História,

Semana fora de quadro

Por que os modernistas que se reuniram há cem anos para celebrar a arte moderna brasileira ignoraram a fotografia e o cinema?

01fev2022 | Edição #54

Sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, há vários testemunhos orais e escritos: memórias de participantes e reconstituições de historiadores. Mas não há uma única fotografia — pois não foi feita nenhuma. Embora a fotografia já se estabelecera como forma de documentação visual e houvesse fotógrafos em São Paulo no início do século 20, os modernistas não se preocuparam em fazer um registro imagético de suas estripulias “futuristas” no Theatro Municipal.

Por mais de quarenta anos, considerou-se que o único registro da Semana de 22 era a famosa foto de um bando de bolinhas e janotas numa escadaria: entre eles, René Thiollier, Manuel Bandeira, Paulo Prado, Graça Aranha, Couto de Barros, Mário de Andrade, Rubens Borba de Moraes, Luís Aranha e Oswald de Andrade. Nos degraus de um suspense hitchcockiano, como um detetive erudito, Carlos Augusto Calil descobriu que a foto foi batida na escadaria de um hotel em 1924.

Em 2018, Calil demonstrou a natureza e o contexto da imagem no artigo “Paulo Prado no centro (da fotografia que não é) da Semana de Arte Moderna”, coligido em Semana de 22: olhares críticos (Edições Sesc-sp e Edusp). Incomodado com a ausência de participantes na foto — Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Ronald de Carvalho, Anita Malfatti e Guiomar Novais — e a presença improvável de Moraes e Bandeira, e determinada a escadaria como do Hotel Terminus (inaugurado em setembro de 1922), Calil concluiu que a foto registrava a homenagem a Prado (o verdadeiro “fautor” da Semana, segundo Mário de Andrade) no “almoço dos klaxistas”, grupo da revista Klaxon — Mensário de Arte Moderna, em 16 de janeiro.

O desinteresse ou desprezo dos modernistas pelo registro fotográfico da Semana seria tanto mais espantoso se lembrarmos que até o ataque a Canudos, em 1897, foi documentado pelo fotógrafo Augusto Flávio de Barros, que fez talvez a única foto de Antonio Conselheiro, morto. O Imperador Dom Pedro II apaixonou-se pela fotografia em 1840 e tornou-se um de seus súditos fiéis. Radicado em Campinas desde 1824, o francês Hercules Florence fez em 1833 uma imagem (Photografie) por meio de câmera escura, chapa de vidro e papel sensibilizado para impressão. Ele desconhecia as experiências de seus contemporâneos e conterrâneos Niépce e Daguerre, inventores da fotografia. Personalidades públicas não se privavam de fotos em acontecimentos significativos como inaugurações, e a vida nas ruas de São Paulo ganhou suas imagens pelas lentes de Vincenzo Pastore e Militão Augusto de Azevedo.

Os modernistas também não se preocuparam em filmar a Semana, apesar de o cinema estar consolidado no gosto popular, com os filmes de Chaplin, e estar sintonizado ao futurismo (Vida futurista, 1916, Arnaldo Ginna e Lucio Venna) e ao expressionismo (O gabinete do doutor Caligari, 1920, Robert Wiene). Os modernistas descuidaram de fotografar e filmar o evento e ignoraram a fotografia e o cinema como formas de arte dignas de figurar em meio às exposições de pintura, gravura e escultura, concertos musicais e leituras de poemas, romances e conferências.

Por que as duas manifestações emblemáticas da modernidade, que moldaram a imagem do século 20 com mediações técnicas, não se manifestaram na Semana de 22? Sua ausência propõe um mistério digno das aventuras de Pearl White, a heroína dos filmes seriados de suspense dos anos 10 e 20, cultuada por Mário de Andrade como Pérola White. Nesta história, as pistas ainda não foram interpretadas de modo consistente, e talvez nem possam ser.

Lambe-lambe

Segundo Calil, que dedicou estudos a Paulo Emílio Sales Gomes, Blaise Cendrars, Alexandre Eulalio e Mário de Andrade, àquela época não se popularizara ainda a fotografia estampada em jornais. O lambe-lambe estava a postos no cotidiano de praças e parques, mas o repórter fotográfico ainda era miragem na escala das locações de flagrantes da cidade.

