O turista acidental

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O turista acidental

Flora Thomson-DeVeaux descreve as múltiplas facetas reveladas por Mário de Andrade em seu diário de viagem, a contragosto, pela Amazônia

05nov2024 • Atualizado em: 29nov2024 | Edição #88 dez
Mário de Andrade na Praia do Chapéu Virado em Belém, maio 1927 (Fundo Mário de Andrade/Acervo IEB-USP/MA-F-0175)

Menos que turista, Mário de Andrade é turista aprendiz. 

No clássico da literatura de viagem O céu que nos protege, o escritor e tradutor norte-americano Paul Bowles sugere uma hierarquia de viajantes: 

O turista geralmente corre de volta para casa depois de algumas semanas ou meses, o viajante, não pertencendo mais a um lugar do que a outro, move-se lentamente, ao longo de anos, de uma parte da terra para outra.

O turista Mário, mais que correr de volta para casa, preferia nunca ter saído de lá. Logo na primeiríssima entrada do diário de suas “viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega”, já se lamenta. “Não fui feito para viajar, bolas!”, resmunga no dia 7 de maio de 1927. “Estou sorrindo, mas por dentro de mim vai um arrependimento assombrado.”

Quem nunca?

Ele tinha 33 anos e alguma notoriedade quando partiu na expedição. Já era o Mário de Pauliceia desvairada, embora não o Mário de Macunaíma — concluído meses antes, mas que só seria publicado no ano seguinte. Todo aquele mato-virgem onde nasceu o herói sem nenhum caráter foi inventado antes dessa excursão de três meses pela floresta amazônica.

O plano original era embarcar com um grupo de intelectuais rumo ao Brasil selvagem, em busca de uma identidade nacional ou algo parecido. Coisa de Olívia Guedes Penteado, quatrocentona paulista, mecenas das artes modernas e rainha do café.

Dona Olívia tinha vocação para Tia Augusta. Havia arrastado Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Blaise Cendrars e o próprio Mário para ver de perto igrejas, esculturas e outras maravilhas do barroco mineiro. Dessa vez, como descobriria tarde demais, “toda a gente roera a corda!”.

Sincero e áspero como só um diário permite ser, Mário choraminga após o embarque afobado no porto do Rio de Janeiro, quando quase perde as malas: “Estamos apenas dona Olívia, e as duas moças (…). Si soubesse que era assim, não vinha”. Mas foi. Ainda bem.

As anotações da vida a bordo são como cartas que Mário, missivista-geral, escreve para si mesmo

As anotações da vida a bordo são como cartas que Mário, missivista-geral da República, escreve para si mesmo — a jornada renderia artigos na imprensa, mas o livro mesmo só seria publicado postumamente, em 1976.

Há momentos de naturalista (“Afinal numa arraiada o botão da vitória-régia arreganha os espinhos, se fende e a flor enorme principia branquejando a calma da lagoa”), de linguista (“Sintaxe: ‘É não… Moro não… Nasci não…’ Me deu uma canseira!”) e de humorista (“É indiscutível: eu gosto muito mais dos meus amigos quando eles estão longe de mim.”).

Há lances de sociólogo (“Tanto a natureza como a vida destes lugares foram feitas muito às pressas, com excesso de castro-alves”) e até de um Lévi-Strauss de araque (“Os índios Dó-Mi-Sol formavam uma espécie de matercracia comunista, com distribuição coletiva das ocupações, tendo por base a injustiça”).

E há, sobretudo, Mário sendo Mário, turistando como quem carrega uma bolsa da CVC a tiracolo. É quando faz como todo turista: fala mal de outros turistas (“Oh, quem não conhece esse estranho fenômeno das navegações, chamado Família Brasileira!”), prova comidas diferentes (“Será que gostei mesmo do açaí? Não é propriamente gostar, mas em Belém fica divertido tomar açaí”) e fica sem dinheiro no fim da viagem (“Faremos dívidas, pagáveis no Rio de Janeiro. Mas não me conformo com o vexame”).

Flora Thomson-DeVeaux em viagem pela Amazônia (Paula Scarpin/Divulgação)

O registro da viagem de Mário de Andrade andava esgotado no Brasil, e acaba de ganhar uma nova edição pela Tinta-da-China Brasil (selo editorial da Associação Quatro Cinco Um). Além de catorze fotos que Mário tirou com sua “codaque”, tão valiosas quanto suas palavras, e mapas para o leitor não se perder na maior bacia hidrográfica do planeta, a nova edição tem apresentação de Flora Thomson-DeVeaux. Depois de cinco anos traduzindo para o inglês The Apprentice Tourist (Penguin Classics), a tradutora e pesquisadora norte-americana organizou a edição brasileira. Em conversa com a revista dos livros, ela conta sobre essas aventuras.

Dizem que só se conhece de verdade uma pessoa ao viajar com ela. Qual sua impressão do Mário de Andrade depois de uma jornada de cinco anos com O turista aprendiz?
No livro, você vê o Mário humano, o Mário escritor e o Mário entre essas duas pontas. Tem muitas facetas dele ali. É muito pessoal, ele mesmo fica desconfortável. Uma hora parece mais um diário pessoal do que um diário de viagem, outra parece que ele escreve para se distrair dos incômodos, para sair um pouco da própria pele. Ele está fugindo da viagem, fugindo da paisagem, fugindo dele mesmo.

Ele era péssimo viajante.
Exato. Sempre me vejo no lugar dele, me identifico tanto. Apesar de ter vindo fazer a vida no Brasil, sou péssima viajando. Sou boa morando no Brasil. Mário bateu a porta de casa e já está arrependido. Tem uma verdade muito profunda aí, uma dor que muita gente sente, em maior ou menor grau, nesses momentos. Esse livro é um companheiro muito importante para Macunaíma.

