A escritora italiana Igiaba Scego (Simona Filippini/Divulgação)

Canções do exílio, Literatura,

Autobiografia de minha mãe

Em livro-carta, a escritora italiana Igiaba Scego busca recuperar a Mogadício de seus pais

01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 out

“História história oh história de seda…” — assim começam todas as fábulas somalis, segundo escreve Igiaba Scego, na abertura de Minha casa é onde estou, publicado em 2018 pela mesma Nós que agora lança Cassandra em Mogadício. História de seda, pois, poderia ser subtitulado este novo livro.

Se naquele primeiro volume autobiográfico a autora traçava uma cartografia pessoal a fim de reivindicar sua cidadania somali ao mesmo tempo que se afirmava italiana, aqui o que temos não é um mapa colorido desenhado com a família sobre uma mesa de cozinha, mas um bordado complexo. Como os que tece a mãe da autora, Kadija: “Ela costura segredos com linha e agulha, desdobrando sobre um dos seus maros, pelos quais é reconhecida por toda a família, tudo que não consegue dizer com a boca”.

O fio principal com que Igiaba vai atar as histórias dos antepassados e a sua é o Djíro, palavra somali para doença. Em parte ele é como o banzo, que incorporamos do quimbundo ao português — a nostalgia do exílio forçado, a melancolia de não pertencer. Mas é também o mal físico em si e nomeia os adoecimentos que os entes da família, filhos de guerras sucessivas, são obrigados a enfrentar.

Porque o Djíro, eu imagino-o como um pó que viaja por dentro do nosso corpo e nos deixa atordoados. E deixa os nossos órgãos internos ainda mais atordoados do que nós, eles parecem ser engolidos por uma força sombria que os devora. O Djíro deixou consequências corporais em todos nós, claro que com graus diferentes de intensidade.

O livro se desenha a partir da relação entre Igiaba e sua mãe, já viúva, com quem passa a viver na pandemia. Uma relação reticente, marcada por certo hermetismo dessa mãe que cala sobre “tudo que não consegue dizer com a boca” e cuja casca Igiaba tenta abrir de maneira hesitante.

A hesitação não é gratuita. Nasce de uma fenda aberta em 1991, com o estouro da guerra civil que perdura até hoje na Somália. Por mais de um ano, o conflito as separa, e a filha fica com o pai em Roma, sem notícias da mãe, que não volta de uma visita a Mogadício. Quando a guerra estoura, o Djíro ataca Igiaba — uma adolescente indo pela primeira vez a uma festa — na forma de uma bulimia severa.

A jovem passa a viver não só a solidão típica da adolescência, mas as múltiplas camadas de não pertencimento que a história da família já lhe impunha. Nasceu italiana, mas com a pele negra de seus pais refugiados, e se veste com roupas vindas de bazares de caridade; é a única falante nata do idioma dos colonizadores em sua casa, casa essa que teve as mais diferentes configurações, quase nenhuma confortável. Reúne em si as grandes contradições do século 20 pós-colonial.

Igiaba passa décadas tentando compreender em silêncio por que a mãe havia viajado à Somália quando os riscos já se anunciavam. A grande lacuna só vai se fechar trinta anos depois, nesse novo convívio, em que ela busca, por meio da história de Kadija, contar a dessa sua outra nação, que traz no corpo mas que não é totalmente sua.

Bordados

Cassandra em Mogadício não segue uma trama linear ou cronológica. Como os bordados intrincados de Kadija, Igiaba preenche as páginas “fazendo malabarismos na aspereza do tecido com uma agulha de aço para crochê e muita imaginação”.

O resultado do trabalho, no entanto, não é um maro — grande xale ou echarpe, como aqueles produzido por sua mãe e que enfeitam as paredes dos parentes. O livro é tecido como uma carta endereçada a Soraya, sobrinha de Igiaba que vive em Québec.

O volume é dedicado “às tias”, e a narrativa frisa recorrentemente o papel de segunda maternidade embutido nesse laço, sobretudo dentro de famílias como a dela, em que, por causa de conflitos, mães faltam aos filhos.

Antes de desaparecer na guerra civil, Kadija já havia sido separada dos irmãos mais velhos de Igiaba. O pai da autora, Ali Omar Scego, havia galgado altos cargos no governo do país que tentava se estabelecer como nação independente. O golpe de Estado de Siad Barre em 1969 obriga Ali ao exílio na Itália. Kadija tem de partir sem os filhos mais velhos, entregues aos cuidados de sua irmã, Halima, chamada pela autora de “mamãe”. “Mamãe Halima foi quem nos permitiu ser uma família. […] ela está em todas as coisas. Está em cada milímetro de nós”, escreve.

Com o nascimento de Igiaba, em Roma, em 1974, Kadija volta a exercer seu papel de mãe — para, como sabemos, perdê-lo uma segunda vez.

É notável que, para Igiaba, a tia que criou os irmãos mais velhos seja uma “mamãe”. Pois todos os demais vínculos são enunciados no idioma somali que Soraya não fala: mãe é roiô, pai é âbo; irmã e irmão, abayô e abowe. O avô é awowe, a avó, ayeyo. E tia é edo.

Textos diaspóricos têm o condão de humanizar as notícias que lemos nos jornais todos os dias

A autora requisita esse lugar maternal ao escrever para Soraya. Está na meia-idade e, assim, à beira de selar para sempre a impossibilidade de ser mãe biológica e fala à sobrinha “amadíssima”: “Sou sua edo, querida Soraya. Uma tia, sua tia. Que som doce tem essa palavra, não é?”.

