Crônica de Óbidos,

A muralha de papel

Inês não é morta para o turista literário viajar pela história e pela literatura portuguesa

01fev2024 • 20mar2024 | Edição #78

“De que raça, de que planeta vêm os turistas?”, perguntou-se Murilo Mendes em Carta geográfica, fascinado pelos rebanhos de americanos, franceses e britânicos e “sua indumentária, seus tiques, seus gostos, suas reações, seu carneirismo”. Instalado em Roma, mas sempre zanzando entre Lisboa, Paris e Madri, o poeta de Juiz de Fora registrou em verso e prosa o fenômeno então nascente dos rebanhos de turistas pela Europa, e escreveu que, se fosse cineasta, gostaria de fazer um filme sobre eles. “Ai de mim: de que raça, de que planeta venho eu, turista, embora não-carneiro?”.

O filme de Murilo não saiu, mas suas perambulações por um Portugal ainda pré-turístico ficaram registradas em Janelas verdes, livrinho que teve apenas uma confidencialíssima e póstuma edição de 250 exemplares, publicada em Lisboa, em 1989, com tintas-da-china de Vieira da Silva. O título, esclarece o autor, “não se refere ao Museu das Janelas Verdes. Refere-se a espaços abertos; à liberdade; ao campo e ao mar de Portugal, ao verde que ali nos envolve sempre”.

O carneirismo turístico desde então só cresceu na Europa, em particular em Portugal, destino de brasileiros, americanos e europeus atraídos pelo sol, pela segurança e pelo agito do Bairro Alto e outros redutos boêmios de Lisboa e do Porto.

Na primeira parte, o poeta dedica textos em prosa poética a cada uma das cidades e vilas que visitou no país. Na segunda, os textos são dedicados a grandes artistas e poetas lusos com quem Murilo e sua mulher, Maria da Saudade, conviviam em suas temporadas no país, onde ele acabou ficando — está no Cemitério dos Prazeres, pertinho da Casa de Fernando Pessoa.

O livrinho de Murilo Mendes pertence a uma linhagem que nasce com as Viagens pela minha terra de Almeida Garrett, passa pelo guia de Lisboa O que o turista deve ver, escrito em inglês por Fernando Pessoa, e por Viagem a Portugal, de José Saramago, que acaba de ser reeditado no Brasil em edição mais amigável para levar na mochila — a anterior era em formato grande e capa dura —, ilustrado com fotos tiradas pelo escritor em suas andanças pelo país. A editora Caleidoscópio publicou Sketch Tour Portugal, com desenhos de observação de diversas regiões do país, acompanhados por textos de autores portugueses contemporâneos. Tendo à mão esses roteiros literários, o turista-leitor pode se entregar a destinos e experiências menos óbvias.

Brancura

Bem antes de ser tornar oficialmente uma “vila literária”, a cidadela de Óbidos já estava no roteiro de Murilo e Saramago — ambos louvaram a sua brancura. Mas o português implicou com o excesso de flores: “Óbidos, para gosto do viajante, deveria ser menos florida”. E explica: “O valor cromático do branco das paredes é diminuído pelas maciças jardinagens, renques de verdura que caem do alto dos muros, canteirinhos donde sobem trepadeiras de várias cor e feitio, vasos às janelas altas. O viajante não duvida que a maioria dos visitantes goste, e não diz que tenham eles mau gosto: limita-se a dar a opinião, uma vez que a viagem é sua”.

Realizado em Óbidos em outubro, o festival Folio tem hoje uma das principais programações literárias da Europa — e seguramente dos países de língua portuguesa. Em 2022, dois prêmios Nobel se apresentaram ali: a polonesa Olga Tokarczuk e o nigeriano Wole Soyinka — mas a gama de autores e autoras não se resume a estrelas. A necessária mistura entre consagrados e promessas, pop e erudito, jornalismo e universidade, literatura, pensamento e ciência faz a química do festival, sem que nenhum deles prevaleça, exceto a literatura. Frequentado por escritores, editores e curadores brasileiros desde as primeiras edições, o Folio teve em 2023 a sua primeira edição sem a presença de seu criador e dínamo, o livreiro José Pinho, morto meses antes desta oitava edição, cujo tema foi Riscos.