Por quê?
Eu achava que Macunaíma tinha sido escrito depois da viagem: o escritor viaja, descobre a Amazônia e volta para escrever. Mas não, foi escrito antes. Mário tira tudo da cabeça dele e de textos etnográficos que leu. Só depois é que vai à Amazônia. É quase uma checagem.

Você fez uma parte dessa viagem.
Em 2018, antes de pensar em traduzir O turista aprendiz, fui de Santarém a Belém de barco. Coisa que só turista faz, porque é mais barato e rápido ir de avião. Quem pega o barco não é para ir a Belém ou Santarém, mas pros lugares no meio do caminho, que só são acessíveis de barco. Tava ali na rede, parava num vilarejo às duas da manhã, entrava um monte de gente, vendedor falando “queijo, queijo, queijo, queijo”.

A viagem ajudou a entender o livro?
No balanço do barco, você vai entrando numa outra temporalidade. O Mário fala dessa “sublime monotonia”. Realmente, parece que os relógios estão girando em falso. Fui tentando recuperar a sensação dessa temporalidade deslocada.

‘Tem trechos de um documentarista, de antropólogo fake. É uma colcha de retalhos.’

Comecei a traduzir durante a pandemia, tava presa no meu quarto, tentando espremer essas migalhas de memória, quando surgiu uma oportunidade de conhecer São Gabriel da Cachoeira. Fica no alto rio Negro, onde o Mário nem chegou a ir, mas é Amazônia.

Trabalhou no livro por lá?
Lembro de escrever o prefácio [da edição norte-americana] olhando o rio. No café da manhã tinha uma frutinha chamada pupunha. O Mário fala em “pupunha com melaço”. Pensei em palmito pupunha com melaço, uma combinação estranha, mas interessante. Aí pus ali algo como “heart of palm”. Por pouco não dei uma sudestinada… Algumas coisas realmente só estando lá.

Cabe muita coisa na categoria “literatura de viagem”: da Odisseia de Homero à carta de Pero Vaz de Caminha, da ficção à não ficção. Onde fica O turista aprendiz?
Com um pé em cada canoa, o tempo inteiro: entre um diário e uma fantasia. É um terreno irregular. Tem trechos em que apenas tenta registrar as falas das pessoas no navio, conversas entreouvidas no convés. Aí o Mário está documentarista. De repente, aparece uma persona de antropólogo fake, muito engraçada, que começa a inventar. Narra de um jeito muito empostado como foi muito interessante conhecer uma peculiar tribo, o vocabulário todo muda. É uma colcha de retalhos superinteressante.

Mário nunca esteve em Paris ou Buenos Aires. As duas únicas vezes que saiu do Brasil foram nessa viagem: uns poucos dias no Peru e na Bolívia, navegando pelos rios Solimões e Madeira. Ele era provinciano?
Provinciano em termos, porque olha o tamanho da província. Quantas províncias existem dentro dessa província? Diziam que para entender o mundo moderno era preciso ir a Paris. Ele se recusava. Viajou muito em textos, depois viajou muito pelo Brasil. Havia uma diversidade de culturas e experiências aqui, então não é necessariamente provincianismo.

A viagem rendeu duas narrativas paralelas, aproximadas nessa edição: o texto e as fotos que ele fez durante o percurso, catorze delas no livro.
É um ensaio fotográfico gigantesco, cerca de quinhentas imagens. Sem as fotos, o leitor ia querer rasgar o livro de tanta curiosidade. Ele está comunicando muita coisa com as fotos e as legendas. Tem as pessoas puxando o barco com a palheta quebrada, os retratos maravilhosos do próprio Mário… É um fotoensaísta que muita gente não conhece, com um diálogo muito bonito entre imagens e palavras.

No prefácio, você escreve que essa edição difere das outras. Por quê?
Nas edições anteriores, O turista aprendiz trazia tanto essa viagem para a Amazônia, que traduzi pro inglês, quanto a seguinte, para o Nordeste. O datiloscrito “O turista aprendiz” se referia originalmente à Amazônia. Mas como ele também usou esse título em alguns textos sobre o Nordeste, postumamente juntaram tudo num livro só. Mas são duas viagens muito diferentes. Na primeira, muita coisa deu errado, ele está muito mais desarmado, é só ele e a paisagem. No Nordeste, coletou músicas e observou tudo quanto era manifestação cultural, conseguiu fazer uma viagem etnográfica.

O que mais?
Existe o texto-base, que o Mário passou a limpo pouco antes de morrer. Tem muitos papéis soltos que claramente pertencem a O turista aprendiz. Alguns com indicações de onde entrar, outros não. Esses trechos eram inseridos no meio do diário, mas quebravam o fluxo da viagem. Então, deixei num apêndice o que não tinha data. É meio que uma coletânea de historinhas inventadas, funcionam melhor juntas no final.

Você cita Fernando Pessoa no prefácio: “As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”. Ninguém consegue sair de si, nem quando viaja?
Quando li isso, entendi um pouco o meu sofrimento em viagens. A gente troca tudo, mas não troca a cabeça. Ela insiste em nos perseguir. Pensei muito nisso enquanto traduzia O turista aprendiz. O livro não é uma janela para a Amazônia, é uma janela para o Mário na Amazônia. É sempre pouco da viagem, mas muito do que somos.

Nota do editor

A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros

Quem escreveu esse texto

Fernando Luna

Jornalista, é colunista da revista Gama.

Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024.

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