Arte, Crítica de Arte, Filosofia,

Imagens passantes

Em livro que transita entre a literatura e a filosofia, Didi-Huberman se debruça sobre o enigma das imagens fugidias

01set2018 | Edição #15 set.2018

O poeta que perambula pelas ruas de Paris do século 19 avista uma moça. Ela passa sem se demorar, mas por tempo suficiente para ser notada. Sua presença efêmera deixa ao autor do poema uma marca do desaparecimento. A partir da falta produzida pela passagem fugidia que o capturou por alguns instantes, ele constrói seus versos sobre o encantamento repentino e a sensação de que a mulher que poderia ter sido amada desapareceu para sempre na multidão. Esta cena, que conhecemos no poema “A uma passante”, de Charles Baudelaire, parece constituir espécie de modelo inicial para os capítulos de Imagens-ocasiões, do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman. 

Imagens-ocasiões reúne 29 textos selecionados em um projeto maior do autor, o volume Aperçues, lançado neste ano na França. A presença da letra “e” no fim da palavra em francês indica que ela é feminina. Diferente do masculino aperçu, que significa “apanhado”, “olhada”, “exame rápido”, a aperçue (traduzida por apercebença) é “mais bela e mais estranha”. Como a musa inspiradora de Baudelaire, aperçue é a imagem que passa e abandona aquele que a apercebe. 
 

Didi-Huberman não está preocupado com as imagens que conseguimos fixar, olhar com atenção e tempo e enfim possuir, mas com estes lampejos, apercebenças, vaga-lumes cuja luz atravessa nosso campo de visão para depois sumir no escuro da noite. Interessado em escrever sobre “os gritos de uma mulher louca de dor”, “alguns pedaços de pés”, “a dança das falenas em torno à chama que vai consumi-las”, ele define seu trabalho como “o artesanato do impossível que é arrancar qualquer aparição do esquecimento”. Do curto momento de passagem, no qual não é possível ver (ação que consegue transformar a coisa vista em objeto de observação), nasce “uma prática da escrita intermitente”, dedicada a isso que percebemos de maneira fugaz. 

A extensa produção de Didi-Huberman já conta cerca de cinquenta livros. Desde os anos 80, o autor já tinha interesse pelas imagens e pela maneira como elas podem ser lidas. Nesse longo trajeto, encontramos diversos textos nos quais autores canônicos da história da arte são alvo de crítica. É o caso de Diante da imagem (1990). Ao comentar o afresco Madona das sombras, de Fra Angelico, o autor aponta os limites das análises de Erwin Panofsky (e de todos historiadores que seguem sua linha de análise iconográfica), que falaria apenas das certezas, se afastando e silenciando sobre os paradoxos e os enigmas que as imagens da arte colocam aos espectadores. 

Aliado à psicanálise freudiana, Didi-Huberman propõe que as imagens da arte sejam lidas como sintomas, signos de um conflito inconsciente ao qual não temos acesso. O historiador diante da imagem, portanto, não seria aquele que dá o parecer seguro e fechado do especialista. Ele é o sujeito cujas certezas foram estremecidas e que trabalha agora no campo do não saber, termo que não deve ser entendido como sinônimo de ignorância ou recusa do conhecer. 

Em seu novo livro, as imagens passantes portam esse não saber. Elas não são “o que a escuridão completa seria para a luz plena”, mas “fracos lampejos” que nos deixam “desejantes de revê-los”. Se a discussão sobre o não saber é retomada e dialoga com escritos anteriores do autor, sua forma literária se afasta de seus textos mais acadêmicos. O leitor encontra capítulos curtos que, sem formarem um grande sistema, mesclam discussões filosóficas, lembranças do passado de Didi-Huberman, sonhos que o autor teve, trechos de pinturas e filmes que ele comenta. 

Nomes como Maurice Merleau-Ponty, Sigmund Freud, Cornelius Castoriadis, Theodor Wiesengrund Adorno e Aby Warburg aparecem nestes breves comentários como autores importantes, mas as grandes referências de Didi-Huberman parecem ser Walter Benjamin e Ernst Bloch e suas respectivas obras Rua de mão única (1928) e Rastros (1930), nas quais, nos anos 80, Didi-Huberman encontrava um “princípio de escrita por montagens de fragmentos nos quais reflexões e narrativas, conceitos e contos se enriqueciam perpetuamente uns aos outros”. 

Cada capítulo termina com uma data, mas a ordem dos textos não é cronológica. As lembranças vão e vêm, se embaraçam, sem obedecer ao tempo linear dos calendários. A atividade do autor quer “pensar com os traveses que nos assombram, nos travessam e desafiam nosso pensamento”. Os conceitos de Freud acompanham a forma de costurar as frases: de um lado, a atenção flutuante do analista que repara nas partes aparentemente periféricas e desimportantes do que é dito; do outro, o trabalho psíquico do paciente, que por meio da perlaboração traz à tona as lembranças esquecidas. 

Versão brasileira

Ao longo da leitura desta tradução para o português, o leitor depara com 21 fotos de oito fotógrafos brasileiros. Dispostas entre os capítulos e sem relação direta com os textos, elas podem ser entendidas como outras apercebenças acrescentadas à obra fragmentária de Didi-Huberman. 

Ele não se preocupa com as imagens que conseguimos fixar, mas com lampejos que atravessam nossa visão para depois sumir

Ana Lucia Mariz assina as três fotos da cortina que esconde uma silhueta humana, que por trás dos panos ganha traço fantasmagórico. Andréa Barreiro faz fotografias desfocadas, como se uma lente embaçada ou o tremor de suas mãos perdessem a precisão da cena visada. Em uma delas, dois vultos brancos encostam em mancha preta. Tudo se passa como se a sombra fosse da própria fotógrafa, que registra uma pessoa ao lado de um animal. Mas a imagem desautoriza a certeza sobre o que foi capturado. 

Elaine Pessoa, Sheila Oliveira, Marilde Stropp, Carolina Krieger, Helô Mello e Marcelo Costa também assinam fotografias que, cada uma a seu modo, apresentam movimentos, distorções, passagens. 

Em um dos textos mais biográficos, o historiador das incertezas da arte declara que já atingiu certa idade e não pode mais esperar a serenidade cara a alguns poetas para realizar seus projetos de escrita. Seu tempo presente situa-se entre “a paciência do conceito” e “a impaciência do gesto”: dessa passagem, nasce menos um resultado do que um processo. Sempre aberto a novas imagens, o inacabamento do trabalho não é um erro de cálculo, mas maneira de manter “vivo o desejo, isto é, a inquietude e a abertura, pela obra”. 
 

Quem escreveu esse texto

Natália Leon Nunes

É mestranda em filosofia na USP e dá aulas no espaço do crítico Rodrigo Naves.

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.