Narradores do Brasil, Repertório 451 MHz,

Na Amazônia com Mário de Andrade

Nos 80 anos da morte do escritor modernista, episódio especial do 451 MHz revisita sua viagem pela Amazônia e o diário de bordo que virou um clássico da literatura brasileira

21fev2025 • Atualizado em: 24fev2025

Está no ar o novo episódio narrativo do 451 MHz, o podcast dos livros. Na Amazônia com Mário de Andrade é o sétimo episódio da coleção Narradores do Brasil, que o 451 MHz inaugurou em 2021. 

Nos oitenta anos da morte do escritor modernista, completados em 25 de fevereiro, este especial em formato narrativo revisita sua viagem pelo norte do país, a escrita do diário de bordo que resultou no clássico O turista aprendiz e a influência de Mário e de seu texto, que atravessaram o tempo. Depois de quase um século fora de catálogo, o livro ganhou no ano passado uma nova edição, publicada pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um. 

Com bengala, máquina fotográfica e cadernos para anotações, Mário de Andrade embarcou em 1927 numa expedição rumo à Amazônia. Durante 69 dias, atravessou rios, cidades e vilarejos, registrando tudo em palavras e imagens. O calor sufocante, o deslumbre, o tédio, os mosquitos, o açaí, o pato no tucupi, a cultura popular, o desejo e os encontros e desencontros que marcaram a viagem estão relatados em O turista aprendiz.

Este episódio especial conta a história da expedição que inspirou o livro. No choque entre a contemplação das águas dos rios amazônicos e os excessos mundanos, Mário produziu uma renovação da linguagem, criando um diário de viagem que se tornou uma referência no gênero, uma obra-prima da literatura de viagem que até hoje inspira escritores, jornalistas, pesquisadores e meros turistas aprendizes a conhecer a Amazônia e a obra do escritor.

Com narração de Paulo Werneck, que assina o roteiro com Paula Sacchetta, o programa tem a participação especial da escritora Amara Moira, que lê trechos de O turista aprendiz; da tradutora e pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux, organizadora da nova edição de O turista aprendiz; do jornalista Jason Tércio, biógrafo de Mário de Andrade; do poeta, professor e pesquisador Paulo Nunes, especialista em literatura da Amazônia; do escritor Milton Hatoum, autor de grandes romances que se passam na região; e da crítica literária Eliane Robert Moraes, que analisa as nuances do desejo na escrita de Mário.

Também ouvimos a crítica literária argentina Beatriz Sarlo, que morreu em 2024 mas deixou gravadas algumas reflexões sobre a influência cultural de Mário de Andrade, comparando-o e distinguindo o intelectual paulistano de grandes escritores argentinos do período, como Jorge Luis Borges e Oliverio Girondo. O episódio ainda traz registros raros, incluindo a única gravação existente da voz de Mário de Andrade.

O convite

Em 1927, aos trinta e três anos e já reconhecido como um dos principais nomes do movimento modernista brasileiro, Mário de Andrade recebeu um convite inesperado: dona Olívia Guedes Penteado, uma mecenas que fazia parte da oligarquia do café, chamou o escritor para acompanhá-la em uma expedição pelos rios do norte do Brasil junto com um grupo seleto de outros intelectuais. Mário acabou sendo o único deles a embarcar, ao lado de dona Olívia e duas jovens — uma era sua sobrinha e a outra uma amiga, filha da pintora Tarsila do Amaral. 

O poeta não escondeu a frustração. “Se soubesse que era assim, não vinha, dona Olívia”, registrou no diário. Com uma bengala nova que tinha comprado e uma máquina fotográfica na mala, ele partiu na viagem que mudaria sua escrita e sua visão do Brasil.

“Ele diz, logo no começo, que ele descobre que todo mundo roeu a corda, que todos os outros homens ilustres que o acompanhariam pularam fora”, conta Flora Thomson-DeVeaux. “Então é bem menos do que ele esperava para essa grande viagem amazônica. Ele está ali quase de secretário da dona Olívia e de babá das duas meninas.”Mário, porém, foi equilibrando seu mau humor com uma ironia que acaba sendo divertida e, ao longo do caminho, se tornaria parte essencial da narrativa de O turista aprendiz. Ele escreve já nos primeiros dias da viagem: “Não fui feito pra viajar, bolas! Estou sorrindo, mas por dentro de mim vai um arrependimento assombrado, cor de incesto”, lamenta. “Entro na cabina, agora é tarde, já parti, nem posso me arrepender.”

