Literatura Negra,

Experiência do exílio

Os imigrantes nunca olham para trás, carregam apenas a Esperança, que os conduz na direção do futuro

01nov2023 | Edição #75

Aos três anos vivi pela primeira vez a experiência do exílio.

Foi em 1959. Naquele ano, começaram as primeiras perseguições aos tutsis que levariam, depois de muitos massacres, ao genocídio de 1994. Se fecho os olhos, vejo essas imagens passando como num filme acelerado.

Estou num campo. Caminho com passos curtos atrás da minha mãe, que se apoia em sua enxada. De repente, surge um rumor, um zumbido vindo das colinas. Por detrás da onda compacta formada pelas bananeiras sobe uma fumaça. Minha mãe me pega no colo. Subimos de volta pelo barranco até chegar ao caminho que acompanha o topo do morro. Ao chegar lá, um tumulto, a multidão em pânico, chamados, gritos, choro de crianças, mugidos de vacas. Minha mãe procura meus irmãos, minhas irmãs. E ao longe, ainda, esses urros que eu não quero ouvir…

Na beira do caminho deveria estar a nossa casa: vejo uma enorme cabana pegando fogo, não quero acreditar que é nossa casa sendo incinerada. Ouço o barulho das chamas crepitando, os bezerros mugindo no estábulo. Fecho os olhos, ou talvez minha mãe tenha coberto meu rosto com a ponta da sua capulana.

Essa noite, não vou dormir em casa.

Se posso evocar todos que foram assassinados, é porque eu não estava em Ruanda em 1994

Meu primeiro exílio foi na missão de Mugombwa. Ali os tutsis encontraram refúgio. No meu livro Baratas [publicado no Brasil pela editora Nós, com tradução de Elisa Nazarian], descrevo esse dia como uma espécie de férias estranhas. É claro que eu não sabia como elas deveriam ser. Mas era de fato bem estranho: meus irmãos e minhas irmãs não iam mais à escola; as crianças brincavam todas juntas na praça da igreja da missão; e eu comia o que nunca tinha comido em casa: arroz! Não tinha idade para me preocupar com o que poderia acontecer. Durmo com a minha mãe, sempre tenho comigo meu potinho de leite. Mamãe tinha conseguido salvar o que era considerado o tesouro da família: o caldeirão de metal que papai tinha comprado de um mascate supostamente vindo de Zanzibar e ao qual tínhamos dado o nome pomposo de Isafuriya ndende, a “grande panela”.

Mas tudo termina abruptamente num dia à noitinha, já escuro. Há caminhões iluminados, com faróis acesos, os soldados, os brancos nos empurram, nos apressam, nos obrigam a subir nos veículos: “Rápido, rápido! Subam!”. Perco de vista minha mãe, meus irmãos, minhas irmãs, meu potinho de leite escapa das minhas mãos, rolando por entre os pés daqueles que são empurrados para dentro dos caminhões; estou totalmente sozinha, perdida para sempre, e choro, sinto que as lágrimas do exílio estão caindo o tempo todo pelo meu rosto de criança.

Os caminhões em que os tutsis estavam amontoados rodaram a noite inteira por trilhas esburacadas. Nas primeiras horas da manhã, eles foram desembarcados no lugar desconhecido e sinistro que seria a partir de então a terra do seu exílio: Nyamata.

Durante 34 anos, os “refugiados do interior”, agrupados nos vilarejos ao redor do pequeno centro de Nyamata, na fronteira com o Burundi, sofreram abusos, maus-tratos e massacres contínuos. Todos aqueles que tinham sido deportados em 1960 e seus filhos foram massacrados em 1994.

Se posso evocar, nestas linhas, todos aqueles que foram assassinados, é porque eu não estava mais em Ruanda em 1994. Eu fiz parte, não sei por que, de um grupo de alunos tutsis que puderam chegar ao ensino secundário. As cotas rigorosas limitavam esse número a 10%. Em 1973, eu era aluna do segundo ano na escola de assistentes sociais de Butare. Foi aquele ano que determinou o curso da minha vida, para não dizer o meu destino.

