Arte,

O desafio dos catálogos de arte

Livro do Masp sobre a exposição de Wanda Pimentel mostra um universo em ebulição

09nov2018 | Edição #3 jul.2017

Catálogos de exposições de arte são publicações idiossincráticas. Seu hibridismo, meio livro, meio documento sobre um evento efêmero, os transforma em eternos desafios editoriais. Documentar a exposição de modo objetivo talvez seja a missão inicial de um catálogo, mas isso esconde armadilhas. Fotos de obras afixadas em painéis, nos quais o trabalho se reduz a um ponto em meio ao projeto expositivo, não são uma boa alternativa, a não ser quando a obra em questão lida de modo ativo com o espaço circundante. É importante que o catálogo reconstitua a narrativa da mostra, mas o que resulta dessa leitura fotográfica é um conjunto modorrento de páginas nas quais tudo se vê — o painel de abertura, o texto do curador na parede, o público —, menos a razão de ser da exposição: as obras. 

É bom lembrar que a temporalidade de uma publicação é diferente daquela de uma exposição: é desejável que o catálogo sobreviva, com autonomia, à ausência da mostra. Também não se deve esquecer que textos mais densos se acomodam melhor em páginas do que em paredes. Entendido assim, um catálogo se converte não só em um veículo de documentação, mas num complemento ao que vemos em exposição — amplificando e estendendo suas discussões.

E, se no lamaçal em que vivemos, manter uma programação viva já é um desafio às instituições, o que dizer da publicação de catálogos? Ávidos editores, como o Instituto Moreira Salles, o MAM de São Paulo e o Sesc puxaram o freio de mão. Outros, como a Pinacoteca de São Paulo, repensaram suas estratégias editoriais, readequando formatos e tiragens à realidade do momento: sem justificativa à planilha, não há impressão. 

O Masp passou por uma severa revitalização institucional em 2014. Das mudanças empreendidas, chama a atenção a revisão de sua identidade visual, implementada pelo designer Raul Loureiro. O Masp também vem se dedicando de modo sistemático aos catálogos. Entendidos como uma importante peça na construção da visibilidade institucional, explicitam a nova cara da instituição. 

O ponto de partida foi a publicação de Concreto e cristal: o acervo do Masp nos cavaletes de Lina Bo Bardi. Lançado em 2015, o volume surgiu como uma afirmação do novo momento, pois retrata a retomada do suporte expositivo projetado pela arquiteta italiana, em uma versão atualizada pelos arquitetos do escritório Metro. Desde então, a instituição publicou outros sete catálogos. E é sobre o mais recente, Wanda Pimentel: envolvimentos, que me detenho aqui.

Envolvimentos

Apesar de ter participado de quase uma centena de exposições no Brasil e no exterior, Wanda Pimentel habita as margens do circuito das artes visuais no país. A Enciclopédia Itaú Cultural não traz mais que uma lista de exposições, uma bibliografia e algumas reproduções de suas obras. Uma busca na internet pouco agrega ao fato de ela ter nascido no Rio em 1943 e ter sido aluna de Ivan Serpa. 

É diante desse cenário que 30 obras da série Envolvimento, realizadas entre 1967 e 1969, são apresentadas no Masp. Formalmente associada à pop art, mais para um Patrick Caulfield do que para os devotos da retícula, suas pinturas aspiram a uma dureza mecânica na ausência de qualquer referência à sua fatura. São campos de cores saturadas, delimitados por linhas pretas, que definem a figuração das obras. E desse registro vemos surgir um universo particular — ambientes domésticos, que servem de lugar a objetos e a um ubíquo corpo feminino, nunca revelado em sua totalidade. 

O catálogo é bem impresso. O bloco de reprodução de obras é precedido por seis textos nos quais Vera Beatriz Siqueira, Rodrigo Alonso, Lisette Lagnado, Sérgio Bruno Martins, a cocuradora Camila e o curador Adriano investigam questões caras à série. A representação do feminino, a busca de uma semântica dos objetos, o modo como a pintora constrói suas cenas são assuntos que perpassam os ensaios. O esforço em ler a produção da artista à luz de uma produção que expanda os domínios da arte brasileira, em uma tentativa de atualizar o discurso de suas obras, também é evidente. As produções de Dan Graham, Martha Rosler, Sandra Orgel, Chantal Akerman são convocadas para isso. 

No conjunto, os seis textos acabam por ter momentos de redundância. Porém o diálogo, quando ocorre, é muito bem-vindo. Se, para Vera, a artista trata de certa coisificação do sujeito, à medida em que naturalizamos os objetos e acabamos por nos confundir com nossas posses, para Lisette a coisificação está na reiterada representação fragmentada do corpo feminino, lido aí no registro do erotismo. Ao deslocar o foco dos objetos, Lisette também chama a atenção à espacialidade arquitetural das cenas. O espaço será tema também para Rodrigo, que enxerga no enquadramento cinematográfico das pinturas um embate entre dois espaços: o privado, aquilo que se vê na tela, e o público, o que escapa ao campo da pintura.

Quatro dos seis autores recorrem a citações de Frederico Morais, que acompanha a produção da artista desde os anos 60. Sabendo que seus textos sobre ela estão dispersos em catálogos e jornais (Wanda Pimentel, livro que organizou em 2012, está esgotado), não caberia aqui revisitar, não só como comentário, algumas de suas leituras? Intrigante também que nenhum dos autores tenha recorrido ao trabalho de Wilma Martins para comentar a série de Pimentel: em Cotidiano, conjunto de pinturas e desenhos que Martins criou de 1975 a 84, as tangências temáticas são gritantes.

Tímida, Wanda Pimentel sempre foi avessa a entrevistas. A ausência do discurso verbal parece potencializar as aberturas de entendimento de sua obra. Recorrendo a Morais, “é como se ela dissesse: é assim [por meio da pintura] que penso, falar não sei”. E diante desse silêncio, parece fazer sentido o esforço editorial para compreender o universo em ebulição retratado em suas pinturas.  

Quem escreveu esse texto

Daniel Trench

É um dos autores do projeto gráfico da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.