Design,

Enfim, um designer sem estilo

Morto em junho, Milton Glaser instigou profissionais a pensar na dimensão ética do design gráfico

01ago2020 | Edição #36 ago.2020

Icônico. Banido por justa causa dos “manuais de redação”, o adjetivo aqui se justifica. Ou melhor, é Milton Glaser quem não só o justifica mas, sobretudo, o ilustra — e faz isso à mão. Desenhar era algo central para o designer nova-iorquino, morto em 26 de junho, aos 91 anos. O desenho servia tanto como um meio para formalizar aquilo que restava em sua cabeça  sob a forma de ideia quanto como ferramenta de investigação do mundo.

No primeiro caso, o desenho é projeto, um instrumento de passagem da intenção à coisa (e foram muitas as que fez em mais de setenta anos de profissão). No segundo, o desenho é um modo de entender os contornos e a dimensão do que nos cerca e, por consequência, um jeito de entender a nós mesmos. Glaser foi aluno de Georgio Morandi, que, segundo o crítico inglês John Berger, conseguia pintar telas que juntavam a inconsequência das anotações que fazemos à margem dos livros a observações penetrantes.

É absurdo ser leal a um estilo, diz Glaser, frase que lembra outro Milton, o Millôr de “enfim um escritor sem estilo”. Estilo surge aqui como antítese à ideia de liberdade. Se o olhar é quem pauta, não há espaço para nada que pareça preconcebido. Veja-se sua relação com as normas do design moderno. Sob o império do racionalismo e suas palavras de ordem (objetividade, concisão, precisão), surgem nos anos 1960 projetos que tentam dar às informações a forma mais isenta possível (se é que isso é possível). É o caso da sinalização do metrô de Nova York: não há dimensão interpretativa, o que importa é orientar o fluxo de usuários. Glaser compreende isso, mas não replica os preceitos. Deles, o designer leva a sério a ideia de que a forma deve seguir a função, ao mesmo tempo que por muitas vezes gargalha — e nos faz gargalhar — do less is more.

Entender para quem se projeta é a tarefa primeira de um designer. Woodstock, a duas horas de Manhattan, era o refúgio de Glaser. Além de oferecer um silêncio contemplativo, que a cidade que amava se recusava a dar, o Vale do Hudson proporcionava algumas companhias. Phillip Roth era seu vizinho e companheiro de softball — e assim se tornou um cliente. Para ele, desenhou as capas de Fantasma sai de cena, The Humbling e Indignação. Já Complô contra a América foi, na realidade, resolvida pelo escritor — restou a Glaser escolher a tipografia e as cores. 

A capa de Indignação sempre me chamou a atenção. Potente, se constrói a partir da soma de suas partes. Do título na diagonal, que faz com que a palavra de onze caracteres ganhe escala e presença; do campo cindido em um contraste cromático, desestabilizando qualquer ideia de simetria; e do nome de Roth, no canto superior direito, tensionando tudo mais um pouco. É assim que a explosiva narrativa se traduz graficamente. Em conversa com Chip Kidd, Glaser diz não saber realmente se gosta da capa ou se a odeia: “Não parece muito com o meu trabalho”, afirma o designer antiestilo. E a culpa não cabia ao cliente. 

Less is less

Glaser operava com desenvoltura no espectro compreendido entre a síntese e a verborragia. Para ficar nos livros, da síntese formal de Indignação a The Electric Kool-Aid Acid Test, a jornada é curta. A capa do livro de Tom Wolfe, que acompanhou as viagens físicas e astrais de Ben Kesey, tem um complexo desenho figurativo. Dispostos em círculos concêntricos, fragmentos da narrativa de Wolfe surgem em cores saturadas e contrastantes. Lembrando que comunicar é a missão do designer, eis a experiência do vórtice lisérgico.
Mas para falar de síntese em Glaser, inevitável mencionar o i ♥ ny. A história é conhecida, mas vale repisar a inteligência de sua operação. O desenho icônico do coração é utilizado desde o século 14 para representar a ideia de amor. Glaser se apropria desse símbolo conhecido, mas o subverte, transformando o que era substantivo em verbo. Também opera um segundo deslocamento, ao associar o entendimento do amor romântico a uma causa social. A aposta na forma mínima da contração NY é certeira, pois dá concisão ao arranjo. Se seus termos flertam com o vocabulário moderno, a tipografia de Glaser põe a aproximação em xeque. De um purista, esperaríamos uma fonte sem serifa — quem sabe a fria Helvetica, do metrô nova-iorquino. Mas a escolha da expressiva American typewriter, com suas serifas arredondadas e ar mundano, deixa claro que seu compromisso era com o público, e não com seus pares.

Piero

Não causar mal: era o que respondia quando questionado sobre a responsabilidade de um designer. Se ele é o sujeito que formaliza ideias, que ideias estamos a formalizar? Assim, exige uma tomada de posição dos designers sobre aquilo que fazem, jogando luz na dimensão ética da profissão. 

Por outro lado, de que vale o desenho se não há ideia? A pergunta não encontra eco no virtuose. Mas, para Glaser, ela parecia ser sua força motriz. Na 19ª edição da revista Serrote, publicamos desenhos do seu Projeto Piero. Neles, Glaser volta seu olhar inquisidor à obra de Piero della Francesca: “A ideia era usar Piero como se ele fosse a própria natureza”, anuncia a página inicial do seu ensaio visual. Em nanquim, pastel, lápis de cor e aquarela; com massas de cor, manchas de tinta e traços, Glaser esmiúça a obra do mestre. Seus desenhos passeiam por diversos registros, mas todos, de algum jeito, têm a cara de Glaser — e não podemos confundir cara com estilo.

Art is work

Cinco meses após o lançamento da revista, visitei Glaser em seu estúdio em Manhattan. Serrote debaixo do braço, toco a campainha do endereço no qual a revista New York foi criada. No vidro translúcido acima da porta, a frase Art is work anuncia a natureza do que acontece ali dentro. Recebido por seu assistente, sou levado à sala de reuniões. Mesa retangular de madeira, paredes de um amarelo pálido, o mesmo de vários de seus desenhos. Na estante, que mais parece um gabinete de curiosidades, livros, garrafas, embalagens e maquetes se embaralham. Nervoso, dou a ele a revista. Analisa as páginas com atenção, elogia a impressão e pergunta, curioso, como chegamos aos desenhos, já que tinham sido expostos apenas uma vez, em Arezzo, na Itália. O catálogo está esgotado desde os anos 1990. Pergunta sobre a revista, que tipo de textos publicamos e quem já publicamos. Falamos sobre O Globo — que desgosto o que fizeram do projeto gráfico do jornal — e sobre a vida em Nova York. Viajar não era mais para ele, não se afastava de casa mais de dois quarteirões, a exata distância entre sua casa e o estúdio. Já não ia a Woodstock. Pena não lembrar mais exatamente o que ele disse, mas o tom era o do conhecimento que vem pela experiência. Antes do silêncio, ele me pergunta se eu quero saber de mais alguma coisa. Despedimo-nos. E, no fim do corredor, acima da porta, o Art is work em contracampo deixa de ser legível.

Quem escreveu esse texto

Daniel Trench

É um dos autores do projeto gráfico da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.