Arte,

Transitoriedade e sabedoria

Reunidos em livro, desenhos de Waltercio Caldas constituem o lugar onde suas ideias artísticas tomam corpo no espaço

26nov2018 | Edição #15 set.2018

Não conheço artista visual brasileiro mais identificado com a rubrica “livros” do que Waltercio Caldas. Desenhista gráfico, colecionador-bibliófilo, autor de notáveis livros de artista, suas relações com os livros são múltiplas, assim como é diversa a bibliografia de títulos dedicados a sua obra. Desde o fundacional Aparelhos (1979), sua participação direta na elaboração desses trabalhos torna menos claras as fronteiras que separam os livros “sobre” e os livros “de”, sempre com resultados instigantes e um fluxo de mão dupla entre objetos tridimensionais e a sua leitura nas páginas. Por vezes, as obras nascem primeiro no espaço gráfico e depois ocupam o espaço real; por outras, ganham novas conotações quando passam das três dimensões à página.

Essa é uma maneira própria de tensionar a noção de autonomia da obra de arte, conceito que, junto com a fisicalidade, a percepção e a imaginação, articula o substrato filosófico inseparável da obra de Caldas. Fotografia, desenho, palavra e escultura são elementos convocados para adensar esse espaço inquieto. Nessa trajetória, é incontornável um trabalho como Manual da ciência popular (1982), livreto-coletânea com 21 obras publicado a princípio pela Funarte e depois pela Cosac Naify, com legendas sugestivas que ajudam a disparar o gatilho crítico do leitor-espectador, aproximando-o de obras de arte como de enigmas. 

Essa obras, de construção e circulação em princípio simples, sempre acendem certa problemática sobre sua materialidade e interpretação. Como o próprio artista me disse numa entrevista há quase vinte anos, a propósito de um novo livro: “Não podemos simplesmente nos dar ao luxo de construir objetos no Brasil. Temos que criar circunstâncias para esse objeto”. 

Algo parecido é o que ele se propõe a fazer com Os desenhos, monografia que reintroduz a obra de Caldas nas prateleiras, a partir do enquadramento do desenho. Trata-se, a princípio, de uma coletânea de sua obra de desenhista, mas que tenta não confinar a noção de desenho a uma disciplina ou a um suporte estritos. “Desenho” vem de “desígnio”, do latim designare: marcar, apontar. Em entendimento mais amplo, denota um estado entre o mental e o físico. Ao depositar o gesto no papel (ou outro suporte), o desenhista deixa sua marca — seja para registrar algo que existe fora de si, seja para anotar algo interior, que poderá vir a ser depois. 

Num texto sem data, chamado “Do desenho”, Mário de Andrade faz uma bela definição, que vem à mão aqui: “Ao mesmo tempo uma transitoriedade e uma sabedoria”.

Desenho e poema

Os desenhos abre com uma suíte de 1968, Sinfonia o ar, na qual o artista distribui delicados signos gráficos sobre a superfície, de maneira a ativar os espaços vazios entre eles, como se estes fossem na verdade a parte mais dinâmica do desenho. Aqui vemos uma relação direta do desenho com o poema visual, que remete a Mallarmé, ou com a notação musical. O generoso arco cronológico da publicação remonta a desenhos anteriores, de 1964, e inclui séries antológicas como Leitura silenciosa (1975), que tangencia a arte conceitual, porém sem a sua tendência analítica. 

No ponto em que se detém sobre a presença da historicidade da obra de Caldas, o crítico Lorenzo Mammì, autor do ensaio que abre o livro, aponta o artista como herdeiro do neoconcretismo, não no sentido de seu continuador, mas sim de receptor das relações libertadoras que aquele movimento inaugurou com suas fontes concretistas. Caldas, como outros artistas de sua geração no Rio de Janeiro, teria expandido essas relações no marco da recepção brasileira do minimalismo e da arte conceitual. 

O desenho é fundamental na ligação das esferas de trabalho, entre espaço escultórico e espaço gráfico

Mammì chega a uma formulação contundente: “A melhor síntese, hoje, é a fissura: uma obra de arte perfeitamente resolvida em si mesma seria, com toda probabilidade, uma obra fracassada”. Esse desassossego do sentido é o que faz da obra de Caldas uma das principais chaves de entendimento para a arte produzida no Brasil nos últimos cinquenta anos e uma de suas mais instigantes portas de entrada para novos convertidos. 

E é nos desenhos, diz Mammì ao fim do texto, que tudo toma corpo. Nesse particular, o livro poderia ter ido além e reforçado a posição da obra de Caldas em direção a uma espécie de desenho no campo expandido (para adaptar a expressão feliz de Rosalind Krauss sobre a escultura), quesito em que é pioneira. Justamente na relação do desenho sobre papel com as obras tridimensionais há as fricções, sobreposições e intersecções mais interessantes de sua obra — à maneira do que acontece na relação dos livros com os objetos, em outras obras de Caldas.

O desenho é fundamental na ligação das esferas do trabalho, entre espaço escultórico e espaço gráfico, e elemento recorrente de sua obra, que a atravessa por diversas linguagens. Ponto, linha e plano ganham o espaço do papel e a sala de exposição em intercâmbio criativo. Na maneira como estão ordenadas, as reproduções do livro correm o risco de aborrecer um pouco o leitor como uma sucessão cronológica de imagens, como num catálogo, o que afinal não é o caso. Isso não ocorre no bloco onde está o texto de Mammì, interrompido por imagens que abrem mais possibilidades para o entendimento do desenho (algo, não custa anotar, oriundo da própria obra de Caldas). A obra Pontos-estudo (1975) torna essa articulação mais visível. É ao mesmo tempo um conjunto de desenhos e um desenho no espaço e poderia ser uma terceira coisa ainda no livro.

A persistência dos desenhos ao longo de sua carreira já havia sido abordada numa pequena monografia de 2006, Ateliê transparente, publicada pela editora C/Arte, que reproduz páginas dos seus cadernos de anotações. Ela aparece de novo, agora em recorte bem mais alentado, ampliando consideravelmente o repertório publicado de sua obra bidimensional e documentando séries até então dispersas. Na vertiginosa indefinição de Caldas para o objeto de arte, o desenho não fica atrás. Sobre o ato de desenhar, ele escreveu, em 1997: “Desenhos são, na maioria das vezes, objetos de papel e alguns acreditam que desenhar é a tarefa mais rápida da arte. Mas a arte deve muito ao ‘quase nada’ e desenhos permanecem como sorrisos indo, desprevenidos, em direção ao esquecimento”. 

A depender deste livro, nada mais distante da verdade.

Quem escreveu esse texto

Rodrigo Moura

Editor e crítico de arte, é ex-diretor artístico do Instituto Inhotim e curador-adjunto do Masp, onde curou a exposição Quem tem medo de Teresinha Soares? (2017).

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.