Arte,

Perdendo tempo (e espaço) na internet

Por um mês, o artista e poeta Kenneth Goldsmith expôs on-line um quadrado preto de um quilômetro quadrado

20nov2018 | Edição #11 mai.2018

O poeta, ensaísta e performer Kenneth Goldsmith ocupou, de 19 de março a 18 de abril, o site de artes plásticas aarea.co. Goldsmith é uma figura importante para a literatura, para a teoria e para a internet. Escreveu importantes ensaios sobre a hiperinformação e o uso das redes, a exemplo de Wasting Time on the Internet

Em paralelo à sua produção acadêmica e literária, Goldsmith fundou o ubuweb (ubu.com), o maior arquivo da vanguarda na internet e, possivelmente, o maior arquivo da vanguarda, sobretudo a produzida no Atlântico Norte. Faz algum tempo, ele adotou um princípio radical: não criar nada, apenas reunir — textos, falas, sons, imagens, coisas prontas já feitas por outros. A partir de um ponto de vista warholiano, critica a ideia romântica de gênio criativo. Em seus trabalhos como poeta ou arquivista, nunca estamos diante do original, do genuíno, do definitivo, mas de uma cópia, da cópia da cópia, que, de tão reproduzida, já não se distingue do original. Em vez disso, Goldsmith se pensa como reprodutor. 

Goldsmith converte o espaço virtual da internet em um espaço físico. Não há informações, textos, escritos, mudanças tonais

Mais do que isso, com as possibilidades abertas pela internet, ele se vê como uma espécie de reprodutor de reproduções. Sua prática não se dedica a criar, mas a transpor arquivos de um lugar para outro. Em um de seus livros, Goldsmith se propõe a transcrever ipsis litteris a programação de rádio, como na trilogia The Weather, Sports e Traffic (este recriado em uma divertida versão brasileira, Trânsito, por Leonardo Gandolfi e Marília Garcia, publicada pela editora Luna Parque). 

Mais recentemente, em Seven American Deaths and Disasters (2013), outra vez inspirado em Warhol, transcreveu reportagens televisivas e radiofônicas sobre a morte de John Lennon, Michael Jackson e dos Kennedy, além de tragédias como o massacre em Columbine, o 11 de Setembro e a explosão da nave espacial Challenger. Essa relação com a mídia, com a produção e a reprodução reabre um novo capítulo com a recente intervenção no site aarea: One Square Kilometer (for Walter de Maria)

A página, coordenada pelas curadoras Lívia Benedetti e Marcela Vieira, convida artistas a desenvolver obras que podem ser vistas apenas em rede, ao longo de aproximadamente um mês. Os trabalhos não existem fora da internet e, efêmeras, as intervenções saem do ar ao fim de sua edição. 

Talvez por isso, outros convidados como Ana Prata, Nuno Ramos, Roberto Winter, Pedro Caetano e Beatriz Toledo tenham se aproveitado, de forma inédita em sua produção, das ferramentas de comunicação e circulação da rede. A contemplação dos trabalhos considera que, necessariamente, estamos em um site. 

Prata fez um slideshow e Caetano criou um labirinto psicodélico de gifs animados. Ramos e Toledo se aproveitaram das transmissões ao vivo da internet, um para dialogar com o noticiário, a outra para problematizar a superexposição quase como um bastidor da arte. Winter se utilizou de uma relação entre vídeos e atalhos para transcodificar o seu filme A Role Play para a linguagem virtual. Mesmo que esses arquivos não possam ser acessados, o espaço já possui um programa respeitável. 

Quilômetro quadrado

O projeto de Goldsmith possui especificidades. Ele converte o espaço virtual da internet — desmedido e brilhante — em um espaço físico. Ocupa o site com um terreno de um quilômetro de altura por um quilômetro de comprimento. Mais que isso, trata-se de um quilômetro quadrado de uma mancha preta, chapada, regular, sem nada dentro. Não há informações, textos, escritos, mudanças tonais. Trata-se de um espaço escuro, que percorremos pelas abas laterais sem encontrar nada nem ninguém. Como um quilômetro quadrado não cabe em tela nenhuma, nunca temos uma apreensão total do quadrado. Rolamos as barras como se circulássemos por um terreno amplo, vazio, desabitado. A metáfora do trânsito na internet é a de percorrer um vácuo. Ansiosamente, saímos atrás de um acontecimento, em pixels escuros, sem que nada se distinga daquela massa maçante e homogênea. Perdemos tempo, nada acontece. 

Vácuo 

Embora seja muito simples em sua proposição, o trabalho trata a experiência de forma mais aflitiva do que toda a obra precedente desse artista e poeta. A página é reduzida a uma estrutura insondável, que nos prende mais a esse vácuo, talvez mais um pântano de hiperinformação que um lugar que nos leva de um lado a outro. Percorremos aquela inflação de informações, esperando que algo aconteça. Um site após o outro, acreditamos estar chegando em algum lugar enquanto permanecemos imóveis, sentados, sozinhos, diante de uma tela iluminando nosso rosto. 

Em seus livros, ele faz com que a informação se transforme em espaço; como poeta, cria livros tediosos

Não deixa de ser curioso. Kenneth Goldsmith possivelmente é um dos autores mais resignados e otimistas a escrever sobre a rede. Ele parece pensar a experiência on-line como mais uma das formas possíveis de se comunicar, de viver, entre outras. Aqui, no caso de One Square Kilometer (for Walter De Maria), a coisa parece mais solitária, mais agônica. 

Talvez a mudança tenha relação com uma inversão do seu procedimento. Em seus livros, Goldsmith faz com que a informação se transforme em espaço. Como poeta, produz livros quilométricos, propositalmente tediosos, com informações reiteradas, impessoais, sem descrição de particularidades. 

Neles, a vida em Nova York segue, independente da experiência de qualquer um. No site aarea, o espaço se transforma em informação. O experimentamos sem sair do lugar. Nada acontece, mas nos mantemos presos a esse lugar nenhum. Não há impessoalidade, só não há o mundo ao redor, imagem nem informação. Diante de uma página da internet, percebemos estarmos sós como nunca.

Quem escreveu esse texto

Tiago Mesquita

Crítico e historiador de arte, organizou o livro Resistência da matéria (Cobogó).

Matéria publicada na edição impressa #11 mai.2018 em junho de 2018.