Arte e fotografia, Crítica de Arte, Poesia,
A arte depois da fotografia
John Berger e Montejo Navas discutem as mudanças sociais provocadas pela massificação das imagens e o impacto que elas tiveram sobre as demais artes
08nov2018 | Edição #2 jun.2017O aparecimento da fotografia, em 1839, abalou toda a esfera estética. Como explica John Berger em Para entender uma fotografia, seus registros afetaram não só as artes plásticas, logo compelidas a rever seus fundamentos, mas revolucionaram os suportes materiais da memória humana — uma ruptura que só tem paralelo com a invenção da escrita.
“O que fazia o papel da fotografia antes da invenção da câmera? A resposta esperada talvez fosse a gravura, o desenho, a pintura”, diz Berger: “Mas a resposta mais reveladora poderia ser: memória, lembrança. O que as fotografias fazem no espaço era previamente feito na reflexão”. As imagens captadas mecanicamente substituíram as palavras como principal esteio das nossas recordações.
E, assim como a passagem de uma cultura oral para uma civilização letrada mudou a poesia e a filosofia (como mostra Eric Havelock em Prefácio a Platão), a massificação da fotografia também teve forte impacto na linguagem verbal, como sugere Adolfo Montejo Navas em Fotografia & Poesia (afinidades eletivas). Mas até que ponto a arte absorveu as práticas fotográficas, sobretudo depois que os quadros e estátuas se distanciaram da realidade visível?
Em seu livro, Navas retoma o clássico debate sobre a identidade entre as artes iniciado na Antiguidade por Simônides de Ceos (“A pintura é poesia silenciosa, a poesia é pintura falante”). Não é difícil apontar semelhanças entre duas linguagens, mas até que ponto é possível correlacionar signos dispostos no espaço, como as imagens, com aqueles que se sucedem no tempo, como as palavras?
Para Navas, isso é factível porque tanto a foto como o poema são erigidos como “tempos em suspensão”: ambos criam universos formais cerrados, em oposição à prosa e ao cinema, que são abertos e lineares. “A fotografia e a poesia são mais abissais que sequenciais. Nesse sentido, podem ser consideradas artes verticais, não horizontais.” Elas não se baseiam na sucessão, como os signos musicais, mas se erguem sobre um mesmo lugar, como a arquitetura.
Distanciar a poesia da música e aproximá-la das artes plásticas não é tarefa simples, dada a quantidade de poemas musicados (basta lembrar a Ode à Alegria, de Schiller, na Nona Sinfonia de Beethoven). Navas enfrenta a dificuldade argumentando que as artes temporais são essencialmente narrativas, enquanto a fotografia e a poesia são descritivas ou, mais precisamente, apresentativas: “O poeta não descreve a cadeira: a põe na nossa frente”, afirma o Prêmio Nobel Octavio Paz. Com a imagem sucede o mesmo: uma “fotografia não conta uma história, mas deixa-nos a liberdade de imaginá-la”, explica o cineasta Abbas Kiarostami.
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Mas, embora se possa unir escrita e imagem, como enquadrar nessa tese os poemas narrativos de Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare e Goethe? Navas sente necessidade de circunscrever sua análise a “uma poesia que não quer ser extensa, na qual a percepção visual e escrita persegue uma forma breve”.
Ele reconstitui então o longo caminho da “poesia visual” desde os caligramas gregos, mas ressalta que é só com Apollinaire e Mallarmé “que se produz um verdadeiro corte epistemológico na poesia”. Começa aí a “destruição da frase em favor das palavras”, seguida da destruição das “palavras em favor das letras”.
Descoladas do real, as imagens isoladas são sempre ambíguas: construímos seus significados atribuindo a cada cena um passado e um futuro
A partir daí, a poesia começa “a tornar simultâneas suas condições espacial e temporal” e “entra em sintonia com as transformações da leitura na metrópole anunciadas por Benjamin” (nos jornais e anúncios publicitários). Mas é só nos anos 1970 que “a fotografia passa a fazer parte do discurso da poesia visual”. Entre os representantes dessa “escritura predominantemente visual” podem ser citados John Cage, Paulo Bruscky e Wlademir Dias-Pino: a poesia atual escreve com imagens.
