Repertório 451 MHz,

Um sodomita no Brasil colônia

Alexandre Vidal Porto se inspirou em documentos históricos para recriar a vida de português enviado à Bahia pelo crime de homossexualidade

08dez2023

Está no ar o 101º episódio do 451 MHz, o podcast da revista dos livros. O convidado deste programa é o escritor Alexandre Vidal Porto, que acaba de publicar seu quarto romance, Sodomita, pela Companhia das Letras. A ficção se passa no Brasil do século 17 e conta a história de um português acusado de sodomia. A punição para o crime de homossexualidade era o degredo para as colônias portuguesas, como o Brasil. 

Luiz Delgado, protagonista do livro, foi parar em Salvador no ano de 1669. A história dele ficou meio escondida até que pesquisas de historiadores a trouxeram de volta. Vidal Porto se inspirou nesses documentos para recriar literariamente a trajetória do português exilado. Sodomita recebeu o prêmio Mix Literário 2023, que reconhece os melhores livros brasileiros com temática LGBTQIA+ e que está na quinta edição. Este episódio foi realizado com apoio da Lei de Incentivo à Cultura e da Companhia das Letras.

Pastiche histórico

Escritor e diplomata, Vidal Porto define o livro como “um pastiche de romance histórico”. “Ele tem personagens históricos, se passa num período histórico, mas você sente um ar artificial, um cheiro de fantasia, seja na caracterização, seja na linguagem.”

Porto conta que a ideia de Sodomita lhe ocorreu no dia 31 de dezembro de 2020, enquanto lia um livro sobre a história da homossexualidade no qual o autor mencionava a perseguição que muitas pessoas sofreram pela Santa Inquisição, acusadas de sodomia, durante a colonização da América do Sul. “Fiquei curioso para saber quem teriam sido essas pessoas no século 17”, explica. 

No mesmo dia, conta que mandou um e-mail para o antropólogo Luiz Mott, um pioneiro do movimento LGBTQIA+ no Brasil, que lhe enviou um dicionário biográfico de sodomitas baianos perseguidos pela Inquisição. “Tinham 203 nomes e eu passei a noite lendo. Fiquei siderado”, diz o autor.


Sodomita, quarto romance de Alexandre Vidal Porto, lançado pela Companhia das Letras

Entre os perseguidos ali, Vidal Porto decidiu recriar literariamente a trajetória de Luiz Delgado, um violeiro e “sodomita contumaz” que foi degredado de Portugal e chegou a Salvador em 1669. Na capital baiana, casou-se com uma mulher branca e cristã e virou um próspero comerciante de tabaco.

“Como ele saiu do navio estigmatizado como sodomita e chegou a uma situação de respeitabilidade social é um mistério. Foi nesses mistérios que eu fabulei”, conta o autor. O livro foi escrito em 2021, durante a pandemia e, afirma Vidal Porto, como uma reação ao bolsonarismo e às perseguições a dissidentes sexuais que se repetem nos dias de hoje. 

    
Os romances Quarto aberto, de Tobias Carvalho e Veado assassino, de Santiago Nazarian

“Não acho que é à toa que Sodomita, Quarto aberto, do Tobias Carvalho, Veado assassino, do Santiago Nazarian, foram todos escritos sob os anos horríveis do bolsonarismo”, diz. “A gente sentia a opressão de forma muito palpável. Os argumentos da Inquisição religiosa são repetidos no Congresso brasileiro hoje, com base nos mesmos dogmas radicais e com o mesmo objetivo de desumanizar as minorias sexuais.” 

Final feliz

Na primeira visita da Inquisição a Salvador, Delgado foi denunciado por 31 crimes. Vidal Porto conta no romance um dos casos do comerciante, com o ator transformista Doroteu Antunes, especializado em “papéis mulheris”. Os dois provocaram a ira das autoridades da época e foram presos. Doroteu foi degredado para o sul da Espanha e Delgado, pela segunda vez processado, foi mandado para Angola. De lá, nunca mais se soube dele. 

