Ciências Sociais,

Ao encontro do outro

Obra foi a primeira a constatar que diferentes sociedades devem ser entendidas a partir de sua estrutura interior

28nov2018 | Edição #18 nov.2018

No início dos anos 1970, no curso de ciências sociais da USP, nós queríamos ver o mundo interpretado à luz do pensamento libertário de Marx. Assim eram as teorias pré-julgadas: seriam capazes de explicar o sentido das mudanças sociais? Nesse quadro, horrorizava-nos a “estática” da teoria funcionalista, da qual o polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942) era um dos expoentes. E, todos sabíamos, a antropologia é filha do imperialismo.

O grosso volume de Argonautas do Pacífico Ocidental era, mais do que um desafio de leitura, o testemunho do tamanho do inimigo a ser derrotado. Como voz isolada, postava-se a seu lado a professora Eunice Ribeiro Durhan que, em 1973, defenderia sua tese de livre-docência justamente sobre a “reconstituição da realidade” na obra de Malinowski. É Durhan quem faz a apresentação da edição bem cuidada de hoje.

É preciso se livrar do infantilismo intelectual para se aproximar de obra fundamental e, ao mesmo tempo, tão distante dos modos de pensar a que estamos aferrados. E é surpreendente se dar conta de que, sem Malinowski, a antropologia provavelmente não teria o prestígio de que hoje goza.

Malinowski soterrou a prática intelectual que consistia em ver as sociedades ditas “primitivas” como sobrevivências da infância da humanidade e hierarquizadas de uma perspectiva evolucionária canhestra. A partir de Argonautas, firmam-se a convicção e a prática antropológica que exigem que se vejam as diferentes sociedades “por dentro”, construindo sua alteridade mediante uma observação participante prolongada. 

O antropólogo, na medida de suas possibilidades, deve se tornar temporariamente um nativo, conhecer suas instituições, sua língua, a fim de poder reconstruir a totalidade da sociedade observada com base em grande conjunto de dados empíricos coletados, e do “ponto de vista nativo”.

Sistema ritual organizador

A virtude desse método é evidenciada em Argonautas. Malinowski consegue demonstrar que aquela comunidade do arquipélago de Trobriand, em vez de ser dissecada por meio da análise da economia, da sociedade, da religião, melhor se mostra para o observador quando este reconhece que sua instituição central é o sistema de trocas chamado kula. Este, que é um enorme sistema ritual, une um conjunto de ilhas da Melanésia através de uma sequência de trocas de colares e braceletes sem valor utilitário, desencadeada por parceiros definidos, e que envolve, em sua execução, desde as práticas relativas à construção das canoas e às trocas econômicas paralelas, até o estabelecimento de compromissos matrimoniais. 

O antropólogo deve se tornar temporariamente um nativo, a fim de poder reconstruir a totalidade da sociedade observada

O kula enlaça as sociedades de ilhas dispersas que, de outra maneira, não se relacionariam — ele cria a sociedade. Essa descoberta foi tão importante que se tornou a base e o fundamento da grande contribuição de Marcel Mauss para a antropologia, formulando a “lei” segundo a qual a reciprocidade — o dar e receber — é o mecanismo básico de tessitura da vida social. Do mesmo modo, permitiu que a premissa da economia política, o raciocínio utilitarista que indica o cálculo racional como fundamento do mercado, fosse questionado tanto por Karl Polanyi (A grande transformação, 1944) como por Georges Bataille (A parte maldita, 1949), lançando as bases da antropologia econômica.

Metodologicamente, função e estrutura são os conceitos fundamentais da obra de Malinowski. São procedimentos analíticos que permitem ordenar e interpretar as evidências empíricas que o antropólogo colhe em campo. Em especial, as instituições são cristalizações do comportamento humano que têm um sentido prático ao mesmo tempo que simbólico (economia, parentesco, religião, ritual, magia), ordenando a vida em sistemas próprios de cada povo. 

A estrutura social é justamente a síntese das instituições — ela “amarra” a sociedade por dentro — e o antropólogo deve construí-la a partir da singularidade social, como no caso do kula, e não reunindo os dados em “caixinhas” predeterminadas, como são a economia, a política, a religião.

Argonautas é leitura obrigatória a todos os candidatos a antropólogo. É o livro que mostra pioneiramente como é possível singularizar uma realidade social com fronteiras delimitadas, reconstruindo-a em sua alteridade. É um caminho para reconhecer o “outro” em sua inteireza. 

E pode ser lido também como um romance, tais as minúcias e acontecimentos que Malinowski relata sobre o trajeto do kula. São essas duas abordagens principais que tornam o livro um clássico de leitura recomendável para todos que se interessam pelas formas da diversidade do humano. 

Quem escreveu esse texto

Carlos Alberto Dória

É diretor da ONG C5 – Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo, coautor de A culinária caipira da Paulistânia (Três Estrelas) e autor de Formação da culinária brasileira (Três Estrelas).

Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.