O terreno baldio do cinema era o da cavação: produtores prospectavam encomendas, pagas por metro de filme produzido. Para Calil, na “improvisação da Semana” não ocorreu a ninguém a ideia de contratar tal propaganda. Haveria ainda uma questão logística: a filmagem no Municipal exigiria equipamentos de iluminação.

Calil contou que há uma única foto da época: Menotti del Picchia lendo um discurso. Mesmo com a ponderação de que pode ser da Semana, Calil aposta que é de uma confraternização no restaurante Trianon (situado onde hoje está o Masp), em 9 de janeiro de 1921: uma homenagem ao poeta, que lancava Máscaras (e um arremesso oficial do modernismo segundo Mário da Silva Brito).

Jornalista e pregoeiro do Partido Republicano Paulista (PRP), del Picchia escreveria os argumentos dos filmes Vício e beleza (drama de 1926 dirigido por Antonio Tibiriçá) e Acabaram-se os Otários (comédia musical de 1929 produzida pelo irmão Victor del Picchia e dirigida por Luiz de Barros). Em 1923, roteirizou seu romance Dente de ouro e produziu o drama homônimo dirigido por Paulo Trincheira. Menotti foi sócio do irmão e de Armando Pamplona na produtora Independência Omnia Filme, criada para fazer documentais para a Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil (Rio de Janeiro, de 7 de setembro de 1922 a 24 de julho de 1923), que incluiu uma seção de fitas nacionais e estimulou a produção cívica. Em maio de 1923, a Independência lançou em São Paulo seu primeiro cinejornal, Sol e sombra.

Aracy Amaral escreveu a principal obra sobre o tema, Artes plásticas na Semana de 22 (1976), onde aparece a foto de 1924 como se feita em 22. Ela explica que o noticiário da Semana se reduziu a notas de uma ou duas colunas: jornais eram só texto, e as fotos estavam em revistas de variedades como Fon-Fon!. Amaral cita, entre os profissionais da fotografia no começo do século passado, Vincenzo Pastore, que fazia fotos de aspectos e personagens de São Paulo nas revistas A Cigarra e A Vida Moderna. Em todos os depoimentos que fez sobre o modernismo, ela sempre encontrou, em casas de depoentes e museus, fotos de estúdio e reuniões, recitais, retratos com dedicatória. Porém, fotos “como as de um Man Ray” ela nunca viu.

Na década da Semana de 22, a fotografia ainda não era reconhecida como expressão artística, o que só ocorreria no Brasil em 1939

As vanguardas cinematográficas são especialidade de Ismail Xavier. Ao ser indagado sobre a ausência da fotografia na Semana de 22, ele acha que é até mais complicada do que a falta de cinema, pois havia no Brasil uma tradição forte de fotografia desde o século 19. Ele especula sobre “uma certa inibição” na admissão de artes novas no panteão das clássicas, como no caso da televisão após o cinema. Xavier distende o silêncio até exclamar, perplexo: “É impressionante. Como não passou pela cabeça de nossos modernistas chamarem um fotógrafo para documentar?”.

Descompasso

Na década da Semana, a fotografia não era ainda reconhecida como expressão artística, o que, segundo Calil, só ocorreria quando o estatuto de arte foi lavrado nas atas de fundação do Foto Cine Clube Bandeirante, em abril de 1939. Em “A décima musa: Mário de Andrade e o cinema” (texto que se encontra no livro Adivinhadores de água: pensando no cinema brasileiro), Eduardo Escorel aponta: “A ausência do cinema brasileiro na eclosão e nos desdobramentos iniciais do modernismo é um indício do descompasso que havia na época entre os filmes produzidos no Brasil e as demais formas de manifestação artística”.

