Ciências Sociais,

O que nos tornou humanos

Livro investiga as diversas versões do mito do roubo do fogo, que teria dado origem à humanidade há pelo menos 160 mil anos

27maio2021 | Edição #46

Embora seja definida pelo autor como uma obra não ficcional, é fácil reconhecer na trama de A origem da espécie, o mais novo livro do premiado Alberto Mussa, as marcas de sua ficção. O texto gira em torno de um crime, mais especificamente do roubo do fogo, mas, à diferença dos romances policiais, em que um detetive busca descobrir o culpado, este, em suas diversas personificações, é revelado no início. O suspense não está, portanto, na resolução do crime, mas no percurso do autor-detetive para compreender os detalhes e as motivações do roubo e assim demonstrar a relação entre esse evento e a origem da (nossa) espécie. 

Em primeiro lugar, ele deve provar que se trata primordialmente de um roubo, pois os mitos sobre a origem do fogo, que servem de base para sua investigação, falam não somente em roubo, mas também em doação, venda e até invenção. Para isso, nosso detetive, usando o método comparativo e classificatório da filologia (como ele mesmo afirma), examina 328 mitos oriundos de diferentes povos, situados nos mais diversos lugares e tempos: da Grécia Antiga às Américas contemporâneas, passando pela Ásia, Nova Guiné, Austrália e Europa.  

Constatando a predominância das narrativas de roubo (60% do total do corpus coletado) para explicar a posse do fogo pelos humanos, o autor-detetive coloca a questão que vai guiar seu trabalho: “Como se explica a distribuição tão ampla de um mesmo argumento, desse enredo universal em que o fogo é roubado?”. Para respondê-la, examina as três possibilidades dadas pelas arqueologia, paleolinguística e genética populacional quando defrontadas com fenômenos desse tipo: “Transmissão por contato; criação independente; e origem comum”. 

A discussão dessas hipóteses o leva a descartar as duas primeiras e perseguir a terceira, que supõe uma origem comum do mito. Após uma intricada análise, conclui que a história da origem do fogo por roubo se passou entre 330 mil e 160 mil anos atrás, no tempo da chamada Eva mitocondrial, que, na África, deu origem à humanidade. A posse do fogo, de acordo com dados paleoantropológicos, arqueológicos e neurocientíficos, propiciou uma mudança radical na alimentação, permitindo a ingestão de alimentos cozidos e, consequentemente, mais bem aproveitados em termos calóricos e proteicos. Com isso, os proto-humanos puderam desenvolver as conexões cerebrais responsáveis pelas diversas habilidades que nos diferenciam das demais espécies animais. 

Não se trata, entretanto, de uma mera narrativa sobre um evento específico, mas, segundo o autor, de um programa ideológico para essa nova humanidade. Embora com muitas variações, que vão surgindo com a incorporação de novas variáveis históricas e ambientais decorrentes do deslocamento espacial do Homo sapiens ao longo dos milênios, a estrutura original do mito, o “protomito”, permanece reconhecível: um dono, geralmente um demiurgo celeste, e um ladrão, de um modo geral alado, que usa a astúcia, e não a força, e acaba por atuar como um doador universal, distribuindo o fogo para o seu povo. De bem pessoal, o fogo se torna um bem coletivo: “O mito do roubo do fogo, além de tantas coisas, é o texto de um poderoso programa ideológico, que põe o ladrão generoso no papel de herói e o dono, demiurgo egoísta, no de vilão. […] Defende a sociedade propriamente dita, a sociedade humana, cujas bases são a troca, a dádiva mútua, o parentesco e o incesto”.

Espírito livre

Mussa é fascinado por mitos. “Minha fonte é na verdade a mitologia. A mitologia é para mim o gênero por excelência, o mais essencialmente literário, o mais perfeito, porque reúne o mínimo de expressão com o máximo de conteúdo. Os grandes temas humanos, os temas realmente relevantes, estão nos mitos. A literatura começou na pré-história, antes da escrita, com a narrativa mítica dos selvagens”, disse em entrevista à revista Cândido.