A linguagem é um fator fundamental. À mãe, está dito, faltam as palavras, enquanto a filha as tomou como ofício. Escreve em italiano, o idioma imposto à Somália, “uma língua que já foi inimiga, escravocrata, mas agora tornou-se, para uma geração que vai desde minha mãe até mim, a língua dos nossos afetos”.

Italiano que Soraya não fala, mas que, em conversas desajeitadas pelo celular, manifesta o desejo de aprender para se aproximar da ayeyo. O livro-carta, então, é o registro de uma comunicação impossível e uma promessa de que ela exista.

A escolha profissional de Igiaba pela escrita não é irônica somente por implicar o idioma do opressor, mas por um outro fator íntimo. “Sou a filha escritora de uma mulher cujo alfabeto foi roubado”, descreve, na formulação poética que encontra para descrever a falta de letramento da mãe.

Tendo vivido uma infância nômade pastoreando dromedários, Kadija não teve educação formal nos primeiros anos. Quando a recebe, já fixada em Mogadício, é de maneira precária, numa escola colonial. A mãe não pode, portanto, ler o que a filha escreve.

É a filha, então, que tenta se aproximar do que a mãe tenta expressar, decifrando as costuras que ela passa a fazer depois da guerra civil, com sua “mão precisa, atenta, anárquica”. “Lá, naqueles círculos concêntricos, estava seu alfabeto”, escreve. “Seus maros são minha Pedra de Roseta, sinto-me como Champollion diante dos hieróglifos mudos, desejantes de serem revelados à modernidade. Revelados a você, minha Soraya.”

Direito e avesso

Textos diaspóricos têm o condão de humanizar as notícias que lemos nos jornais todos os dias. Ver a crise dos deslocamentos forçados narrada de um ponto de vista pessoal por alguém de talento faz lembrar o papel da arte de nos aproximar do outro.

Cassandra em Mogadício começa apresentando seus grandes temas, como este, com clareza. Igiaba consegue, pelos dramas sucessivos de sua família e nos sonhos abortados, dar a ver os somalis — e, por analogia, os afegãos, os palestinos, os venezuelanos — como indivíduos, não como uma massa numa fotografia de agência internacional.

A narrativa da tia à sobrinha (que presumivelmente vive sua ancestralidade de forma mais distante) se deixa apreender com mais nitidez enquanto o tecido cru ainda não foi tomado por círculos concêntricos. Com o passar das páginas, porém,o conjunto vai se tornando intrincado.

Por vezes, é como se só nos fosse dado observar o seu bordado pelo avesso. Fios se misturam, vão e vêm, mas sem formar claramente um desenho. Conforme a narrativa se contorce, o texto ganha um solipsismo que, por vezes, afasta o leitor.

Em uma das passagens mais comoventes do primeiro terço do livro, a escritora expõe a um colega seu desconforto com a história que está escrevendo, diante da qual afirma se sentir “inadequada”. O que ela não diz a ele é que seu incômodo nasce ao cotejar sua experiência de vida de “garota italiana dos anos 1990, com gente que se vestia com as marcas Superga, Converse e Fornarina”, à da mãe, que tinha “chinelos furados nos pés que sangravam com frequência, pois as pedras afiadas de uma cidade em destroços e os cartuchos das balas espalhados por todo o lado feriam a planta do pé”.

Desconhecendo esses motivos, o colega a confronta: “Quantos e quais arquivos você consultou para fazer esse trabalho?”. A indagação cai como um raio. “‘Já não existem mais na Somália’, disse num sopro. ‘A guerra destruiu tudo’, acrescentei rápido, rápido demais.”

Entendemos que só resta a memória da mãe. Como se os somalis fossem jogados de volta à oralidade

O amigo fica perplexo. Igiaba confirma mais uma vez que tudo se perdeu: “Arquivos nacionais, arquivos familiares. Os álbuns da nossa família. Do meu pai quando foi prefeito, do casamento dos meus pais, da formatura dos meus irmãos, da minha cara de recém-nascida. tudo. Engolido. Perdido. Vendido”.

Entendemos então que só resta a memória da mãe. Como se, depois de todos os esforços de gente como o pai da autora para constituir um Estado independente, os somalis fossem jogados de volta à oralidade.

Mas o empenho por fazer da mãe o arquivo vivo de uma Mogadício que se perdeu para sempre não resulta totalmente bem-sucedido. Como se precisasse convencer o leitor de seu direito à identidade somali, adota o Djíro como explicação metafórica para todos os males — o câncer do pai, a tireoide defeituosa da tia, a cardiopatia da mãe, suas próprias desavenças com a menstruação. A reiteração acaba por esgarçar esse fio.

Da mesma forma, soa imprecisa a relação que tenta estabelecer com Cassandra, a personagem filha de Príamo e Hécuba, profetisa desacreditada da Guerra de Troia. No livro, essa figura se desloca sem se fixar bem em nenhum dos possíveis personagens que poderiam fazer o seu papel. Talvez fosse mais bem-vinda uma Ariadne que, com seu fio, nos tirasse do labirinto involuntariamente bordado por Igiaba.

Essa circularidade é difícil de sustentar em livro tão longo. A extensão e os vaivéns dessa costura jogam contra a clareza do que se diz e, ao fim da leitura, é difícil distinguir cada um dos males, temores e sofrimentos que se erguem contra os filhos da diáspora.

Quem escreveu esse texto

Francesca Angiolillo

Jornalista e escritora, é autora de Etiópia (7Letras).

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “Autobiografia de minha mãe”

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