Cinema,

Místicos e milicos no motel

Em roteiro inédito do diretor de “Macunaíma”, o desbunde e o misticismo da classe média se misturam à ambição e aos exageros dos militares

14jan2020

Chanchadas e militares possuem mais afinidades do que se imagina. O imponderável Bento contra o crioulo voador, de Joaquim Pedro de Andrade, retrata uma tríade de militares — coisa rara no cinema brasileiro — composta de um comandante, um major e um capitão da Aeronáutica. Não chegaram a voar por tela alguma, já que a obra permanece não filmada. Uma lástima, pois entre suas dinâmicas páginas se vislumbra um dos melhores retratos do Brasil na ressaca da ditadura.

No roteiro escrito nos anos 1980, os milicos são Mauro, Bento e Larroque — este, o comandante da base aérea e mandachuva na corporação que comprou O Correio de Brasília, influente jornal da capital federal. Entre perseguições e paranoias, Mauro é convocado para uma “ação instrutiva”. Enquanto dirige, Larroque metralha aos ouvidos do subalterno: “Nós estamos vivendo uma época grave de nossa história. Perigosa, muito perigosa. A subversão está infiltrada por todo lado. Nos colégios, na universidade, na Igreja, na imprensa, e até, o que é mais grave, nas próprias Forças Armadas. E você, Mauro, anda se reunindo com essa gente”. Larroque então leva Mauro a uma sessão de tortura que resulta em um assassinato diante de vários colegas de farda. O comandante está diretamente envolvido com a “tigrada”, como o jornalista Elio Gaspari chamava os agentes que tocavam os porões da tortura durante a ditadura.

Taís é a sedutora jornalista que enlaça a tríade fardada. Casada com Mauro, é amante de Bento e flerta com Larroque, que impulsiona sua carreira de colunista social do Correio. Ela concentra o jogo de chantagem e boicotes envolvendo os interesseiros que passeiam entre porões, voos, sessões de reza mística, almoços na churrascaria do lago Paranoá, champanhes e vernissages. Paulatinamente, o roteiro ruma para um crescente desvario, que remete aos melhores trechos de Macunaíma (1969), dirigido pelo mesmo Joaquim Pedro. Levitações e orgias kitsch e pretensamente sofisticadas se combinam à ganância cara à capital do país, com reuniões regadas a uísque e cocaína, intrigas e baixarias nas redações de jornais e fotógrafos fabricando as capas das fake news da época.

É do motel Três Poderes que Larroque arquiteta suas tramoias. Entre grampos, fotos clandestinas e vigílias, contata Odair Barros, o novo editor-chefe do Correio, para forjar notícias, censurar e demitir comunistas e inventar polêmicas. Sobrevivente de um desastre de avião, Bento, o “imponderável”, cai de paraquedas no meio de uma comunidade de anacoretas e ermitões místicos do cerrado. Depois de um árduo treinamento, passa a flutuar, regressa a Brasília, a capital vigiada pelos milicos, e se torna uma irônica ameaça àquela estratégica zona aérea.

Humor para refletir

O melhor do roteiro são os chistes harmonizados com reflexões históricas e políticas. Numa das sequências mais próximas à pornochanchada, Taís vai com uma trupe de mulheres e gays à Soceila, misto de salão com prostíbulo, na Ceilândia. De lá, vão importunar a abstinência sexual de Bento e sua seita. O resultado é uma memorável sequência de vaginas falantes e mulheres rasgando as vestes de monges, algo caro a um poder do matriarcado que Joaquim Pedro expôs em O homem do pau-brasil (1981).

Dependendo de como for lido (ou filmado), O imponderável Bento pode não passar de uma comédia de costumes do Brasil dos anos 1980. Com um olhar mais minucioso, contudo, seus personagens dizem muito sobre hábitos comuns após décadas de autoritarismo militar no país. Mauro é um “traidor” das Forças Armadas e sucumbe à crueldade da instituição — é o tipo suicida. Bento trai o amigo e descamba para o misticismo, como se representasse o desbunde ou abandono de qualquer perspectiva política. Camaleônica, Taís trai a todos e é por todos traída, transita por conchavos e oportunismos, é cínica, vingativa, abusada por Larroque, mas também dócil nos seus afagos protetores a Bento. É por trás dessa trama de traições que Larroque circula, sedento por poder. Comete atos ilegais, tortura, mata, estupra e não é repreendido por instituição alguma. Manda e desmanda na base, na rua, nas capas de jornal e nos conglomerados econômicos, e exige suas recompensas entre as paredes do motel Três Poderes.

São várias as temporalidades históricas articuladas. A primeira dobra remete à Anistia, instrumento jurídico que possibilitou brechas aos julgamentos dos crimes de Estado cometidos por militares e às formas de resistência, armada e civil, que os contestaram. Embora a história pareça ocorrer entre os últimos anos de ditadura e os primeiros de abertura, os militares circulam livres, à vontade, como se permanecessem no comando. Os demais personagens estão acuados. Ora são perseguidos, ora precisam entrar no jogo de favores do comandante.

Racismo cordial

O roteiro toca na ferida provocada pelo vazio político e pelos impasses que ainda pairam após tantos anos de autoritarismo. No entanto, não se afasta dos pontos de vista do racismo cordial. É o que ocorre com o crioulo do título, que se revela apático e é representado de forma estereotipada, sem subjetividade nem protagonismo. Observa-se ainda um irônico panorama das mazelas que surgiram sob a égide da balbúrdia fardada. É no desvario sexual e carnavalesco que desbunde e misticismo de uma classe média acabam por se juntar com a ambição e os exageros da regência militar. A combinação torna-se tão esdrúxula quanto exuberante. Da Brasília verde-oliva, o Brasil se tornou ganancioso, corrupto, mas também místico e festivo.

Roteiros não filmados são filmes que repousam no papel, sem contato com um público. Mas são, também, obras literárias que possibilitam olhar uma época e imaginar seus filmes sem telas, com potências que acenam para uma sobrevivência, uma improvável e às vezes sarcástica atualização histórica. É no mínimo curioso constatar como o roteiro de Joaquim Pedro é contemporâneo e aponta para acontecimentos que não foram totalmente resolvidos (e não têm indício algum de o serem) no imaginário político brasileiro. Com certo espanto, vemos figuras como Larroque passeando sem constrangimento algum pelos corredores da Esplanada. Provocativa frente a um crescente negacionismo histórico, a leitura nos traz uma dolorosa lição quanto aos rumos do país. Se não revisarmos com mais vigor as contradições do passado autoritário, continuaremos a vislumbrar um turvo horizonte para nossa democracia.

Quem escreveu esse texto

Pablo Gonçalo

É professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).