Ciências Sociais,
Toda mulher negra é um quilombo
Coletânea de escritos de mulheres quilombolas é obra essencial para construir um país menos desigual
01jan2021 | Edição #41 jan.2021Quando foi convidada pelo jornal O Globo para expressar seus desejos para 2020, Conceição Evaristo escreveu um poema. A aclamada escritora nos dizia que o ciclo que se iniciava marcaria um tempo de aquilombamento, que teríamos de seguir firmes buscando o momento certo para o pranto e para o grito. Nos dois últimos versos, interpreta uma famosa frase como uma mística quilombola: “a liberdade é uma luta constante”. Lembro que, ao ler o poema, tomei o sentido do verbo aquilombar como uma reunião entre pessoas negras, a construção de um espaço seguro.
Mas, para além de uma palavra acolhedora, aquilombar nos conecta à nossa ancestralidade porque é, em si, a nossa ancestralidade. Quando saudamos Aqualtune, Sabina e Dandara dos Palmares como algumas das primeiras líderes femininas que lutaram pela liberdade do povo negro em território brasileiro, estamos falando de mulheres quilombolas. E a luta negra de hoje se vê refletida nos quilombos.
Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas retoma um laço importante entre mulheres negras e é significativo que Djamila Ribeiro tenha escolhido o livro para inaugurar o selo Sueli Carneiro, da editora Jandaíra (antiga Pólen). Organizado por Selma dos Santos Dealdina, quilombola da comunidade Angelim 3, do Território do Sapê do Norte, no Espírito Santo, o livro reúne escritos de dezoito mulheres de diferentes comunidades quilombolas para tratar de temas fundamentais à nossa sociedade a partir de suas cosmovisões e elaborações de mundo. A publicação é um resgate do que habita em nosso seio e ao nosso lado.
De beleza singular, a coletânea se inicia com duas canções de Ana Cleide da Cruz Vasconcelos sobre o povo negro na Amazônia e se encerra com poemas de Dalila Reis Martins, Mônica Moraes Borges, Rejane Maria de Oliveira, Andreia Nazareno dos Santos e Nilce de Pontes Pereira dos Santos sobre ser quilombola. No miolo, uma seleção de textos sobre política, território, identidade, violência doméstica, pluralismo jurídico, trajetória acadêmica e ancestralidade.
Na apresentação, Djamila Ribeiro, coordenadora do selo, não faz recorte de público. Para ela, a coletânea é uma importante contribuição histórica para o Brasil. É, sim, obra essencial para que pessoas negras possam compreender suas próprias trajetórias e identidades como um povo, mas igualmente importante para a construção do país que demandamos.
No Brasil, há mais de 6 mil quilombos. Aproximadamente, 3.386 são certificados pela Fundação Cultural Palmares, e 181 são territórios titulados. Existem 1.691 processos para regularização de territórios quilombolas abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) aguardando a formalização de um direito ao território que pertence ancestralmente às comunidades quilombolas e que é garantido pela Constituição Federal de 1988.
Para além de uma palavra acolhedora, aquilombar nos conecta à nossa ancestralidade
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Selma dos Santos Dealdina escreve que a certidão da Fundação Palmares é uma alforria simbólica para as comunidades quilombolas. Não só certifica que as pessoas que lá habitam são dignas de direitos, como comprova para um país construído sob uma lógica europeia que as experiências e os saberes dessas pessoas existem. Retomo uma frase de bell hooks: “Dentro de uma cultura supremacista branca, não ter uma documentação é não ter uma história legítima. Na cultura do esquecimento, a memória sozinha não significa nada”.
Negligência do Estado
Considerando o ritmo das titulações, a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e a ONG Terra de Direitos estimam que o Estado levaria mais de seiscentos anos para titular todos os quilombos do país. Estimativa que deve aumentar, pois o cenário tem se agravado drasticamente desde a posse de Jair Bolsonaro — que comparou comunidades quilombolas a gado — e a nomeação de Sérgio Camargo para a liderança da Fundação Palmares.
Quem habita no contexto urbano tende a saber muito pouco sobre a realidade no campo. Nós, mulheres negras urbanas, que reivindicamos o aquilombamento como uma estratégia de acolhimento, também seguimos essa lógica. Muitas vezes, ao falarmos das experiências de mulheres negras, deixamos de lado as quilombolas. Nesse sentido, o artigo da educadora Givânia Maria da Silva, do quilombo Conceição das Crioulas, em Pernambuco, é um dos pontos centrais da coletânea. Seu texto faz uma provocação às teorias do feminismo negro. Mesmo que a cutucada de Silva seja apenas uma provocação inicial para um assunto que merece bastante atenção, chacoalha o pensamento de quem lê.
As mulheres quilombolas atuam como um acervo da memória coletiva; com elas estão registradas as estratégias de luta e resistência, os conhecimentos guardados e repassados. Apesar disso, escreve Silva, mulheres quilombolas continuam ignoradas nos debates teóricos e nas teorias feministas, ocupando posição de invisibilidade, seja pelo total desconhecimento das suas especificidades, seja porque essas teorias ainda não são facilmente transpostas para o universo delas. Para as mulheres quilombolas, alguns conceitos elementares aos feminismos não correspondem ao seu sentido de ser e estar no mundo.
É preciso retomar a convocação de Sueli Carneiro: as lutas das mulheres negras não podem ser circunscritas às discussões do feminismo branco, pois nascem de outras bases. Levar em conta esses aspectos é relevante porque são eles que influenciam a construção de uma identidade racial e de gênero nos quilombos e ordenam bandeiras e estratégias de lutas.
No quilombo ou na cidade, mulheres negras têm sido guardiãs da cultura afro-brasileira, do sagrado, do cuidado, das filhas e dos filhos, dos griôs, das sementes, da preservação de recursos fundamentais para a garantia dos direitos. O lançamento do livro faz evocar novamente os versos de Conceição Evaristo: “É tempo de ninguém se soltar de ninguém,/ mas olhar fundo na palma aberta/ a alma de quem lhe oferece o gesto./ O laçar de mãos não pode ser algema/ e sim acertada tática, necessário esquema”.
Matéria publicada na edição impressa #41 jan.2021 em dezembro de 2020.
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