O diretor de Lição de amor (1975) e montador de Macunaíma (1969, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade), baseados em Mário de Andrade, descreve o muro (estético e social) que separava o mundo dos modernistas (bancados pela oligarquia cafeeira e escandalizando a burguesia com suas inovações) e o dos imigrantes “carcamanos” que se aventuravam a fazer filmes com câmeras de manivela, estúdios improvisados e laboratórios precários. Nos badalados saraus de suas abastadas residências, nem Paulo Prado nem o senador e mecenas Freitas Valle (que morava na Villa Kyrial) parecem ter convidado fotógrafos ou cineastas.

Escorel projeta um exercício de especulação: quais filmes nacionais Mário poderia ter visto em 1917, o ano em que foi arrebatado pela Exposição de Pintura Moderna Anita Malfatti, que causou furor nada obsequioso em Monteiro Lobato, celebrizado como “Paranoia ou mistificação” (que está em As ideias de Jeca Tatu, de 1919). No ano da bolcheviquização do mundo, o Brasil fez fitas como Pátria brasileira (Guelfo Andaló), O grito do Ipiranga (Giorgio Lambertini), Herois brasileiros na Guerra do Paraguai (Giorgio Lambertini) e Tiradentes (Perassi Felice). Sinalizariam a provável ojeriza de Mário contra o cinema brasileiro, em razão do louvor patriótico e das adaptações melodramáticas de clássicos da literatura como os de Visconde de Taunay (Inocência, 1915, de Antonio Campos e Vittorio Capellaro), Joaquim Manoel de Macedo (A moreninha, 1915, de Antonio Leal), José de Alencar (O guarani, 1920, de Alberto Botelho) e Olavo Bilac (O caçador de esmeraldas, 1917, da Theda Filme).

Aracy lembrou da inauguração da Casa Modernista de Gregori Warchavchik como uma das poucas cenas em movimento do primeiro tempo do modernismo. O cinejornal Rossi Atualidades n. 212 (1930) flagrou Mário e Anita Malfatti na ocasião. Foi produzido por Gilberto Rossi, um dos pioneiros documentaristas-cavadores e fotógrafos de São Paulo, que teve estúdio fotográfico na Itália até 1911, quando veio para o Brasil. Atuou como fotógrafo em São Paulo e Jundiaí e fez fotomontagens narrativas e propagandas contemporâneas (sobre automóveis e câmeras).

Ela cita o caso extraordinário de um fotógrafo experimentador — Valério Vieira. Além de flagrar São Paulo, clicar fotos em estúdio e fazer fotopinturas e interferências na imagem, ele criou uma obra que teria encantado os modernistas: a fotomontagem Trinta Valérios (1901), sobreposição de trinta selfies em poses diferentes. Vieira ficaria bem na fita de uma provável representação fotográfica na Semana de 22 ao lado do carioca Militão Augusto de Azevedo, que, de 1864 a 1888, documentou São Paulo, onde dirigiu o estúdio Photographia Americana. Entre 1874 e 1887, Militão criou As três idades, narrativa ficcional sobre o amor através dos tempos, composta por seis lâminas fotográficas para lanterna mágica, dispositivo do pré-cinema.

Como contraponto ao estado pré-Semana, Amaral projeta contraexemplos posteriores. Inspirado em Berlim: sinfonia de uma grande cidade (1927, Walter Ruttmann), São Paulo, a sinfonia da metrópole (1929, Adalberto Kemeny e Rodolpho Rex Lustig) poderia se afinar ao gosto modernista. Para mim, essa sinfonia paulista feita pela dupla de imigrantes é uma espécie de filme de cavação de vanguarda, ao combinar arrojados experimentos ópticos com patéticos ímpetos patrióticos, um exemplo fílmico da tão propalada “modernização conservadora” nacional.

Como marcos históricos de nosso cinema no período, Amaral evocou Limite (1931, Mário Peixoto), e, em 1933, Ganga bruta (Humberto Mauro) e A voz do carnaval (Adhemar Gonzaga e H. Mauro). Gonzaga, que criaria uma pioneira visão industrial de cinema com o estúdio Cinédia, dirigiu Barro humano (1929), afinado aos ideais da revista Cinearte. Um dos pioneiros do filme autoral brasileiro, Mauro fez Tesouro perdido (1927) e Brasa dormida (1928). Escorel conta que, em 1930, Mauro declarava querer filmar Macunaíma do modernista Mário de Andrade e O rajá de Pendjab do parnasiano Coelho Neto.

