Arte,

O manual do jogo

Livro faz defesa de um cânone do videogame, de Pong a Pokémon Go!, passando por Candy Crush

01abr2020 | Edição #32 abr.2020

“Videogames são arte?” Essa pergunta infame tornou-se tão irritante quanto “quadrinhos são literatura?”, questão onipresente nas discussões literárias do início da década passada, quando as chamadas graphic novels se tornaram uma febre e passaram a ser publicadas por grandes editoras. João Varella a aborda já na introdução do livro que a Lote 42 acaba de publicar. Parece que sempre que o tópico “videogames” aparece em algum veículo cultural é preciso, antes de mais nada, validar o meio. O gamer precisa estar com exemplos na ponta da língua de jogos com viés artístico indiscutível — Journey, Shadow of the Colossus — ou de influência literária — Orwell, 80 Days —, ancorando-se em outra forma de arte bem estabelecida para conseguir convencer um público que não joga de que as obras em questão não são meras brincadeiras de criança.

O livro Videogame, a evolução da arte não está focado em persuadir o público X ou Y, apesar da introdução provocadora. A abordagem de Varella é outra: já pelo título — a evolução da arte —, ele supõe que a questão está devidamente respondida, e que agora é necessário avaliar as mudanças que a mídia foi sofrendo desde os seus primórdios, rastreando seus avanços tecnológicos que permitiram um amadurecimento dos jogos. 

O livro tem algo de inédito no mercado brasileiro. Uma quantidade considerável de livros sérios foi publicada nos Estados Unidos a respeito do assunto; no Brasil, entretanto, a abordagem costuma ser a de orientar o consumidor para ver se vale ou não a pena gastar duzentos reais num jogo. Também há publicações voltadas a sistemas específicos antigos, embaladas em nostalgia (a coleção OLD!Gamer). Mas ninguém, até agora, havia ousado criar uma espécie de cânone.

A estrutura da obra assemelha-se a manuais de literatura, passando, em ordem cronológica, por fases e movimentos, a partir de obras específicas. Começa com Pong, o primeiro jogo eletrônico da história, e termina com GTA V, o maior êxito comercial da história da indústria do entretenimento (6 bilhões de dólares, mais do que filmes da saga Star Wars), e Pokemon Go!, que aponta um caminho de massificação de jogos a partir de recursos de “realidade aumentada” do smartphone. No entanto, a cada capítulo, pequenos deslocamentos não lineares são feitos, como se o jogo escolhido fosse apenas um ponto de partida para pensar todo um gênero.

Um argumento latente em todo o livro de Varella é o de que, ainda que nem todos os jogos possam receber o estatuto de “arte”, eles possuem um impacto cultural imenso, invadindo territórios alheios, como canais de esporte e redes sociais. Uma omissão curiosa é Dark Souls, considerado por muitos o game mais influente da década de 2010 — pode-se argumentar que ele não apresenta nenhuma novidade, apenas a atualização de um gênero (metroidvania, no qual é possível explorar de forma não linear um mapa enorme) em três dimensões.

Videogame oferece, portanto, um cânone à brasileira, reconstruindo a história do meio a partir do que foi popular no nosso país, tornando o livro uma viagem nostálgica para quem acompanha o cenário há anos. As análises de Varella costumam oferecer informações pouco conhecidas e comparações com obras de outras mídias, como a produção de Lygia Clark e Hélio Oiticica. 

O autor também reforça o impulso do id freudiano como motor do interesse do gamer explorado por diversos jogos violentos. Nesse sentido, o autor consegue escapar de uma dicotomia perniciosa. De um lado, estão os conservadores que acreditam que a violência na sociedade é amplificada ou motivada por causa dos games violentos; de outro, uma massa de jogadores que defende o meio cegamente, como se fosse mera coincidência o fato de boa parte dos jogos oferecer uma visão em primeira pessoa segurando uma arma. O livro tem a perspicácia de reconhecer que a violência — brutal, gratuita, exacerbada — pode, sim, ser um atrativo, e que grandes empresas lucram canalizando essa pulsão irracional.

Qualidade narrativa

O livro constrói um cânone a partir de avanços tecnológicos e da maneira como a interatividade foi evoluindo. Podemos invocar, então, os fantasmas cada vez mais vivos de Walter Benjamin e Theodor Adorno e questionar a ideia de progresso baseada em uma visão tecnocrática da mídia. 

Afinal, é possível falar de evolução quando os games parecem apontar ainda para um público muito jovem, como na época do seu surgimento, com a diferença de que agora qualquer celular tem mais poder de processamento que o computador mais caro dos anos 1980? Além disso, o fato de a indústria de games ter se tornado mais rentável que a do cinema não apontaria para uma indústria cultural estupidificante? Um exemplo é dado pelo próprio Varella, ao dedicar um capítulo a Candy Crush Saga, o aplicativo que está na tela do smartphone de tanta gente no metrô. Seria possível, então, pensar em um contracânone focado na evolução da qualidade narrativa dos jogos? 

No capítulo sobre Myst, jogo de 1993 bastante popular, o livro dedica apenas um parágrafo aos point-and-click adventures — nos quais você usa apenas o mouse para interagir com os objetos do mundo do game —, como Day of the Tentacle e Monkey Island. Esses jogos não apenas tiveram uma influência profunda no cenário brasileiro — muitas pessoas, como eu, aprenderam inglês através deles — como são um exemplo fulcral do uso de um texto bem escrito. Afinal, o que motiva alguém a quebrar a cabeça para resolver os desafios de Full Throttle é o desejo de avançar no enredo que o jogo está contando, de rir com piadas saborosas e de sofrer com o drama dos protagonistas. 

Seria possível pensar em um contracânone, focado na evolução da qualidade narrativa dos jogos?

Foram os adventures e os rpgs que construíram pontes entre o videogame e a literatura e provocaram um amadurecimento do meio. Os rpgs usaram a interatividade para construir dilemas morais de difícil solução, nos quais o jogador acaba moldando a personalidade dos protagonistas. O avanço tecnológico abriu muitas portas, mas uma história bem contada segue sendo importante. Graças à facilidade de criar e distribuir jogos independentes, muitos designers de todo o mundo estão usando gráficos simples para narrar histórias pessoais. 

Por outro lado, reclamar que Videogame não direciona seu holofote para jogos mais narrativos ou para o fenômeno dos games independentes seria exigir que fosse outro livro. Afinal, Varella está preocupado com o deslocamento das placas tectônicas provocado por terremotos culturais como Pokemon e GTA, e suas análises costumam ser precisas e pungentes. O livro instiga que o leitor crie seu próprio cânone. Eu já estou montando o meu.

Quem escreveu esse texto

Antônio Xerxenesky

Escritor e tradutor, é autor de As perguntas (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.