Dinheiro emprestado

Mais do que a presença de outros intelectuais ilustres, o que convenceu Mário de Andrade a embarcar na expedição foi a sua curiosidade pelo Brasil desconhecido e a perspectiva de viver uma experiência importante para pensar o país — vale lembrar que ele já tinha manifestado grande interesse pela cultura popular, fazia pesquisas musicais e na época estava planejando uma viagem ao Nordeste. A possibilidade de conhecer a região amazônica alterou os planos.“Ir pra Amazônia naquela época era uma grande aventura. Claro, ia-se de barco e tudo, mas ninguém sabia o que poderia acontecer. E aí o Mário achou maravilhosa a ideia, tanto que ele pediu o dinheiro emprestado para o irmão dele para financiar a viagem”, conta Jason Tércio. O jornalista mergulhou por mais de dez anos na vida de Mário de Andrade para escrever Em busca da alma brasileira, biografia de quinhentas páginas publicada pela Estação Brasil em 2019.

Registrar o momento

Para registrar a aventura, além de cadernos e canetas, Mário também levou consigo uma Kodak Vest Pocket, máquina fotográfica portátil que ele chama de “Codaque”. Com ela, vai capturando o que chamava a atenção do seu olhar naquele Brasil desconhecido.

“O Mário tem um olhar muito apurado, ele faz uns recortes muito finos ali, às vezes ele fala assim, que a paisagem é tão vasta, que o único jeito de você comunicar o que ela é é aprisioná-la em pequenas molduras”, diz Flora Thomson-DeVeaux. “Então as fotos são isso, são uma tentativa de recortar toda essa imensidão, toda essa exuberância, até ela ficar inteligível.”

Mário de Andrade na praia do Chapéu Virado, em Belém, em maio 1927 [Fundo Mário de Andrade/Acervo IEB-USP/MA-F-0175]

As fotografias tiradas pelo escritor misturam curiosidade, humor e um desejo de documentar, ao mesmo tempo que preservam o mistério do lugar. O episódio discute a importância dessas imagens para a memória da Amazônia e como elas complementam o diário de bordo.

“É documental mesmo, ele está querendo mostrar como é o vilarejo, como é o barco. Tem uma função documental além das fotos que são mais experimentais, o que é muito importante para a gente conseguir vislumbrar essa Amazônia de um século atrás.”, complementa Flora.

Belém, um caso de amor

De todas as cidades que visitou, Mário confessou que nenhuma o encantou mais do que Belém. Chegar à capital paraense foi mais do que uma parada agradável para o aprendiz de turista — foi um encontro apaixonado. 

Em uma carta para o poeta Manuel Bandeira, seu amigo fraternal, Mário afirma: “Belém eu desejo com dor, desejo como se deseja sexualmente, palavra. Eu não tenho medo de parecer anormal pra você, por isso eu te conto esta confissão esquisita, mas verdadeira, que faço de vida sexual e vida em Belém”. Ele concluiu: “quero Belém como se quer um amor. É inconcebível o amor que Belém despertou em mim”.

Os dias no mercado Ver-o-Peso, provando frutas para ele exóticas e outras iguarias amazônicas, redefiniram sua percepção do Brasil. “O que me chamou atenção mesmo, demais, na visita que ele faz a Belém, é quando ele vai ao Ver-o-peso Ele busca tomar mingau de milho, também reconhecido como munguzá”, ressalta Paulo Nunes ao comentar essa descoberta. “Veja só que coisa extraordinária essa forma de deslocamento, essa disposição de deslocamento e inserção na cultura”, comenta.