Em 1973, de fato, o governo de Grégoire Kayibanda acreditou ter encontrado uma solução para a insatisfação popular adotando a antiga estratégia do bode expiatório. Os alvos foram os raros tutsis empregados na administração e no ensino, bem como os alunos cotistas. As escolas só para moças também não foram poupadas.

Aconteceu numa tarde, talvez numa aula de matemática? De repente, uma colega abriu a porta da sala de aula: “Mukasonga, Mukasonga, depressa, depressa”. Lá fora, nos corredores da instituição, ouvi um grande tumulto e gritos. Não parei para pensar. Sabíamos que eram os rapazes do liceu vizinho que se lançavam na caça aos tutsis. Nossas colegas hutus serviam de guia e os encorajavam.

Foi o medo que me salvou, foi ele que me permitiu fugir, correr desesperadamente pelos corredores da escola, passar pelos arames farpados da cerca sem nenhum arranhão, me esconder até de noite num pequeno bosque de eucaliptos. Sim, agradeço ao medo, que era o companheiro mais fiel dos tutsis de Nyamata, aquela sombra que nunca os abandonou… mesmo na noite mais profunda.

Acabei voltando para casa escondida no porta-malas do carro de um deputado hutu. Foi nesse momento que meus pais tomaram a decisão: meu irmão André e eu, que tínhamos estudado e aprendido que havia um mundo além de Ruanda, deveríamos tomar o caminho do exílio no país vizinho, o Burundi.

Meus pais pressentiram o que estava por vir? Ao menos alguns de nós tínhamos de sobreviver para conservar a memória daqueles que sabiam estar condenados ao extermínio. A partir de então, eu passei a ser essa memória.

*

Hoje eu moro na França, num pequeno vilarejo costeiro, perto de Ouistreham. Ouistreham é uma praia frequentada, sobretudo nos finais de semana, pelos moradores da cidade de Caen, que fica a 10 quilômetros de distância, e pelos parisienses, que estão a menos de 200 quilômetros. É um pequeno porto pesqueiro. No cais, há o imponente volume branco da balsa que, duas ou três vezes por dia, vai para a Inglaterra. É essa ilusão que atrai irresistivelmente os imigrantes: chegar à Inglaterra, onde projetaram todos os seus sonhos e esperanças. É quase impossível embarcar de modo clandestino no barco, mas o sonho é mais forte, eles são jovens, nada vai esmorecê-los e se, seguindo os acordos, forem enviados de volta para a Itália — aonde a maioria chegou da África —, eles retornam.

Como eu não poderia me identificar com eles? Eu que, nessa idade, vagava, sozinha, perdida naquela cidade que era para mim desconhecida, Bujumbura; mas no Burundi eu era menor de idade e as portas da escola não estavam fechadas para mim.

É em Ouistreham que vou comprar peixe. Foi lá que eu vi essas pessoas que são chamadas de imigrantes pela imprensa. Sombras consideradas invisíveis por aqueles que passam por elas, que vagam pelo estacionamento atrás do mercado de peixes, ao longo do canal, perto das lixeiras do pequeno supermercado no centro da cidade. Outras, mais numerosas, ficam à espreita nas valetas ao lado das estradas que vão dar nos portos, tentando agarrar os caminhões que passam em alta velocidade. Por baixo dos capuzes, é possível imaginar os rostos negros, jovens, muito jovens, caminhando em dois ou três, nunca mais do que isso, eles caminham, caminham… Olham para longe, bem além do horizonte estreito do Canal da Mancha. O que estão olhando??

Os imigrantes vão até o fim para conseguir a vida que julgam digna para um ser humano

Não fico desesperada por eles. Quer tenham sido banidos de casa pela guerra, pela fome ou pela miséria, reconheço neles uma energia inabalável chamada Esperança. Neles não há raiva, não há desespero. Vão até o fim para conseguir a vida que julgam digna para um ser humano. Por enquanto, para eles, a esperança se chama a outra margem do canal, a Inglaterra. Talvez seja uma utopia, e alguns parecem nem conhecer a língua. Mas essa ilha que, claro, não podemos ver da praia de Ouistreham, mas para a qual a inacessível balsa se dirige várias vezes por dia até ser engolida pelo horizonte, é o futuro, o futuro deles.

