Arte e fotografia, Infantojuvenil,
Pela estrada afora
Um registro visual da vida das crianças refugiadas em todo o mundo
08nov2018 | Edição #2 jun.2017É relativamente breve o período em que a literatura infantil passou a se valer de eufemismos e elipses para tratar da violência extrema. Resume-se, talvez, ao breve século 20.
Sabe-se que os clássicos como Grimm, Perrault e Andersen contêm em suas versões originais cenas cruas de dor, medo e abandono. A criação de uma massa crítica e de um leitorado infantojuvenil, além de certo ímpeto superprotetor, trouxeram a preocupação de poupar as crianças das imagens desestabilizadoras e banir a violência extrema das narrativas infantis, dando lugar a metáforas bem-intencionadas. Porém desde a transmissão ao vivo do ataque às Torres Gêmeas, em 2001, parece impraticável esconder das crianças as cenas pesadas. Definitivamente, precisamos — nós e as crianças — lidar com essas imagens.
Não faltam boas intenções a Onde vou morar?, da canadense Rosemary McCarney — os direitos do livro são doados a programas de acolhimento a crianças refugiadas. Mas não é poupando o pequeno leitor de imagens angustiantes que a autora busca cumprir os seus bons propósitos.
O livro toca temas fundamentais da literatura infantil como a casa, a estrada, o deserto, a floresta, a criança perdida, o abandono, mas com personagens reais. A linguagem escolhida, o fotojornalismo, resulta original em meio à fofura tão na moda na ilustração infantojuvenil. E traz a mensagem direta e sem metáforas da vida de crianças refugiadas ao redor do mundo.
“Onde vou morar?”, indaga a narradora. A resposta, dada nas fotos, jamais aponta para o conforto: uma tenda na Grécia ou uma “cidade de barracas” na Jordânia? Embaixo de uma escada no Líbano? No asfalto de uma cidade húngara? Debaixo de um tapete no Sudão do Sul? Dividindo a cama com desconhecidos?
Voltar para casa não está em questão. Até porque não sabemos de onde vêm as crianças fotografadas — o que não deixa de frustrar a nossa empatia imediata, bem como a curiosidade jornalística de saber mais sobre elas. Como se chamam? O livro não traz legendas, como se a condição de refugiados definisse a sua essência. Não sei se isso é bom.
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Os cenários são sempre hostis e catastróficos: paisagens áridas, a cidade grande e indiferente, o frio europeu que se nota nas múltiplas camadas de agasalhos, a terra seca e a água suja. Quase não há brinquedos. Quando não sorriem, as crianças mostram a expressão dura e adulta que no Brasil vemos em crianças de rua ou que trabalham. Muitas arrastam galões de água ou combustível.
A autora, diplomata, já publicou meia dúzia de livros para crianças, dois deles no Brasil. Onde vou morar? comove por tratar sem rodeios de um tema sempre evitado, mas incontornável. Verdadeiro material de propaganda do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, de forma talvez involuntária ele dá à literatura infantil um sabor de hard news, e abre um caminho estético interessante para que as crianças lidem com o mundo de hoje.
Surge, por fim, como lição número um de humanismo, direitos humanos e geopolítica.
Matéria publicada na edição impressa #2 jun.2017 em junho de 2018.
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