Curiosidade e desejo

Durante a viagem, Mário não explora apenas a gastronomia local e a exuberância dos rios e da floresta. A curiosidade que aparece na descrição literária do gosto do açaí se expande e não encontra limites, refletindo-se em trechos em que deixa transparecer sua libido, seu desejo.

“Mário tinha uma curiosidade infinita por tudo que existe no mundo”, afirma Eliane Robert Moraes. “Ele tinha um interesse muito grande, muito particular, pela erótica literária, então isso aparece tanto na sua produção literária, como aparece também nas compilações que ele faz, nas suas leituras, em tudo que ele lê.”

O autor, que se dizia pansexual, escreve em seu diário: “Canto ao luar, desabaladamente em puro êxtase descontrolado, com a melhor voz que jamais fiz na minha vida, voz sem trato, mas com aquela natureza mesmo, boa, quente, cheia, selvagem mas sem segunda intenção, generosa. O que eu sinto dentro de mim! Nem eu sei! Não poderia saber, nem que pudesse me analisar, estou estourando de luar, tenho este luar como nunca vi, me… em mim, nos olhos, na boca, no sexo, nas mãos indiscretas. Indiscretas de luar, nada mais. Sou luar!”.

“Quando ele se intitula pansexual, ele não está de jeito nenhum falando só da sua sexualidade, da sua experiência sexual”, diz Eliane. ”A sua experiência no mundo é muito atenta a essa questão erótica. Ele é um daqueles autores, e não são todos, que erotiza toda a sua experiência”, analisa a crítica literária, organizadora da coletânea Seleta erótica de Mário de Andrade (Ubu, 2022).

Devastação

O episódio traz ainda uma reflexão sobre a questão ambiental. A Amazônia que Mário de Andrade visitou não é mais a mesma, convivendo hoje com garimpeiros e madeireiros ilegais, grileiros e outros invasores. Para Milton Hatoum, o escritor modernista pode ser considerado um visionário por causa de “um certo sentimento”, ”uma certa melancolia” em relação à exuberância da natureza que atravessa O turista aprendiz

“Ele antecipou muitas coisas”, diz Hatoum. “Naquela época já havia questões. Basta lembrar que, poucos anos depois, houve a tentativa de Fordlândia lá em Belterra, no Pará. E houve também ali a maior devastação, uma loucura também do capitalismo, que tentou implantar seringueiras lá perto de Santarém.”

Segundo o autor de romances como Relato de um certo Oriente (1989), Dois irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008), que se passam na Amazônia e serviram de porta de entrada para muitos leitores conhecerem sua cultura, Mário de Andrade se depara com a grandeza da natureza na região e, de certa forma, sente uma impotência. Hatoum a associa à famosa frase de Euclides da Cunha segundo a qual “a Amazônia é um infinito que deve ser dosado, pouco a pouco, lentamente”. 

“Mário foi um dos grandes intelectuais desse país, um dos grandes, um dos mais apaixonados escritores pelo seu país”, define Hatoum. 

Vozes

A tradutora e pesquisadora Flora Thompson-DeVeaux [Paula Scarpin]

Flora Thomson-DeVeaux
Tradutora e pesquisadora norte-americana radicada no Brasil, traduziu para o inglês, entre outros títulos, Memórias póstumas de Brás Cubas (The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, Penguin Classics, 2020)  — elogiado trabalho sobre o qual já falou no 451 MHz. Também organizou a nova edição de O turista aprendiz, de Mário de Andrade (Tinta-da-China Brasil, 2024), que traduziu para o inglês com o título The Apprentice Tourist (Penguin Classics, 2023).

O jornalista Jason Tércio [Reprodução]

Jason Tércio
Jornalista, é autor da biografia Em busca da alma brasileira (Estação Brasil, 2019), em que narra os bastidores da viagem e o contexto histórico da expedição de Mário de Andrade à Amazônia.

Paulo Nunes
Poeta e pesquisador da literatura amazônica, é professor titular da Universidade da Amazônia e especialista no modernismo na literatura. Dedica-se ao estudo da literatura amazônica, com ênfase em autores à margem do cânone literário brasileiro.

