Arte,

Cildo de corpo inteiro

Síntese crítica fornece visão completa da trajetória do artista, com resultado que nenhuma exposição retrospectiva alcançaria

15nov2018 | Edição #9 mar.2018

Livros de arte são aves raras no mercado editorial brasileiro. Enquanto a maior parte das grandes editoras foge de seus custos altos e vendas baixas, os catálogos de exposições de museus circulam apenas sofregamente entre leitores, assim como as edições patrocinadas e fora de circulação. Como resultado, poucos títulos conseguem ter presença regular nas estantes de livrarias, com algumas exceções, como acontecia com as edições da extinta Cosac Naify, que explorou o filão com diferentes formatos. No geral, no entanto, impera nesse nicho de mercado o paradoxo do livro esgotado antes de ser distribuído. 

Por isso faz sentido que a editora Ubu publique, entre os primeiros lançamentos do seu catálogo de arte, uma fornida monografia dedicada a Cildo Meireles, um dos mais relevantes artistas brasileiros em atividade hoje. Meireles, ou como prefere o título do livro, Cildo, ocupa um lugar da maior importância entre os artistas de sua geração, tendo construído uma carreira internacional sem comparação, com exposições em instituições que se dedicam à arte contemporânea em escala global. 

Para citar algumas delas, em 1995 o Ivam de Valência, na Espanha, organizou sua primeira grande retrospectiva, seguido pelo New Museum, em Nova York (1999), a Tate Modern de Londres (2008) e o Reina Sofía de Madrid (2013). Cada uma dessas exposições teve o seu registro editorial, alguns deles com versões brasileiras, que já não se encontram disponíveis para o público. De certo modo, o volume que vem à luz agora faz uma crônica dessa trajetória.

Para o leitor que não o conhece, vale uma brevíssima apresentação de Cildo. Nascido em 1948 numa família de importantes indigenistas, ainda criança o artista viveu em Goiânia e Belém, até mudar-se para Brasília, onde morou dos dez aos dezenove anos. A recém-criada UnB (Universidade de Brasília) teve papel fundamental na sua formação. O caráter nômade de sua biografia segue com passagens pelo Rio (onde veio a se fixar), Paraty e Nova York, algo que o levou a dar à vivência um papel importante no surgimento de seus projetos.  

O crepitar do celofane

No trato pessoal, Cildo é um conhecido causeur, fascinando o interlocutor com histórias da gênese de suas obras. Uma delas dá conta de que a ideia para uma de suas mais célebres instalações, Através (1983-89), que faz parte de sua galeria permanente em Inhotim, nasceu quando ouviu o crepitar de uma bola de celofane na lixeira. Esse mundano ruído teria colocado em marcha o impulso para criar o impressionante conjunto de barreiras translúcidas que se articulam para formar um labirinto com chão de cacos de vidro e uma massiva esfera de celofane no centro.

Na sua profícua produção, identificamos uma série de interesses que remetem mutuamente uns aos outros — do apropriacionismo à física quântica, da questão indígena à geografia do Brasil, dos sistemas de medição do tempo e do espaço ao som, da plurissensorialidade à crítica materialista da obra de arte e de seu valor de uso e de troca. Se Tunga, artista precocemente morto, um de seus mais interessantes contemporâneos, dizia que sua própria obra era um só contínuo ao longo dos anos, podemos parafraseá-lo para afirmar, à moda de Heráclito, que a obra de Cildo é uma sucessão de pequenas rupturas formando um todo coerente.

É uma retrospectiva agigantada, impossível de ser feita como exposição, e só materializável em livro

De maneira acertada, os organizadores e editores do livro escaparam de uma publicação atrelada a um projeto de exposição, o que lhes permitiu fazer um recorte mais abrangente e transversal na obra do artista, que reflete diversos desses interesses. Para estruturar esse recorte, optam por dois pilares. O primeiro deles é uma catalogação de cerca de quarenta projetos de Cildo, desde o início, no fim dos anos 60, até obras executadas nesta década de 2010, representadas por fichas técnicas, sinopses e documentação visual. O segundo pilar é uma antologia de doze textos críticos, cobrindo o mesmo arco cronológico. Aquilo que amalgama tudo é a noção de “estudo”, extraída da própria obra de Cildo.

O termo aqui não se refere ao desenho feito para que o artista aprofunde sua habilidade na apreensão de um motivo, como na acepção mais clássica, mas antes àquele que serve para registrar uma ideia, passando-a do pensamento à anotação, a primeira etapa de um experimento.

Esse recurso aparece com frequência na obra do artista, e muitas vezes um projeto leva anos até sair do papel para ganhar o espaço, existindo apenas como possibilidade. Guilherme Wisnik e Diego Matos, organizadores do livro, citam ainda como referência o estudo musical, forma de composição que serviria inicialmente para a aprendizagem, mas que acabou se transformando num gênero em si com seus próprios códigos. 

Os característicos desenhos de Cildo sobre papel milimetrado conduzem a narrativa da publicação, desde séries como Volumes virtuais (1968-69/2013), que só recentemente começaram a ser executados, e Espaços virtuais: cantos (1967-68/2008), alguns dos desdobramentos mais vibrantes do interesse neoconcreto por uma geometria que invade e se confunde com o espaço real, até Nós formigas (1995/2013), em que uma pedra monumental suspensa por um guindaste ameaça esmagar uma colônia de formigas.

Frederico Morais

A republicação de textos há muito fora de circulação é um dos méritos do livro, e aqui cabe uma reverência ao crítico Frederico Morais, companheiro de geração de Cildo e assíduo leitor de sua obra. É impressionante como em seu texto “Ambientes”, de 1969, ele já aponte para uma série de questões importantes para a obra do artista a partir daí, aproximando-a de referências contemporâneas como o argentino David Lamelas, cuja obra naquele momento mantinha afinidades com a do brasileiro. Morais puxa a fila para leituras de autoras como Lisette Lagnado, Lynn Zelevansky e Sônia Salzstein. 

O que se tem é uma espécie de retrospectiva agigantada, impossível de ser feita como exposição e só materializável neste volume virtual, que aprofunda os estudos da obra de Cildo e se oferece como robusta introdução àqueles que pretendem se banhar pela primeira vez em suas águas. 

Quem escreveu esse texto

Rodrigo Moura

Editor e crítico de arte, é ex-diretor artístico do Instituto Inhotim e curador-adjunto do Masp, onde curou a exposição Quem tem medo de Teresinha Soares? (2017).

Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.