os filhos de Cam, além de escravos, se tornariam negros. Essa maldição serviu e vem servindo há séculos para justificar a exclusão de todos os negros dentro das sociedades ocidentais. Trago aqui esse episódio do deputado para chamar a atenção para a atualidade do livro lançado há pouco por Tatiana Lotierzo, Contornos do (in)visível. Racismo e estética na pintura brasileira (1850-1940).

Aqueles que se preocupam com a perpetuação do preconceito racial no Brasil como uma espécie de política de Estado (ou, pelo menos, como política de alguns “estadistas”) com certeza irão se interessar por esse livro, que, entre outras singularidades, acompanha as transformações por que passou aquela maldição bíblica, para tornar-se justificativa para o assédio, para a escravidão e para o extermínio dos povos de origem africana. E todo esse trabalho a partir da análise de uma determinada pintura produzida no Rio de Janeiro, em 1895, pelo espanhol Modesto Brocos y Gomez, hoje no acervo do Museu Nacional de Belas Artes, naquela cidade.

Lotierzo traz dados fundamentais sobre a consolidação paulatina daquela maldição em preconceito, assim como vasculha e analisa suas reverberações no plano da arte e da cultura brasileiras da segunda metade do século 19 até o início do século seguinte, levantando aportes relevantes para esse debate infelizmente ainda tão atual.

Objeto e sujeito

Outro índice de atualidade de Contornos do (in)visível é que ele vem a público num momento em que uma nova geração de artistas e intelectuais afrobrasileiros (mas não apenas) procura trazer para o debate a questão do negro como assunto e como produtor de arte no Brasil. O livro, é certo, pode convir para aprofundar a discussão, uma vez que extrai do cerne da arte brasileira do século 19 elementos originais para tal debate.

Mas a publicação de Tatiana Lotierzo não esgota seu interesse apenas nas questões relativas ao racismo e à representação do negro na arte aqui produzida. Contornos do (in)visível surge na arena dos livros sobre a arte no Brasil do século 19 como um exemplo de correção metodológica, que não vacila em lançar mão de autores prestigiados por, apesar das diferenças, pensarem na possibilidade de uma história da arte alheia a cânones historiográficos revelhos, porém ainda muito em voga em nossas universidades. Atenta aos ensinamentos de Michael Baxandal, Albert Boime e Georges Didi-Huberman, Lotierzo como que refunda certos pressupostos da história da arte entre nós.

Nesse processo — e esse é outro trunfo de Contornos do (in)visível, outro índice de sua atualidade —, a autora traz para o debate que se trava hoje sobre a pintura no Brasil durante as últimas décadas do século 19 a figura até então pouco sedutora (para a maioria dos nossos historiadores da arte) de Modesto Brocos y Gomez.

Brocos, ao que se sabe, nunca havia sido objeto de um estudo tão extenso e rigoroso como esse de Lotierzo, apesar do reconhecimento tácito de muitos sobre o quão importante para a arte e a cultura brasileiras é seu A redenção de Cam. A autora, em busca da formulação de uma rede de indagações que trouxessem outras possibilidades para a compreensão mais aprofundada daquela obra do pintor, acaba por trazer à tona uma série robusta de outras obras de Brocos. Obras que o revelam como um pintor interessado na situação do afro-brasileiro, sobretudo da mulher negra, produzindo um conjunto de pinturas que, até então esquecidas ou deixadas em segundo plano, com certeza alcançarão o interesse para o surgimento de novos estudos sobre Brocos e sua atitude em face das teses de branqueamento da população brasileira.

Nesse caminho, Lotierzo também chama a atenção para as publicações do pintor, não apenas aquelas lançadas no Brasil, sobre a formação do artista e sobre o ambiente artístico carioca, mas, sobretudo, para um trabalho de ficção, publicado em Valência em 1930, e jamais discutido por aqui. Trata-se da obra Viaje a Marte, em que Brocos dá vazão à sua crença no embranquecimento da “raça” negra, base ideológica que também o teria levado a pintar A redenção de Cam.

O quadro

A atualidade e importância de Contornos do (in)visível, porém, não o libera de pequenos senões que, em respeito à sua autora, me cabe chamar a atenção. O primeiro deles, e que logo nas primeiras páginas da “Apresentação” se destaca, é quando a autora, ao descrever A redenção de Cam, aponta a saia da senhora negra, representada à esquerda da tela, como sendo azul (p. 26), quando, de fato, ela é rosa, aliás, como a saia da segunda personagem feminina da pintura.

O equívoco seria de pouca importância não fosse tão aguerrida na autora a necessidade de desvendamento de questões que o artista apresenta no próprio corpo da pintura. E a área de tons de rosa que, de maneira significativa, cobre a parte de baixo dos corpos das duas mulheres, é um elemento, parece, importante para o estudo da obra, ainda mais se levarmos em conta que a calça que veste o único personagem adulto masculino no quadro é de um tom de cinza azulado.