Criador da inesquecível livraria Ler Devagar, na LX Factory, em Lisboa, Pinho lançou o festival em 2015, e já saiu dizendo nos jornais, sem a menor cerimônia, que o Folio seria melhor que sua inspiração confessa, a festa de Paraty. Curador da Flip na época, não nego que me espantei com aquela arrogância tão arriscada.

Os olhos azuis e faiscantes do livreiro tinham a insanidade dos que não vão desistir. Ele olhou para as muralhas de Óbidos como fazia com os casarões e fábricas abandonados que já abrigaram as diferentes sedes da Ler Devagar em Lisboa: espaços prontos para serem preenchidos com livros. Óbidos não estava abandonada, mas por que não rechear suas muralhas com livros, escritores e leitores?

Pinho e sua equipe espalharam onze livrarias num espaço onde não vivem mais que 80 pessoas

Pinho e sua equipe espalharam onze livrarias num espaço onde não vivem mais que oitenta pessoas — igrejas desativadas, mercearias em pleno funcionamento, tendas, casas vazias e lojinhas de todo tipo passaram a abrigar livrarias, efêmeras ou não, durante os dez dias do Folio. Nelas acontecem lançamentos, debates, tertúlias, exposições, performances.

O professor de engenharia eletrotécnica na Universidade Nova de Lisboa e pesquisador de inteligência artificial Pedro Sousa assina o Folio Autores — a programação principal — das quatro últimas edições do festival, tendo dividido as duas primeiras com a jornalista Ana Sousa Dias. Programações paralelas ocupam as casas históricas de Óbidos, e uma tenda montada na diminuta praça da Matriz sedia o programa principal.

Todo ano, reúnem-se ali os grandes autores do país e também um bom punhado de autores, editores e jornalistas brasileiros. “A boa literatura escrita em português tem de incluir autores brasileiros”, diz Pedro Sousa. “E tenho contado com nomes incontornáveis da literatura brasileira.” A novidade, em 2023, foram os leitores — mais numerosos que nas edições anteriores. Segundo Sousa, em algumas sessões havia mais público brasileiro que português. “E entre eles havia quem tivesse viajado para estar presente no Folio”.

Um termômetro do sucesso de um festival é a presença, no palco e na plateia, do riso e da ironia — ingredientes que andam escassos na vida literária contemporânea. O riso, afinal, só ocorre diante do imprevisível. No Folio 2023 o riso ora vinha como esgar nervoso, ora como gargalhada, ora como sorriso fino de ironia. Rimos de nervoso ao ouvir o italiano Antonio Scurati, autor de um romance de não ficção sobre Mussolini, e o historiador e deputado lisboeta Rui Tavares conversarem sobre a ascensão do neofascismo na Europa. A argentina Mariana Enríquez levou seu sarcasmo portenho para o debate com Carla Madeira. O ensaísta britânico Terry Eagleton, figuraça, também puxou boas risadas em sua memorável entrevista ao crítico e poeta Pedro Mexia, não só ao comentar as contradições do neoliberalismo, o poder crítico do humor e as virtudes do pensamento dialético, mas também ao confessar com orgulho que “nunca estive naquilo que vocês chamam de on-line”. O curador confirma que negociou o convite em lacônicos SMS.

Bons Malandros

Gregorio Duvivier e seu pai, Edgar, se apresentaram pela primeira vez juntos em Óbidos, em outubro, para atender a um convite feito por Pinho, num show cômico e comovente sobre a relação entre pai e filho. Edgar tocou sax, e Greg cantou canções sobre a relação entre pai e filho, declamou sonetos e contou piadas. O público, sentado no gramado, dava ao evento ares de festival de rock, ainda que a vida boêmia local se restrinja praticamente a um único lugar, o bar semiclandestino Aos Bons Malandros, nos fundos de um armazém. Ali os autores, mediadores, editores, jornalistas e apenas alguns leitores mais antenados se juntam secretamente para beber a ginjinha — a bebida local, que está para Óbidos assim como a cachaça para Paraty — que os anfitriões, os advogados Luís Felipe e Zélia, distribuem com um sorriso pregado no rosto.