Pode ser que eles nunca alcancem essa Inglaterra utópica, mas nunca olharão para trás, carregam apenas a Esperança, que os conduz numa única direção, o futuro. “Um futuro brilhante”, dizia meu irmão, enquanto vagávamos, perdidos, naquela cidade desconhecida que era Bujumbura, ao longo dos dias vazios de exílio. Eu o ouvia, sustentando o mesmo sorriso, o mesmo olhar cheio de esperança: “Você vai ver”, ele dizia, “para nós também existe um futuro brilhante”, e repetia, “sim, um futuro brilhante”.

Eu virei escritora, conhecida, reconhecida, e meu irmão, André, tornou-se um médico importante, epidemiologista: ele faz parte da equipe que, em Ruanda, luta contra a Covid-19.

Sim, no cais de Ouistreham, eu vi a mim mesma, como há quarenta anos, caminhando, caminhando, sem saber para onde ir numa cidade desconhecida. Meus companheiros estão lá, meus irmãos. Eles são sudaneses, somalis, eritreus. Como acompanhá-los, como caminhar ao seu lado?

Estou cheia de esperança por meus irmãos de exílio de Ouistreham. Eles também têm um futuro, dá para ver em seus olhos. Entre exilados, o olhar não engana, é como um espelho.

*

Poderia o homem ser definido como um ser-para-o-exílio? Alguns textos religiosos parecem sugerir isso. Nesse sentido, o mito bíblico situa o exílio na própria origem do homem: é Deus quem expulsa Adão e Eva da sua pátria edênica. É, ainda, a mesma divindade que ordena a Abraão: “Deixe para trás sua terra, sua família e a casa do seu pai pela terra que vou lhe mostrar”. É no exílio, no Egito, que se forma o povo hebreu.

Não é a vontade divina que decide o êxodo de um povo inteiro, são os sobressaltos caóticos da história

Exílio escolhido, exílio forçado, imigrantes, deslocados, refugiados, deportados… Certamente não é a cólera ou a vontade divina que decide o êxodo de um homem ou de um povo inteiro, mas os sobressaltos caóticos da história: guerras, perseguições, miséria, crises econômicas, com exceção das catástrofes naturais: terremotos, secas, mudanças climáticas definitivas. A terra aonde os exilados chegam não é a terra prometida, por muito tempo vão continuar sendo estrangeiros, corroídos pela saudade, e, mesmo se conseguirem se integrar e reconstruir uma nova vida, vão suspirar como Ulisses, que, ele sim, reencontrou sua Ítaca: “Para que serve a mais esplêndida morada entre estrangeiros, longe de seus parentes?”.

Antigamente, havia uma bela palavra para acolher um estrangeiro que bate à sua porta, palavra que envergonharia aqueles que erguem muros, que estendem arames farpados para trazer a ideia de “cada um na sua casa”, “cada um por si” — essa palavra é a Hospitalidade. Será ela uma utopia? Uma ilusão? 

Houve um tempo em que, nas sociedades antes chamadas de primitivas e arcaicas, o hóspede era uma figura sagrada. Ninguém lhe perguntava de onde vinha, nem aonde ia ou por que estava na estrada, nem quanto tempo pretendia ficar no local que o acolhia. O estrangeiro podia, no fim das contas, ser adotado como um membro da família. Tal tradição da hospitalidade realmente existiu? Não seria um mito? Era, ao menos, um ideal.

Stefania, minha mãe, bem como toda a minha família condenada ao exílio, sempre guardou duas esteiras para algum viajante inesperado que viesse pedir abrigo. Que cada um de nós possa sempre ter uma pequena esteira para poder acolher o estrangeiro.

Nota do editor
Este ensaio é parte de A Book of My Own, de Scholastique Mukasonga, publicado pela Isolarii nos Estados Unidos e ainda inédito no Brasil. Esta versão tem tradução do francês feita por Marília Garcia e é reproduzida com permissão da autora e da editora.

Quem escreveu esse texto

Scholastique Mukasonga

Escritora ruandesa, é autora de Baratas (Nós).

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.