Arte,

Imagens do bem e do mal

Paisagens aéreas de Claudio Edinger e de Rogério Assis apontam os caminhos da arte no mundo contemporâneo

26nov2018 | Edição #15 set.2018

Só existe um problema fotográfico realmente sério: o clique. Julgar se a vida tem ou não direito à memória é a questão fundamental da arte. Tirar um retrato da felicidade fugidia (o “Pára, és belo!”, de Goethe) é atraente, mas para que eternizar uma existência dolorosa? Por duas razões: suportar o mal ou tentar combatê-lo.

As imagens aéreas de Claudio Edinger cumprem bem a primeira função. Vistas do céu, São Paulo e Rio de Janeiro parecem lugares aprazíveis. Quem nunca viu o lado bom dessas cidades subitamente depara com superfícies suaves, aveludadas, vaporosas. Nessas fotos oníricas, todos os sintomas de falência e degradação são lindos. Favelas sufocantes, avenidas entupidas, prédios encardidos, tudo é maravilhoso. Pior: até a poluição das indústrias de Cubatão é belíssima.

Paisagens são assim. Como nelas a figura humana desempenha um papel insignificante, desaparecem as colisões entre indivíduo e sociedade — razão pela qual este gênero desconhece o drama e a tragédia. Na ausência do sujeito, restam apenas os objetos, que não podem ser acusados pelo modo como são utilizados: igualmente incapazes de vício ou de virtude, as coisas são sempre inocentes, dizia Léon Walras. Essa desumanização desloca nossas inquietações para o fundo da cena, e o primeiro plano é ocupado pelos sentimentos positivos da coletividade.

O olhar distanciado

É essa positividade que torna as fotos de Edinger tão impressionantes. À distância, as metrópoles evocam o encanto emanado pelas ruínas da Antiguidade, invariavelmente vistas como produtos de civilizações pujantes, capazes de criações culturais que ainda hoje nos assombram. Como turistas, só retemos os aspectos benignos dessas sociedades porque relevamos as duríssimas condições de vida de seus povos. Ora, o turismo é a perspectiva dos que veem o mundo do lado de fora. Todas as injustiças e humilhações foram soterradas pelos monumentos. A feiura passou, a beleza permaneceu.

Por que precisamos olhar nossa civilização do exterior? Porque suas contradições internas se tornaram insuportáveis. “A verdade é feia: temos a arte para não perecer na verdade”, explicava Nietzsche. Carecemos de ilusões para encobrir a falta de sentido de uma existência condenada à morte. A esses infelizes, o fotógrafo traz o alívio do horizonte infinito, a imagem apaziguadora que só mostra a face luminosa do presente.

Esse narcótico não é novo. Quanto mais aterradora a realidade, mais abstrata a arte, notou Wilhelm Worringer. Desde o advento do capitalismo as obras vêm se afastando desse mundo alienado, no qual tudo o que é humano tornou-se estranho. E não foram só os quadros e estátuas que desviaram o olhar do real: os pilotis e mesmo a verticalização dos edifícios também constituíam uma expressão sensível desse desejo de se distanciar “do tecido da cidade deteriorada”, como apontou Fredric Jameson.

Além da vida danificada

“Vou-me embora pra Pasárgada. Aqui eu não sou feliz”, escreveu Manuel Bandeira. Todas essas sofisticadas formas de fuga permitem que as pessoas aguentem a dor. É um modo de garantir a sobrevivência individual, não de promover uma mudança coletiva. Mas a fotografia também poderia induzir alguém a revolucionar a sociedade?

Esse é o objetivo das imagens de Rogério Assis em Mato?, cuidadosamente editadas por Ciro Girard. As fotos aparecem sempre em duplas, sempre com as mesmas formas composicionais, sempre com conteúdos antagônicos: à esquerda, a natureza preservada; à direita, a natureza destruída. O contraste causa desconforto, porque interpela o contemplador — se este não agir, a devastação avançará.

Esteticamente o resultado é brilhante. As estruturas bipolares acentuam a tensão ao exibir ao mesmo tempo a tese e a antítese. Difícil é saber se as fotos são politicamente eficazes. Não há nenhuma evidência empírica de que as obras de arte tornem os homens melhores, constatou John Carey. Hitler apreciava as óperas de Wagner, o Peer Gynt de Ibsen, o Discóbolo de Mirón. Não foram de grande serventia.

Afinal, de que nos adianta a arte certa se as próprias pessoas são erradas? Pois nada assegura que a mensagem virtuosa será compreendida e aplicada corretamente. La Rochefoucauld observou com razão que os bons exemplos sempre produziram maus resultados: quantos fanfarrões se inspiraram na coragem de Alexandre, quantos tagarelas foram criados por Cícero? “Todos estes grandes originais produziram um número infinito de cópias ruins… Somos tão cheios de falsidade que nos servimos deles mais para nos afastarmos do caminho da virtude do que para segui-lo.” 

Quem escreveu esse texto

Mauricio Puls

É autor de Arquitetura e filosofia (Annablume) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva), e editor-assistente da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.