Vale conferir a incomum biblioteca de clássicos eróticos e estudos sobre sexo em edições dos anos 70, que vai dos consagrados à mais baixa subliteratura, sempre com capas que exploram os limites do kitsch. Vinho, sopa, salames — nada disso está no cardápio nem é cobrado, mas nunca falta na mesa. E ao final o viajante boêmio deixa uma contribuição espontânea para o casal. Em 2022, a equipe da fantástica editora independente Abysmo chorou ali a morte precoce de seu fundador, João Paulo Cotrim, ao som de David Bowie e Lou Reed.

A ginjinha está para Óbidos assim como a cachaça para Paraty 

Ney Matogrosso foi outra estrela no Folio 2023, juntando a multidão debaixo de uma chuvarada. O baiano Mateus Aleluia também arrepiou o público nas sessões de lançamento de seu livro pela editora brasileira Azougue — uma delas ao violão, em entrevista ao autor angolano Ondjaki, colunista da Quatro Cinco Um. Em todos os palcos, via-se o perfil de José Pinho desenhado em tinta branca. O tema da edição de 2024, que vai acontecer de 10 a 20 de outubro, é uma das características fortes do idealizador do festival: Inquietação.

(Murilo Mendes escreveu um poema em prosa sobre Óbidos, de menos de uma página, que capta a sensação do viajante que entra pelo portão principal da muralha do castelo e vai caminhando pela rua Direita: “A primeira vez que entro neste recinto saúdo os passantes, por terem nascido ou por viverem na brancura exemplar do seu território de onde a poeira parece abolida”. A atmosfera acolhe o poeta “por meio de colchas e tapetes, restos de apurado antigo artesanato; e ainda uma dinastia de gerânios sucessivos”. Nem tudo são flores, no entanto. Logo em seguida um humor repentino, tipicamente muriliano, de uma religiosidade toda particular, registra a cena escatológica: “um pássaro circungira o relógio factício de uma igreja, expedindo dejetos”. É sublime esse cocô de passarinho — mas, lançado sobre o relógio, prenunciaria o fim dos tempos? Dejetos talvez atômicos, como sugere o poeta em outro trecho, escrito sob a “paz agônica” de Óbidos, “o ponto postrimeiro [último] para o lançamento de uma bomba, cruz-credo”.)

Anfitriões

É possível ir a Óbidos por um dia e dormir em Lisboa, mas vale a pena passar um fim de semana em uma das pousadas no interior da muralha, como a Torre de Maneys, restos de um pedaço do castelo que nos anos 1960 foi a casa de veraneio da família da arquiteta Maria Manuel (de onde vem “Maneys”) e que hoje funciona como hospedagem, administrada com o seu companheiro, o também arquiteto Fernando Bagulho. Os dois estão entre os melhores anfitriões do pedaço, e nos dias do Folio promovem saraus de poesia no magnífico salão de refeições medieval da casa. 

Saramago torceu o nariz para as flores de Óbidos, mas encantou-se pelo Museu Municipal, que tem imagens religiosas e objetos ligados à história da cidade. Quase em frente ao museu, funciona a Casa José Saramago, a biblioteca local, onde há um pequeno tesouro arqueológico: um silo medieval para estocar grãos, hoje restaurado e que pode ser observado através de um vidro de segurança.

Ao final, a conclusão parece óbvia: José Saramago, Murilo Mendes e o turista literário brasileiro vêm, provavelmente, do mesmo planeta.

Em Alcobaça, o século 13 encontra o século 21

O mergulho mais profundo na história fica não longe de Óbidos: o esplêndido Mosteiro de Alcobaça, que por séculos abrigou os monges cistercienses e em 2022 foi convertido por Eduardo Souto de Moura em hotel cinco estrelas — mas de um tipo absolutamente único. 