A crítica literária Eliane Robert Moraes [Renato Parada]

Eliane Robert Moraes
Crítica literária e professora de literatura brasileira na FFLCH-USP, é uma das principais pesquisadoras brasileiras do erotismo na literatura. Organizou a coletânea Seleta erótica de Mário de Andrade (Ubu, 2022), sobre a presença do desejo na obra do autor.

Milton Hatoum
Escritor amazonense, é autor de grandes romances que tem a região amazônica como cenário, como Relato de um certo Oriente (1989), Dois irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008), todos publicados pela Companhia das Letras. Pela mesma editora, lançou A noite da espera (2017) e Pontos de fuga (2019), os dois primeiros volumes da trilogia ”O lugar mais sombrio”, sobre a trajetória de um grupo de amigos durante a Ditadura Militar.

A escritora Amara Moira [Juliana Meres Costa]

Amara Moira
Ativista feminista, escritora, trabalhadora sexual e travesti, é autora de E se eu fosse puta (Hoo Editora, 2016) e Neca: romance em bajubá (Companhia das Letras, 2024). É ainda coordenadora de educação e exposições do Museu da Diversidade de São Paulo.

Maureen Bisilliat
Fotógrafa inglesa, percorreu em 1985 parte do trajeto de Mário de Andrade na expedição amazônica que deu origem a O turista aprendiz, fotografando e filmando a região ao lado do fotógrafo Lúcio Kodato.

Beatriz Sarlo
Escritora, ensaísta e crítica literária argentina morta em dezembro de 2024, foi professora de literatura argentina na Universidade de Buenos Aires e uma das intelectuais mais influentes da América Latina. Em 2015, participou da abertura da Flip, onde traçou paralelos entre o modernismo brasileiro de 1922 e os escritores argentinos da mesma época.

Mais na Quatro Cinco Um

Para a edição #88 da revista dos livros, o colunista Fernando Luna conversou com Flora Thomson-DeVeaux sobre as múltiplas facetas reveladas por Mário de Andrade em seu diário de viagem pela Amazônia. Leia a entrevista na íntegra

No aniversário de cem anos da Semana de Arte Moderna de 1922, o lado fotógrafo de Mário foi lembrado pelo escritor e cineasta Carlos Adriano num artigo em que se pergunta por que os modernistas que se reuniram para celebrar a arte moderna brasileira ignoraram a fotografia e o cinema. Os mitos em torno da Semana foram objeto de uma conversa entre o historiador Rafael Cardoso e o crítico literário Eduardo Sterzi no 58º episódio do 451 MHz.

Autor de outros clássicos do modernismo brasileiro, como Macunaíma, Mário de Andrade já foi apontado como responsável por reforçar — no próprio Macunaíma, que ele escreveu antes de conhecer a região amazônica — o sentimento anti-indígena dos brasileiros que perdura até hoje. O escritor e músico Cristino Wapichana analisou a questão em artigo publicado pela Quatro Cinco Um e Milton Hatoum falou sobre a apropriação de narrativas indígenas no centésimo episódio do 451 MHz.

Além da expedição à Amazônia, outras viagens de Mário de Andrade tiveram impacto no autor. Em 2021, o escritor e crítico literário Silviano Santiago escreveu para a revista dos livros sobre seus deslocamentos por Minas Gerais e Rio de Janeiro.

CRÉDITOS

O 451 MHz é uma produção da Associação Quatro Cinco Um.

Roteiro: Paula Sacchetta e Paulo Werneck
Apresentação: Paulo Werneck
Produção: Brenda Melo e Mauricio Abbade
Edição: Cláudia Holanda
Mixagem: Ana Sucha
Entrevistados: Flora Thomson-DeVeaux, Paulo Nunes, Jason Tércio, Eliane Robert Moraes e Milton Hatoum

Leitura de trechos de O turista aprendiz, de Mário de Andrade: Amara Moira

Trechos de áudio: Beatriz Sarlo na Flip; depoimento de Maureen Bisilliat (2015, Instituto Moreira Sales); Toada de Exu (1938, Missão de Pesquisas Folclóricas no Nordeste); Grande Otelo em Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade; e Bom Dia Amazônia

Identidade visual: Quatro Cinco Um
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