Arte,

A vida das imagens mortas

Integrante da primeira geração a ter acesso amplo à internet, Dunley produz uma arte reflexiva a partir de um diálogo com símbolos gastos

23nov2018 | Edição #14 ago.2018

Bruno Dunley é da primeira geração de pintores de São Paulo a lidar com a hiíperinformação. Quando ele começou a trabalhar, já existia acesso amplo à internet, encontravam-se mais livros sobre a produção visual nacional e estrangeira e o meio artístico dialogava de maneira mais aberta, sobretudo em termos mercantis, com a produção internacional. Isso não foi necessariamente uma vantagem, mas uma condição.

Pintores dessa geração, como Ana Prata, Rodrigo Bivar, Rodolpho Parigi, Marina Rheingantz, Lucas Arruda, Ana Elisa Egreja, Renata de Bonis, Regina Parra, Marina Serri, Rafael Carneiro, lidaram com essa circunstância de maneiras muito diferentes.

Uma das questões ligava esse novo contexto produtivo com uma exigência crítica da pintura construída no Brasil nos últimos anos. A geração de Dunley aprendeu a fazer pintura no diálogo com artistas mais experientes como Paulo Pasta, Claudio Cretti, Rodrigo Andrade, Leda Catunda, Sérgio Sister, Fábio Miguez, Cristina Canale, Paulo Monteiro e tantos outros.

A conversa, de alta voltagem intelectual, exigia reflexividade e especificidade na representação da arte. A obra deveria organizar uma estrutura que se mantivesse sozinha, autônoma, em diálogo crítico com a história da arte. A pintura deveria responder à altura das melhores produções dessa narrativa e fazer sentido para a vida cultural brasileira. Mas como ter tal presença, como garantir tal contundência em um momento de profusão de imagens, em que a pintura se perde entre elas e corre o risco de se banalizar?

A monografia sobre Bruno Dunley conta como ele tentou responder a essa questão ao longo de sua carreira. Varia modos de pintar, temas, procedimentos, para tentar fazer da pintura um espaço de contemplação reflexiva. Como ele formula: “Até que ponto a pintura poderia ter alguma característica intrínseca à sua linguagem que pudesse fazer frente a esses códigos tão gastos”. Ele se pergunta se “a pintura, suas qualidades materiais, suas qualidades de procedimento poderiam emprestar alguma vitalidade àquelas imagens mortas”. Nesse caso, as imagens mortas são os códigos legíveis da comunicação visual.

Por isso, um dos assuntos do livro é o diálogo com as fontes. Elas são tanto a história da arte como o arquivo que serve de inspiração para a estruturação de suas pinturas. As imagens desse arquivo ilustram as guardas do livro e são lembradas nas conversas com Cadu Riccioppo, Ana Prata, Leda Catunda, Rodrigo Andrade e João Bandeira. Vemos as metamorfoses que a pintura de Dunley sofre no esforço de conseguir alguma distinção do seu trabalho em um espaço banal.

Os dez anos de sua trajetória são mostrados como em uma exposição. O pintor constrói panoramas das pinturas em páginas duplas que se abrem para a esquerda e para a direita. A ordem das imagens não é necessariamente cronológica. Há aproximações temporais, mas em alguns momentos ele junta trabalhos como Teatro de sombras I (2010) e ChromaKey (2013) por questões conceituais. O monocromo e uma imagem acinzentada, com pinceladas curtas, lidam com a superfície como receptora da projeção de imagens. Notamos no livro a recorrência de temas, de figuras e o desejo de se aproximar de questões clássicas da história da arte.

Mesmo assim, alguns cortes temporais são sensíveis. Os primeiros trabalhos, de 2007 a 2010, eram mais dependentes da imagem fotográfica. A pintura partia dela e criava um espaço reduzido, de colorido rebaixado, gasto, que lhe dava um tom memorialístico e metafísico. Sob a influência de pintores como Luc Tuymans, Dunley pintava como se forjasse um passado.

Depois de 2010 o trabalho parece se desinteressar pelo tratamento subjetivo, afetivo das imagens. Embora ainda pinte a partir de imagens retiradas de outro lugar, os motivos não são necessariamente fotográficos: a relação passa a ser entre a estruturação gráfica da imagem e o tratamento de pintura.

A pintura se torna mais próxima dessas imagens ordinárias, menos estilizada, feita com pinceladas contidas e programadas. Em Pinguim (2011), o esqueleto encolhido do animal faz lembrar um esquema de manual de instruções, um brinquedo. A pintura é engraçada. Com esse aspecto tenta desfazer a sisudez da apresentação objetiva da imagem.

A tensão entre uma pintura com presença e uma imagem esfriada alimentou a pintura de Bruno por um tempo. Embora tenham tratamento mais sisudo, cabeçudo, as pinturas dessa época são mais atrevidas. O trabalho tenta se aproximar de formas de comunicação visual não artísticas. Os códigos são copiados por uma pintura mais cremosa, derramada. O aspecto ilegível, falhado, raspado desses símbolos é uma razão das graças do trabalho. O artista contrapõe esses códigos legíveis a uma pintura controladamente subjetiva e material, como se essa experiência desfizesse os símbolos.

Acredito que entre 2014 e 2015 Dunley libera a expressividade. Embora ainda pinte a partir de estruturas prévias, a semelhança com os motivos é menor. O gesto é mais aberto, as cores mais contrastadas, as formas mais exageradas. As relações visuais são mais estridentes. Algumas formas possuem o contorno grosso, a cor que compõe os fundos é mais massuda e arranhada. Curiosamente, nesse momento ele se aproxima de temas da tradição europeia. Sobrepõe a essa pintura mais exagerada grafismos que lembram temas clássicos: vulcões, paisagens, bestiários, retratos. As figuras parecem resíduos meio caricaturais de faunos, batalhas, rostos que restaram numa superfície arranhada e irregular. Como uma pichação em um muro descascado, são símbolos frágeis que parecem ter perdido o seu interlocutor há tempos. Construções deslocadas da sua aventura, de sua epopeia grandiloquente, do seu drama. Talvez por isso fazem lembrar os acolchoados de Claes Oldenburg e a pintura frágil de Raoul De Keyser.

Em alguns trabalhos Dunley transforma a poeira brilhante retirada das pinturas de Ticiano e Mabuse em bacilos coloridos pesados tronchos. Não há ironia com a história da arte, mas uma tentativa de narrar com esses elementos mais codificados. Como se fosse possível produzir arte mais reflexiva com um repertório visual gasto. De maneira otimista, Dunley parece tentar manter algum grau de reflexividade na arte, até de lirismo. Não acredita ser possível fazer isso sem rir da própria adversidade.  

Quem escreveu esse texto

Tiago Mesquita

Crítico e historiador de arte, organizou o livro Resistência da matéria (Cobogó).

Matéria publicada na edição impressa #14 ago.2018 em agosto de 2018.