Em um livro publicado há mais de dez anos, Meu destino é ser onça (Record, 2008), baseado em diversas fontes históricas e amparado por seus conhecimentos de tupi arcaico, Mussa faz a reconstrução de um mito tupinambá. Como A origem da espécie, também não se trata de um livro de ficção ou uma obra etnológica ou arqueológica, pois as conexões faltantes entre as diferentes versões do mito são preenchidas livremente pelo autor. O resultado é uma narrativa fluida, compreensível e capaz de interessar a um leitor não especialista. 

Seguindo essa mesma linha, já nas primeiras páginas de A origem da espécie o autor declara: “Este livro não é nenhum tratado científico; não se prende a categorias teóricas rigorosas, como as que embasam o pensamento de filósofos, etnólogos, arqueólogos, paleontólogos, geneticistas, linguistas, matemáticos. Escrevi um mero ensaio literário, de espírito bastante livre”.

O mito da origem do fogo de um determinado povo, ao ser apropriado por outro, pode se transformar em um mito do dilúvio

Trata-se de uma afirmação essencial para o leitor, que deve tê-la em mente durante toda a leitura para não se prender ao que parece ser uma conclusão precipitada ali, um passo largo demais ou uma correlação mal embasada acolá. Foi com esse espírito livre das amarras acadêmicas que procurei ler e apreciar o livro. Se o fizesse como etnóloga, especialista na Amazônia, interessada na análise de mitos, muitas vezes me veria desconfortável com uma série de detalhes e caminhos que me pareceram equivocados. Alguns breves comentários, entretanto, são irresistíveis, e peço ao leitor — e ao autor, se ler este texto — que os encare como notas de rodapé a essa intrincada narrativa.

Mussa afirma que se inspirou primordialmente em dois autores, tanto para a obtenção dos relatos míticos como para a sua análise comparativa: de um lado, James Frazer (em especial o livro Myths of the origin of fire, Mitos sobre a origem do fogo); de outro, Lévi-Strauss, autor da famosa tetralogia Mitológicas. A análise de Mussa parece-me muito mais perto daquela de Frazer. Trata-se de um antropólogo vitoriano que, ao tentar compreender a evolução da humanidade, compara mitos, costumes e artes de povos diversos, no tempo e no espaço, desvinculando essas produções de seus contextos culturais.

Lévi-Strauss, em minha leitura, faz o caminho oposto ao buscar o pano de fundo de cada mito, especialmente o seu contexto cultural. Sem isso, diz ele, não é possível compreender um mito, gênero narrativo de origem coletiva que, embora possa ter relação com a realidade, ou seja, com a experiência do povo e com situações de fato, muitas vezes as inverte e transforma. Mito não é história e não pode ser tomado como tal, ensina-nos. De certo modo — e falo a partir de minhas leituras etnográficas e da experiência com um povo indígena catequizado por evangélicos —, isso é o que faziam, e fazem, os missionários diante dos indígenas. As narrativas nativas do dilúvio, por exemplo, são relacionadas ao que consideram um fato histórico, o dilúvio bíblico, surgindo como versões deformadas e erradas, consequência do desconhecimento, por esses povos, das artes da escrita. Essa deficiência os teria impedido de conhecer a verdadeira história narrada por Deus.

Lévi-Strauss não está preocupado em descobrir a origem histórica e geográfica de fenômenos sociais por meio da mitologia. O que lhe interessa não é a permanência do mito ao longo dos anos, mas a sua transformação ao atravessar fronteiras geográficas, culturais e linguísticas. O mito da origem do fogo de um determinado povo, ao ser apropriado por outro, pode se transformar em um mito do dilúvio. 

Paro por aqui em minhas críticas etnológicas, que não devem de modo algum diminuir o entusiasmo pela leitura de uma obra densa e minuciosamente construída. O número impressionante de narrativas míticas por si só vale a leitura do livro. Mussa realiza o importante trabalho de disponibilizar esses textos ao leitor leigo, tornando-os ainda mais interessantes ao costurá-los por meio de tramas cheias de suspense.

Quem escreveu esse texto

Aparecida Vilaça

Professora de antropologia social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora Ficções amazônicas (Todavia, 2022).

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.