Nas mãos do arquiteto premiado, a ostentação habitual da hotelaria deu lugar a um luxo monástico: dorme-se nas celas dos monges, minimamente adaptadas — e com total respeito ao patrimônio histórico. As paredes não têm quadros nem revestimentos decorativos, os banheiros são grandes caixas montadas nos apartamentos, e a luz não vem de lustres pendentes do teto ou arandelas, mas de discretas fitas de led e luminárias de pé: foi evitada qualquer intervenção na estrutura. Se um dia o edifício tiver de ser devolvido, será possível apenas retirar o que foi levado para montar o hotel. Só lembramos que estamos no século 21 pela mobília, também assinada por Souto de Moura. 

A belíssima piscina fica num salão repleto de arcos, um deles mergulhado em suas águas. Abaixo de onde a sauna foi instalada, foi encontrado durante as obras um forno medieval de curar sinos. Os arqueólogos desenterraram os vestígios, documentaram e os enterraram de volta, pela precariedade do estado em que se encontravam. 

Inês e Pedro

O complexo possui estátuas, painéis, imagens religiosas e túmulos. Lá estão as magníficas sepulturas de D. Pedro e D. Inês de Castro, verdadeiros gibis esculpidos em mármore, que narram episódios da vida do casal: a paixão avassaladora, o dia a dia com os filhos, o assassinato da rainha e o reencontro na eternidade. Saramago se derrete pelas arcas tumulares e lamenta não poder vê-las do alto.

Azulejos narram a história da “erecção” (como escreviam os antigos historiadores) do Mosteiro, a partir de 1178. Bernardo de Claraval, fundador da ordem de Cister, recebeu o terreno no contexto do processo de reconhecimento do Estado luso. Impressiona a cozinha e seu tanque de peixes, hoje seco, onde corriam os rios Alcoa e Baça, que deram nome ao lugar. Saramago não resistiu e enfiou a cabeça, assim como fez este humilde cronista, embaixo da monumental chaminé, e olhou para o céu azul a mais de vinte metros de altura.

O que o turista deve ver

Em Lisboa 
A Casa de Fernando Pessoa reabriu em 2020 depois de reformas. Ali perto, no Cemitério dos Prazeres, jaz o túmulo de Murilo Mendes.

Livrarias: A Ler Devagar voltou às origens com um novo espaço no Bairro Alto. Ali do lado está a brasileiríssima Travessa Lisboa, eleita a melhor loja da cidade pela revista Time Out. A Palavra de Viajante, em São Bento, só vende literatura de viagem. Na Estrela, a Poesia Incompleta, que já teve sede no Rio, é uma das mais completas livrarias de poesia do mundo.

Em Peniche
A antiga vila de pescadores hoje é um moderno complexo de pescados congelados, mas na Tasca do Joel, onde frutos do mar são escolhidos num balcão de peixaria, ainda se encontra o peixe fresquíssimo que Murilo Mendes comeu por lá.

Em Caldas da Rainha
A cidade fez fama com a cerâmica: ali trabalhou o genial Rafael Bordalo Pinheiro. Sua oficina abriga uma loja e um museu dedicado a sua obra. Tradição local, grandes caralhos de louça e pequeninos de marzipan estão à venda em lojas de suvenires e confeitarias.

Nas bancas de jornal
Os quiosques portugueses ainda estão bem fornidos de boas publicações, ao contrário dos nossos, e oferecem ao turista leitor revistas literárias (ler, Jornal de Letras, Eléctrica), o suplemento Ípsilon do jornal Público e o saboroso O Verdadeiro Almanaque Borda d’Água, “Reportório útil a toda a gente”, “Contendo todos os dados astronómicos e religiosos e muitas indicações úteis de interesse geral”.

Na estrada 
Sintonize a FM 92,0 e entregue-se aos fados de ontem e de hoje na Rádio Amália.

Em Coimbra
O magnífico Museu Machado Castro nos transporta aos tempos dos romanos em Portugal,
num programa imperdível.

A recém-inaugurada Casa da Cidadania da Língua promete uma programação dedicada à literatura em língua portuguesa.

Em Sintra
Apinhada de castelos e quintas — alguns extravagantes, como a Quinta da Regaleira e o Palácio da Pena —, Sintra é uma viagem ao romantismo. Em 2023 os parques locais receberam pela 11ª vez o prêmio de melhor conservação do mundo.

Nota
O jornalista viajou a convite do Turismo de Portugal e da TAP.

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.