Repertório 451 MHz,
Escrever para contar
A escritora Tatiana Salem Levy e a documentarista Paula Sacchetta falam sobre os segredos contidos em diários e o silêncio da vida íntima das mulheres
28jun2024Ouça mais Episódios
Está no ar o 451 MHz, o podcast da revista dos livros. Neste 114º episódio, a escritora Tatiana Salem Levy e a documentarista Paula Sacchetta conversam sobre Melhor não contar (Todavia), novo romance no qual Salem Levy revela um assédio na infância e trata de histórias familiares resgatadas de diários, cartas e memórias. As duas, que também estarão n’A Feira do Livro, falam ainda sobre autoras que escrevem sobre si e os não ditos da vida das mulheres. O episódio foi realizado com apoio da Lei de Incentivo à Cultura.
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Tatiana Salem Levy é escritora e ensaísta. Ela é autora de Vista chinesa (Todavia, 2021) e de A chave de casa (Record, 2017) e acaba de publicar Melhor não contar pela Todavia. O romance é composto por relatos pessoais da autora, páginas dos diários de sua mãe e histórias emprestadas da escritora Virginia Woolf. Em uma reflexão sobre o silêncio da vida íntima das mulheres, a autora conta tudo aquilo que ela foi ensinada a não contar.
Colaboradora da Quatro Cinco Um, Paula Sacchetta é documentarista. Ela dirigiu o filme Precisamos falar do assédio, lançado em 2016 no Festival de Brasília, e resenhou Melhor não contar para a edição de julho da revista dos livros, na qual já escreveu antes sobre cinema.
As duas falam sobre relações parentais, inspirações literárias e os segredos que estão contidos em diários.
Um caderno com cadeado
Há coisas que só se contam para o diário. É o que explica a narradora de Melhor não contar. “Eu sou uma eterna fracassada como escritora de diários, nunca na vida consegui manter um”, diz Tatiana Salem Levy.
Durante a adolescência, a autora conta que recebeu os diários de sua mãe, que os deu à filha na intenção de ajudá-la a escrever os próprios. Depois da morte dela, Salem Levy perdeu os cadernos. Mesmo sem eles, havia decidido escrever sobre as anotações da mãe, um livro sobre os diários em falta.
Durante uma mudança, no entanto, os diários foram encontrados pela irmã da escritora. “Quando li aqueles diários, tive a sensação de que eles foram escritos por mim”, conta.
Para além de um interesse pessoal, Salem Levy acredita ser inconcebível pensar a escrita feita por mulheres sem a influência desse tipo de caderno íntimo. “Mulheres passam a vida recebendo diário como presente de aniversário ou Natal. Aprendemos a escrever em segredo, em um ser inanimado com um cadeado.”
Ao comentar sobre a diferença entre as narrativas masculinas e femininas, a escritora cita o ensaio de Ursula K. Le Guin A ficção como cesta (2022, inédito no Brasil). No livro, a escritora estadunidense propõe uma teoria do romance como uma sacola, na qual se cabe tudo. Essa ideia inspirou a escrita de Melhor não contar, de acordo com Salem Levy.
Melhor contar
A primeira cena do livro é o relato do primeiro assédio que ela viveu. No dia 3 de dezembro de 1989, tomando sol à beira da piscina em uma casa de praia, seu padrasto desenhou seu corpo sem a parte de cima do bíquini, seus mamilos marcados com força, carregando na tinta. Ela tinha apenas dez anos. Após o evento, dúvidas surgiram: melhor contar para a mãe?
“O título tem uma ambiguidade, Melhor não contar, mas o que eu fiz foi contar”, diz. Para além do assédio, o romance também conta em detalhes um aborto que a autora fez em Portugal, país onde vive e onde o procedimento é legalizado.
Salem Levy e Sacchetta também comentam sobre o projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados e equipara o aborto praticado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio — e pode condenar a menina ou mulher que se submeter ao procedimento, mesmo que vítima de um estupro, a uma pena maior do que a do agressor.
“Eu nem chamo isso de retrocesso, é pior do que isso. Não sei se já estivemos em um buraco mais fundo do que esse”, diz Salem Levy.
Paula Sacchetta cita o documentário Incompatível com a vida (2023), dirigido por Eliza Capai. No longa, a partir do registro de sua gravidez, Capai mescla a sua história com a de outras mulheres, abordando as diferentes faces da interrupção da gravidez no Brasil.
Mulheres que escrevem
Em Melhor não contar, a escrita de outras mulheres atravessa a de Salem Levy. No livro, há ecos de Virginia Woolf, Elena Ferrante, Annie Ernaux e Clarice Lispector.