Ao contrário do que ocorria no século 19, hoje ninguém mais contesta a artisticidade das fotos. Mas a fotografia precisava mesmo desse reconhecimento oficial? Não, não precisava. Segundo Berger, “a fotografia não merece ser considerada uma das belas-artes”, até porque sobreviveu ao declínio da pintura e escultura, que se isolaram das massas ao se tornarem bens de monopólio.
Em contraste, as fotos possuem pouco ou nenhum valor, já que não trazem em si o valor da raridade: “O princípio mesmo da fotografia é que a imagem resultante não seja única, mas, ao contrário, infinitamente reproduzível”. Como nota Pierre Bourdieu, a fotografia é a única prática artística acessível a todas as classes.
Mas o que é uma fotografia? O registro de uma coisa vista: “A fotografia é o resultado da decisão do fotógrafo de que vale a pena registrar que um evento ou um objeto específico foram vistos”. Por isso a fotografia já é uma mensagem sobre aquele acontecimento: “Eu decidi que a visão disso vale a pena ser registrada”.
Por isso, diz Berger, o conteúdo da fotografia é o tempo: “O verdadeiro conteúdo de uma fotografia é invisível, por derivar de um jogo, não com a forma, mas com o tempo (…). A fotografia, ao ser exercida, testemunha uma opção humana. Essa opção não é entre x e y: mas entre fotografar no momento x ou no momento y”.
Cada foto retira o objeto do seu continuum temporal e, nesse sentido, refere-se a um processo que nunca é visto. Diferentemente de uma pintura, que extrai suas forças de suas referências internas, uma foto sempre aponta para suas referências externas: “Dizendo de outro modo: a pintura interpreta o mundo, traduzindo-o para sua própria linguagem. Mas a fotografia não tem uma linguagem própria. Aprende-se a ler uma imagem fotográfica como se aprende a ler pegadas ou cardiogramas. A linguagem com a qual lida é a linguagem dos acontecimentos. Todas as suas referências são externas a ela”.
Dessa perspectiva, a fotografia se opõe às demais artes: “Um diretor de cinema pode manipular o tempo como um pintor pode manipular a confluência dos fatos que ele retrata. Mas não o fotógrafo de uma imagem imóvel. A única decisão que ele pode tomar é sobre a escolha do momento a ser isolado. Mas é essa aparente limitação que dá à fotografia seu poder singular. O que ela mostra invoca aquilo que não é mostrado”.
Só a narração de um acontecimento pode nos oferecer uma compreensão clara da história. As imagens estáticas, contudo, não têm esse poder: “Fotografias por si mesmas não narram. Fotografias preservam as imagens instantâneas”. Elas constituem apenas citações da realidade.
Descoladas do real, as imagens isoladas são sempre ambíguas: construímos seus significados atribuindo a cada cena um passado e um futuro, inserindo aquela cena numa narração que determina o seu sentido.
Qual é então o valor de verdade desses signos incompletos? A importância de uma foto depende de sua relevância para a coletividade: “A fotografia é eficaz quando o momento escolhido para ser registrado contém um quantum de verdade que é aplicável de modo geral, quando revela tanto o que está ausente como o que está presente”. Cada fotógrafo toma partido diante do mundo. Toda imagem encerra um ponto de vista sobre o real, daí o papel crucial desempenhado pelas fotos na luta ideológica.
De acordo com Berger, a fotografia só registra a aparência das coisas, mas seu poder deriva precisamente disso, porque todos agem em razão de aparências: “Nossa reação às aparências é muito profunda, e inclui elementos que são instintivos e atávicos”. Uma aparência pode, por si só, despertar o desejo sexual ou o engajamento político. Enquanto a maioria das artes se baseia na contemplação passiva dos objetos, a fotografia constitui um chamado à ação.
Matéria publicada na edição impressa #2 jun.2017 em junho de 2018.
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