Filmes nacionais

Mário costumava ir ao cinema, assíduo em salas como Bijou e Iris (próximas de sua casa no largo do Paissandu) e outras como República e Royal (cenários de Amar, verbo intransitivo). Na Crônica do cinema paulistano (1975), há o intrigante depoimento de Borba de Moraes a Maria Rita Galvão: “Mário assistia com o maior interesse aos filmes nacionais exibidos em São Paulo, e por isso era alvo de grandes caçoadas de seus amigos. Nenhum deles entendia que interesse se poderia encontrar nos ‘simplesmente abomináveis’ filmes nacionais”.

Indagado sobre obras da Semana com referências à fotografia e ao cinema, Calil projeta as aproximações para o período de Klaxon e os posteriores Oswald (Memórias sentimentais de João Miramar, 1924) e Mário (Amar, verbo intransitivo, 1927). O “Manifesto de Klaxon” (n. 1, 15 de maio de 1922), não assinado, mas de autoria de Mário, afirma o cinema como “a criação artística mais representativa da nossa época”.

Outras obras pré e pós Semana de 22 têm cinema: Serafim Ponte Grande (1933, Oswald de Andrade), Parque industrial (1933, Patrícia Galvão / Pagu), Pathé baby (1926, Alcântara Machado), Mademoiselle cinema (1923, Benjamin Costallat), Cinematógrafo (1909, João do Rio) e a série de crônicas Quotidianas Kodaks, publicadas no Jornal Moderno (Bahia, 1913) por Pedro Kilkerry.

Três poemas de Pauliceia desvairada (publicado meses após a Semana) citam o cinema: “A escalada”, “Domingo” e “Ode ao burguês”. Especula-se que esta foi recitada em 15 de fevereiro. Marcos Augusto Gonçalves esclarece, em 1922: a semana que não terminou (2012), que o dado incerto se deve à fiança de historiadores nessa hipótese, não lastreada pelo programa do evento nem por artigos de imprensa.

No “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia…, lê-se: 

Escrever arte moderna não significa jamais
para mim representar a vida atual no que tem
de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Se
estas palavras frequentam-me o livro não é porque pense com
elas escrever moderno, mas
porque sendo meu livro moderno, elas têm nele
sua razão de ser.

Consta que na segunda noite Oswald leu trechos do romance Os condenados (1922), cuja resenha de Couto de Barros (Klaxon n. 6, outubro de 1922) é citada por Xavier em seu estudo precursor sobre cinema e modernismo (Sétima arte: um culto moderno, 1978): “O livro inaugura em nosso meio técnica absolutamente nova e imprevista, cinematográfica. Ao leitor é deixado adivinhar o que o romancista não diz ou não devia dizer”.

Aquele trecho do “Prefácio…” é epígrafe de um capítulo de Sétima arte. Mário é incisivo na assunção de que ser moderno não é só estar atento à modernidade da vida urbana e da arte, mas também incorporar a atitude e as novas formas de vanguarda como constituintes do processo de trabalho e das obras. É no plano formal que reside o elogio dos modernistas — “o cinema é o lugar que tem um toque modernista não apenas pela sua simples tecnologia mas pela sua experiência cultural”, conclui Xavier.

‘Mário assistia com o maior interesse aos filmes nacionais exibidos em São Paulo, e por isso era alvo de grandes caçoadas de seus amigos’

Assim, do filme de suspense sobre a ausência do cinema e da fotografia na Semana de 22, passamos a um tom de suspensão e suspeição: o que levou os modernistas a desprezarem tal registro técnico-artístico do evento? Objetos de sedução eram escassos, dadas as condições da então incipiente produção no país.

Em 1922 foi produzido em São Paulo um documentário sobre um tema inédito no cinema nacional de então e que poderia ter atraído os modernistas, apesar de sua montagem não tão modernista, porém documentalmente eficiente. Encomendado à Independência Filme para aquela comemoração da independência no Rio de Janeiro, é um típico filme de cavação. A Sociedade Anônima Fábrica Votorantim (1922) é talvez a primeira filmagem em longa-metragem a mostrar o trabalho dos operários nas máquinas de uma fábrica, contou-me Xavier, autor do artigo “Progresso, disciplina fabril e descontração operária: retóricas do documentário brasileiro silencioso” (2009).