Durante o episódio, a escritora e Paula Sacchetta leram trechos de autoras que admiram e que tratam da escrita por mulheres.
Salem Levy leu um trecho de “Profissões para mulheres”, ensaio de Virginia Woolf presente em Profissões para mulheres e outros artigos feministas (L&PM, 2012), que a autora diz ter cogitado incluir como prefácio de seu livro.
“A mulher continua a ter de lutar com muitos fantasmas, muitos preconceitos. Na verdade, penso que ainda falta muito tempo para uma mulher se poder sentar para escrever um livro sem encontrar um fantasma que seja preciso ter que matar, uma rocha contra a qual investir”, diz Woolf na passagem.
Já Sacchetta escolheu um trecho do livro Riso da medusa (Bazar do Tempo, 2022), da francesa Hélène Cixous. “Eu falarei da escrita feminina, do que ela fará. É preciso que a mulher se escreva, que a mulher escreva sobre a mulher e que faça as mulheres virem à escrita, da qual elas foram afastadas tão violentamente.”
Ao comentar sobre a estrutura do livro, a documentarista afirma que a escrita de Salem Levy lembra uma ilha de edição de um filme. “O livro é a montagem de um mosaico ao misturar cartas, diários e exames de hospital em capítulos curtos.”
O desejo de ser lido
Melhor não contar também é, segundo a autora, um ensaio sobre escrever diários. Salem Levy aponta diferenças entre diários escritos por homens e por mulheres. Tradicionalmente, homens escrevem diários para serem publicados.
“Escritores, ex-presidentes da República e jornalistas já fizeram isso. Mulheres, não. Mulheres normalmente escrevem diários para si, para no máximo compartilhar com a mãe, com a filha ou uma amiga”, afirma.
De acordo com a escritora, porém, há uma vontade em comum em todos os diários: “Há sempre o desejo de ser lido, mesmo que por si ou pelos outros, de forma clandestina”.
Salem Levy acredita que o diário está à margem no campo literário, por ser considerado literatura menor. Para a autora, o romance autobiográfico é literatura tanto quanto a aventura do herói.
Mais na Quatro Cinco Um
Além do novo romance, Tatiana Salem Levy escreveu neste ano o prefácio da coletânea Novas cartas portuguesas, lançada pela Todavia. O texto foi publicado pela revista dos livros em fevereiro deste ano.
A escritora também já participou do 451 MHz em outra ocasião. No 43º episódio do podcast, ela e Paloma Franca Amorim, autora de O Oito (Alameda Editorial, 2021), discutiram as representações literárias da violência sexual, tema de outro romance de Salem Levy, Vista chinesa (Todavia, 2021).
Em 2018, Salem Levy resenhou os livros infantojuvenis É mesmo você? e Andar por aí, ambos lançados pela Editora 34.
No mesmo ano, a roteirista Antonia Pellegrino publicou na Quatro Cinco Um uma resenha da coletânea de crônicas O mundo não vai acabar, escrita por Salem Levy e publicada pela José Olympio em 2017.
Colaboradora da Quatro Cinco Um, além da resenha de Melhor não contar, Paula Sacchetta também publicou este ano uma resenha, em coautoria com Jonas Walks, sobre o documentário A memória infinita, de Maite Alberdi,o único concorrente ao Oscar 2024 feito por uma mulher latino-americana.
Além disso, a documentarista publicou na revista dos livros um artigo sobre a diferença entre filmar um documentário com e sem filtros nos centros de detenção do estado de São Paulo, em 2020.
O melhor da literatura LGBTQIA+
O episódio traz uma sugestão da quadrinista e ilustradora Helô D’Angelo. Ela é autora de Nos olhos de quem vê, publicado pela HarperCollins em 2022. D’Angelo indica a HQ Pigmento, de Aline Zouvi, publicada pela Quadrinhos na Cia em 2024.
“É a graphic novel de estreia da Aline Zouvi, que conta a história da tatuadora Clarice, que tem uma pele que não permite que ela se tatue, como se a tinta da tatuagem não pegasse. É um livro maravilhoso, a arte da Aline é suprema”, conta D’Angelo.
Confira a lista completa de indicações do podcast 451 MHz no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA +.
O 451 MHz é uma produção da Rádio Novelo e da Associação Quatro Cinco Um.
Apresentação: Paulo Werneck
Coordenação Geral: Évelin Argenta e Paula Scarpin
Produção: Mariana Shiraiwa e Mauricio Abbade
Edição: Luiza Silvestrini
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Finalização e mixagem: Pipoca Sound
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Coordenação digital: Bia Ribeiro
Para falar com a equipe: [email protected].
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