“Mas eu conto o que aconteceu com ele”, diz o escritor. “Eu queria que fosse uma história feliz, que tivesse um sentido de possibilidade.”

Para recriar a linguagem da época, o autor lançou mão de vários instrumentos, como a linguagem diplomática, já que é diplomata de carreira; expressões jurídicas, uma vez que atuou como advogado; e expressões nordestinas rurais, já que passou parte da juventude no Ceará. “Foi um processo muito divertido”, diz. 

Homossexualidade e literatura

Esta não é a primeira vez que o autor aborda a diversidade sexual e de gênero em seus livros. Na conversa com Paulo Werneck, o autor dos romances Matias na cidade (Record, 2005), reeditado pela Companhia das Letras em 2023, Sergio Y. vai à América (2014) e Cloro (2018), pela mesma editora, diz que deve sua carreira literária à própria homossexualidade. 

       
Os romances Cloro, Matias na cidade e Sergio Y. vai à América, de Alexandre Vidal Porto

“Sempre quis escrever, mas aceitei a minha homossexualidade relativamente tarde. Me reprimi muito e por conta disso não escrevia”, disse. “Escrever é uma exploração do ser. Como tratar de temas de intimidade se eu tinha medo da minha? Só depois que a homossexualidade deixou de ser um problema eu escrevi.”

Vidal Porto também afirma que os livros ajudaram a aceitar sua sexualidade. E, desde então, tem tratado do tema tanto na vida pessoal quanto na literatura, para tornar o caminho mais fácil para as novas gerações.

Sodomita mostra que nós já existíamos, que nós fazemos parte da construção desse país desde o século 17, que esse país nos pertence”, afirma. “Nós não somos uma novidade, não chegamos aqui pós-Stonewall. É um abraço que nós, viados e sapatões, damos no Brasil. E é um grito: esse país também é nosso, fazemos parte dele desde sempre.”

O trabalho de reparação histórica de Vidal Porto se estende ao Itamaraty, onde o escritor e diplomata conta estar desenvolvendo um trabalho sobre a memória de colegas que foram perseguidos, aposentados compulsoriamente ou demitidos por sua sexualidade. O autor também considera importante tratar dos diferentes tipos de perseguição na diplomacia, já que as mulheres são as mais injustiçadas na carreira. 

“O grau de misoginia no Itamaraty é maior até do que o de homofobia e racismo”, diz. “A igualdade de gênero tem que ser construída. Não é tirando mulheres de ministérios, substituindo por homens. Você tem que deliberadamente colocar mulheres, o que exige vontade e determinação política.”

O melhor da literatura LGBTQIA+

O apresentador Thiago Coacci, do podcast Larvas incendiadas, que divulga estudos e pesquisas sobre gênero e sexualidade, indica Os otimistas, de Rebecca Makkai. Traduzido em Portugal por Elsa T. S. Vieira e publicado pela editora Asa, o romance ainda é inédito no Brasil. 


Os otimistas, de Rebecca Makkai

“Um dos livros que mais me marcou. Tem como pano de fundo a epidemia da aids em dois tempos e perspectivas. Nos anos 80, vemos o início e o ápice da pandemia pelos olhos de Yale, um jovem gay e diretor de museu. Já em 2015, vemos as marcas, permanências e transformações pelos olhos de Fiona, uma mulher hétero amiga de Yale e irmã de um de seus amigos que morreu em decorrência do vírus”, diz Coacci. “O livro não é só sobre tragédia, mas sobre amizade, temporalidade, marcas que perduram no tempo, resiliência.”

Confira a lista completa de indicações dadas no podcast 451 MHz, no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+.

O 451 MHz é uma produção da Rádio Novelo e da Associação Quatro Cinco Um.
Apresentação: Paulo Werneck
Coordenação Geral: Évelin Argenta e Paula Scarpin
Produção: Ashiley Calvo
Edição: Luiza Silvestrini
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Finalização e mixagem: João Jabace e Luis Rodrigues, da Pipoca Sound
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Coordenação digital: Bia Ribeiro
Para falar com a equipe: [email protected].b