Ciências Sociais,

Por um olhar ao Sul

Em seu livro mais militante, sociólogo português usa Paulo Freire e Gandhi como exemplos de globalização anti-hegemônica

01out2019 | Edição #27 out.2019

Nos anos 1970, quando usava barba, calçava sandálias de couro, vestia jeans surrados e lotava auditórios, Boaventura de Sousa Santos se tornou conhecido no Brasil por seu trabalho sobre direito dos oprimidos, lutas por moradia e pluralismo jurídico. Poucos sabiam que ele também se interessava por ciência e epistemologia, tendo publicado em 1977 um importante ensaio sobre o tema na revista da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com o título “Da sociologia da ciência à política científica”. 

Nesse trabalho, afirmava que a ciência contemporânea e a prática científica internacional deveriam ser analisadas no contexto socioeconômico e político do mundo à época. Portanto, sob a dialética do imperialismo — sistema marcado pela dominação dos países centrais sobre os países periféricos — e do nacionalismo. Contra o senso comum, segundo o qual a ciência não teria a ver nem com um nem com outro, Boaventura afirmava que o argumento do internacionalismo universalista e igualitário falseava o modo dominante da prática científica. 

“Trata-se de uma ideologia que visa constituir a ciência em aparelho de legitimação das ordens interna e internacional instituídas. A ciência, enquanto sistema dominante de produção, distribuição e consumo de conhecimentos científicos, reproduz e reforça a estrutura de dominação econômica e política, quer no plano interno, quer no plano internacional”, dizia.  

Após ter retomado o tema em concurso para a cadeira de economia em Coimbra (1987) e em Toward a New Legal Common Sense (1995), Boaventura aprofunda a discussão trinta anos depois em O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Só que, agora, no contexto da negação à epistemologia prevalente nos países do Hemisfério Norte e nas teorias críticas surgidas a partir de experiências políticas alternativas no Sul. Ou seja, na semiperiferia do mundo, correspondendo a Europa meridional, América Latina, Ásia e África. 

“Epistemologia do Sul” é um conceito que o autor propôs na década de 1990, com o objetivo de ampliar o campo de discussões sobre a diversidade epistemológica no mundo. Juntamente com a hierarquia de sistemas econômicos e políticos, a hierarquização dos saberes alimenta a persistência das culturas de raiz eurocêntrica e, por tabela, da colonização epistemológica do Sul pelo Norte. Daí, diz Boaventura, a necessidade de dar visibilidade às alternativas epistemológicas emergentes no Sul, assegurando assim uma revisão das estruturas do conhecimento moderno. 

Resistência

Se a epistemologia do Norte tende a desqualificar os conhecimentos rivais como não científicos, agindo como cartório de reconhecimento de validade científica, os experimentos alternativos de resistência do Sul são forjados por lutas protagonizadas por grupos marginalizados capazes de resistir ao capitalismo e ao colonialismo. No primeiro caso, o que se tem é uma ciência europeizante presa na sua própria circularidade, uma vez que só resolve problemas que ela própria define como científicos. No segundo caso, estão os lugares policêntricos de aprendizagem, com suas prioridades específicas e suas diversidades, saberes e resistências. Nessa linha, entre as experiências estudadas por Boaventura estão, por exemplo, a pedagogia do oprimido de Paulo Freire e a pedagogia da tradução intercultural de Gandhi, que, por propiciar articulações transnacionais entre movimentos sociais, viabilizaria um dos objetivos das epistemologias do Sul: a globalização anti-hegemônica.     

O argumento de Boaventura de Sousa Santos — agora com a experiência de quem escolheu uma favela carioca como estudo de caso no doutorado em Yale, acompanhou o processo de independência das colônias africanas e sofreu a opressão das ditaduras portuguesa e brasileira — é retomado de modo ainda mais aprofundado, sempre com base na premissa de que um dos conflitos mais importantes do século 21 gira em torno do conhecimento. 

Cria de Coimbra, Boaventura escolheu uma favela carioca como estudo de doutorado em Yale 

Durante muito tempo, as teorias críticas desenvolvidas nos países centrais não atingiram os resultados esperados: em vez de transformarem o mundo, foram cooptadas pelo pensamento conservador. Apesar de sua sofisticação e rigor, o pensamento crítico europeizante teria perdido as condições de formular alternativas críveis que fortalecessem lutas contra a dominação e a opressão. Como forjá-las, então? 

A saída estaria na capacidade de aprender com os novos agentes de transformação democrática, recriando o próprio conceito de democracia. Dito de outro modo, a saída estaria nas epistemologias do Sul, que permitiriam transformar o mundo ao mesmo tempo que ele é continuamente reinterpretado. Essa reinterpretação permanente, destinada a “ocupar” as concepções hegemônicas das epistemologias do Norte, só é possível em contexto de lutas capazes de mobilizar múltiplos tipos de conhecimento. Lutas que, a partir do diálogo intercultural e interpolítico e dos saberes do Sul, exigem um processo de construção coletiva, sem intelectuais de vanguarda. 

Mesmo assim, depois de discutir os conceitos de luta e experiência e de propor metodologias de pesquisa capazes de “descolonizar” as ciências sociais, fundadas em relações sujeito-sujeito, e não em relações sujeito-objeto, Boaventura afasta o risco de maniqueísmos, advertindo que a dicotomia Norte-Sul tem de ser vista com cuidado. Afinal, essa dinâmica não é simetricamente oposta ou excludente. 

A reflexão coerente nesse campo temático, ao longo de meia década de vida acadêmica, é uma das marcas do autor, que, com quase oitenta anos, permanece ativo, lotando auditórios — mas sem usar mais sandálias de couro nem jeans surrados. 

É preciso lembrar, todavia, que seus trabalhos iniciais sobre conhecimento, senso comum, ciência e epistemologia eram basicamente acadêmicos. Já O fim do império cognitivo — que se insere numa linhagem heterodoxa do marxismo, influenciada pelo austro-marxismo, por Gramsci e pelos filósofos frankfurtianos — revela seu lado militante. É a faceta graças à qual Boaventura foi além do público restrito no campo da sociologia do direito, tornando-se bastante conhecido no Brasil sobretudo depois de ter ajudado a criar o Fórum Social Mundial. 

Se aqueles trabalhos tinham estilo circunspecto, um imperativo na universidade coimbrã, esse livro prima pelo ativismo. O texto é fluido, a narrativa é engajada e o objetivo do autor é ambicioso e polêmico. Pode-se gostar do livro ou criticá-lo, sob a justificativa de que seria uma pregação para convertidos. Mas, em tempos bolsonaristas, de desprezo às ciências humanas e à liberdade de cátedra, não se pode ignorá-lo.

Quem escreveu esse texto

José Eduardo Faria

Escreveu Direito e economia na democratização brasileira (Saraiva).

Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.