Pertence ao senso comum a prática de associar a cor vermelha (e sua inúmeras tonalidades) à mulher, e o azul, ao homem. Enquanto o azul é a cor da transcendência e da espiritualidade, o vermelho está ligado ao sangue, ao sexo, à terra. Não tenho a intenção de discorrer sobre o fato de Brocos ter usado essas duas cores nas vestimentas de suas figuras, nem de salientar o fato de as mulheres representadas na tela (negras) usarem saias vermelhas e o homem (branco), azul. Porém, não posso deixar de lastimar o quanto Lotierzo aumentaria a força de sua análise da pintura se não tivesse se deixado levar por esse lapso.

Outro senão percebido na leitura do livro — e esse diz respeito à obra A quitandeira, de Antonio Ferrigno, de 1893, pertencente à Pinacoteca do Estado de São Paulo — traz outros prejuízos à análise da autora. Logo no primeiro parágrafo do segmento dedicado àquela pintura (p. 259), Lotierzo escreve: “O lampião aceso ajuda a enxergar os produtos à venda e sugere que já anoiteceu”. O lampião não está aceso, e a luz que ilumina parcialmente o interior onde está depositado o suporte com as mercadorias a serem vendidas é um resto de sol, o mesmo sol que ilumina com força a personagem da pintura — a quitandeira do título. Se a autora tivesse levado em consideração o fato de o lampião estar apagado e, mesmo assim, estar ali representado entre a luz do sol (a cena é registrada durante o dia) e a semiescuridão do ambiente ao fundo, quanto a análise dessa presença poderia trazer para uma compreensão mais profunda sobre a obra?

Creio que esses lapsos encontrados em um texto no geral tão rigoroso e centrado em extrair das obras pictóricas suas potencialidades de significação surgem do fato de que, apesar de todos os esforços, ainda é muito difícil deixar-se envolver realmente pela realidade que as imagens nos apresentam. Tenho para mim que ainda, entre nós, estudiosos brasileiros de história da arte, a supremacia do texto escrito ainda insiste em se sobrepor à nossa vontade de ver o que nos olha.

Supremacia do texto

Essa supremacia do texto sobre a potência de sentido das imagens também é perceptível no capítulo 1 do livro, denominado “O nome da tela”. Sem dúvida essa parte do livro talvez seja o momento principal de Contornos do (in)visível, espaço em que Tatiana Lotierzo dá o melhor de si para rastrear a estruturação e desenvolvimento do preconceito que condena os oriundos da África à escravidão e à marca da pele negra. Porém, mesmo citando uma ou outra obra visual, Lotierzo nunca as enfrenta, de fato, privilegiando sempre os documentos escritos. A autora fica nos devendo, portanto, um embate mais decidido com as pinturas de castas e outras fontes visuais que, sem dúvida, trariam dados importantes para avançar ainda mais nos problemas que ela levanta com tanto empenho.

O livro vem a público num momento em que uma nova geração procura trazer para o debate a questão do negro como assunto e como produtor de arte

Infelizmente, em suas considerações finais, Lotierzo não cumpre satisfatoriamente a expectativa criada com o subtítulo de seu livro — Racismo e estética na pintura brasileira (1850-1940) —, uma vez que deixa de lado artistas importantes para o debate proposto, e cujas obras produzidas no período que a publicação promete tratar não são sequer mencionados. Tarsila do Amaral e sua tela A negra, de 1923, hoje integrante do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, é um bom exemplo dessa lacuna. Algumas pinturas produzidas por Candido Portinari durante os anos 1930 também.

Nas páginas derradeiras de Contornos do (in)visível, a autora prefere fazer emergir problemas percebidos apenas nas obras de alguns artistas da passagem do século 19 para o seguinte, como o já citado Ferrigno e também Almeida Jr., assim como a de dois artistas negros que ainda aguardam estudos mais aprofundados: Rafael Pinto Bandeira e Arthur Timotheo da Costa. A opção por esses artistas, em detrimento daqueles ligados ao Modernismo, talvez tenha surgido pela compreensão de que esses últimos já possuem fortuna crítica maior que a dos dois primeiros, embora a discussão sobre a obra de Tarsila do Amaral e a questão racial no Brasil, por exemplo, ainda aguarde discussões maiores.

O empenho de Lotierzo em sublinhar a importância de estudar Pinto Bandeira e Arthur Timótheo da Costa, porém, me motiva a finalizar esses comentários sobre seu livro tão significativo me alinhando à autora ao sugerir mais outro artista afro-brasileiro a ser estudado com atenção: Horácio Pinto da Hora, com destaque para sua tela Cecy e Peri, pertencente ao Museu Histórico de Sergipe. 

Nessa pintura sem data (mas produzida na segunda metade do século 19), o herói de José de Alencar é retratado com feições de um homem negro, apesar da indumentária de sabor “indígena”. Uma inversão do mito do branqueamento da população brasileira? A ver.

Quem escreveu esse texto

Tadeu Chiarelli

Escreveu Pintura não é só beleza: a crítica de arte de Mário de Andrade (Letras Contemporâneas).

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.