Direito,

Novos horizontes para as leis

Livros com enfoques distintos apontam para o futuro do direito no capitalismo globalizado

28nov2018 | Edição #18 nov.2018

As inovações tecnológicas das últimas décadas do século 20 e das primeiras do século 21, sucedendo-se em ciclos cada vez mais curtos, causaram um impacto corrosivo no universo jurídico. Excessivamente formalistas, burocratizadas e organizadas com base em leis e códigos quase sempre ultrapassados, as instituições de direito não conseguiram acompanhar transformações sociais e econômicas. 

Presas a uma concepção estrita, tais instituições continuaram encarando a sociedade como um sistema dotado de estruturas estabilizadas, e a uma ordem normativa editada por um Estado soberano, encarando os tribunais como espaços privilegiados de resolução de conflitos. No dinâmico processo de destruição criadora da virada do século, as mudanças na economia inviabilizaram mecanismos jurídicos de controle e direção que se baseiam na dicotomia entre constitucional e inconstitucional, legal e ilegal. Com isso, as instituições de direito não conseguiram lidar com a diversidade dos novos tipos de litígio, com o enredamento técnico das cadeias produtivas e com as interdependências dos mercados. 

Direito transterritorializado

É esse o pano de fundo do livro de Benoit Frydman sobre o fim da concepção clássica de Estado de Direito. Uma normatividade nova e mais complexa, sob a forma de códigos, substitui o modelo de normas gerais, abstratas e padronizadoras. De certo modo, Frydman tenta responder a perguntas que o direito tradicional não consegue. Se os direitos civis nasceram contra o Estado, o que acontecerá com eles em face do refluxo do Estado-nação decorrente da transnacionalização dos mercados? 

Se a política vem sendo esvaziada por uma economia global e multicêntrica, a quem cobrar responsabilidades? Com a redução do alcance do direito positivo, a expansão do direito internacional e o ressurgimento da lex mercatoria, formulada pelas empresas mundiais na medida de suas necessidades, a ordem jurídica não tende a se fragmentar em sistemas normativos distintos? 

O denominador dessas questões é a ideia de que as formas clássicas do direito positivo são incompatíveis com as regulamentações promovidas na economia globalizada por organismos multilaterais, como o Banco Mundial e a OCDE. Quanto mais os mercados se globalizam, menor tende a ser o poder de regulação dos sistemas jurídicos nacionais. A operação do direito vai, assim, deixando de ser territorial para assumir dimensões funcionais em escala mundial, ainda que com limites temáticos. 

A operação do direito vai deixando de ser territorial para assumir dimensões funcionais em escala mundial

Desse modo, a unidade do direito cede lugar a fragmentos jurídicos condicionados pelas lógicas que orientam os diferentes campos sociais aos quais se referem. Frydman também discute uma normatividade ainda mais específica — as normas técnicas que estabelecem padrões internacionais (standards) para a produção e para o comércio, e que são produzidas não por Estados, mas por entidades privadas e/ou semipúblicas, como a International Organization for Standardisation (ISO).

Nesse cenário de um sistema jurídico pluralista, que propicia uma “governança multinível”, o direito positivo não desaparece, mas muda de função. Não é mais um instrumento de controle social, como no tempo do Estado liberal. Nem um mecanismo de promoção de justiça social, como no período do Welfare State. É, agora, uma espécie de “correia de transmissão” entre as diferentes normatividades; um mecanismo de mediação e coordenação de regulações setoriais funcionalmente diferenciadas. 

O problema desse funcionalismo extremado — e essa conclusão o autor fica a dever aos leitores — é que, se por um lado ele atende às necessidades da economia, por outro releva as questões sociais. Como tantos juristas com formação sistêmica, o autor as trata como se pudessem ser enfrentadas apenas por mecanismos compensatórios, por meio de políticas focalizadas de assistência social. 

Esse equívoco não é cometido por Pierre Legrand. Especialista em direito comparado, ele concentra a atenção justamente sobre as especificidades das diferentes formas de ordem jurídica. Ainda que seu campo temático não seja o mesmo de Frydman, também parte de uma crítica ao formalismo e ao normativismo, correntes para as quais só importam as normas vigentes em seu próprio ordenamento, não se preocupando com experiências jurídicas de outros países nem com o que está por trás dos textos. 

Se o enfoque de Frydman é próximo da sociologia do direito, o de Legrand é de caráter metodológico. Comparar os sistemas legais é identificar as nuances do pluralismo jurídico e as especificidades de uma realidade funcionalmente diferenciada, diz ele. Em outras palavras, Legrand não está preocupado, como Frydman, com a transição dos sistemas normativos nacionais para uma “governança jurídica multinível”.  Preocupa-se, sim, com a identificação das famílias jurídicas, como a Common Law e a Civil Law, num período em que a primeira avança hegemonicamente sobre a segunda, em decorrência da concentração das empresas mundiais e dos mercados financeiros nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Nas páginas que dedica ao tema, Legrand aponta o caráter cada vez mais fragmentário do direito contemporâneo. Chama a atenção para as normatividades que resistem aos processos de convergência e harmonização dos institutos jurídicos sem, contudo, desprezar a importância dos projetos de uniformização conduzidos por organismos multilaterais. Percebe a relevância do papel do direito como “correia de transmissão” entre diferentes normatividades, tal como é vista por Frydman. Mas aponta a importância da análise das especificidades de cada um dos regimes jurídicos semiautônomos funcionalmente sobrepostos no direito do capitalismo globalizado. 

Cada um a seu modo, com insights e pontos vulneráveis, esses livros se complementam, ajudando a ver para onde o direito vai num período de incerteza e perplexidade. 

Quem escreveu esse texto

José Eduardo Faria

Escreveu Direito e economia na democratização brasileira (Saraiva).

Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.