Em 1922 foi publicada a primeira crítica de cinema de Mário de Andrade (Klaxon n. 2, 15 de junho). Era sobre um filme brasileiro de ficção: Do Rio a São Paulo para casar (1921), produzido pela Rossi Filme e dirigido por José Medina. Cópias e negativos não sobreviveram. Mário publicou dezenove artigos sobre a “Musa Cinemática”, de 1922 a 1943, em revistas como Klaxon, Clima, Espírito Novo e América Brasileira e em jornais como Diário Nacional, Diário de S. Paulo, Diários Associados e Folha da Manhã, sob seu nome e pseudônimos como R. de M., G. de N., J. M., A. e Ínterim. Fez resenhas de filmes (Chaplin, Buster Keaton, Murnau, Pabst, Stroheim, Walt Disney), artigos sobre motivos (monstros, filme sincronizado) e pensatas sobre o cinema como arte, sistema e fenômeno da sociedade. Foi implacável: “A cinematografia é uma arte que possui muito poucas obras de arte” (Klaxon, outubro de 1922).

Mário de Andrade nunca viu ‘Limite’, exibido no Rio em 1931, mas resenhou ‘Mundéu’, o primeiro livro de poemas de Mário Peixoto, publicado em 1931

Em sua primeira crítica, Mário saudou a iniciativa nativa, elogiando a produtora, mas ignorando o diretor do filme. Constatou: “A Empresa Rossi apresenta uma tentativa de comédia. Aplausos. Transplantar a arte norte-americana para o Brasil! Grande benefício. Os costumes atuais do nosso país conservar-se-iam assim em documentos mais verdadeiros e completos que todas as ‘coisas-da-cidade’ dos cronistas”.

Não perdoou o cacoete de certas cenas: “Acender fósforos no sapato não é brasileiro”. A conclusão é típica da ideologia nacionalista modernista: “É preciso compreender os norte-americanos e não macaqueá-los. Aproveitar deles o que têm de bom sob o ponto de vista técnico e não sob o ponto de vista dos costumes”. Estimulou o prosseguimento e o conseguimento da aventura: “É preciso continuar. O apuro seria preconceito esterilizante no início de uma empreitada tão difícil como a que a Rossi Film se propõe. Aplauso muito sincero”. E terminou sob augúrio de happy ending: “Seguiremos com entusiasmo os progressos da cinematografia paulista”.

Mas a promessa não se cumpriu: Mário nunca mais escreveu sobre cinema brasileiro. Para Xavier, se ele escreveu sobre filmes importados que eram convencionais, não foi o fato de filmes brasileiros serem convencionais que o impediu de escrever. “Seja porque viu os filmes brasileiros e não escreveu (porque não gostou), é significativo. Seja porque não viu também é significativo, porque não estaria interessado. Qualquer que seja o motivo, essa inexistência é significativa. Com sua militância pela cultura brasileira em geral, isto não se deu no caso do cinema. Talvez a melhor maneira de se referir a isso seja: é surpreendente”.

Outro ponto cego no desconcerto lacunar foi apontado por Escorel. Em 1923, Francisco de Almeida Fleming filmava Paulo e Virgínia, adaptado do mesmo romance (Paul et Virginie, 1788, Bernardin de Saint-Pierre) em que Mário baseava seu primeiro romance, tido como “cinematográfico”, Amar, verbo intransitivo. Ao mesmo tempo em que Mário escrevia, no laboratório do irmão do amigo Menotti Fleming revelava os negativos, montava o filme e fazia a primeira cópia de projeção. Nem assim Mário fez outro contato com o filme brasileiro.

Um ano após a publicação de Amar, Almir Castro, Cláudio Mello, Octávio de Faria e Plínio Sussekind Rocha fundavam o Chaplin Club (1928-1931), altar do culto ao cinema em status de arte no Brasil. A sessão de Limite no cine Capitólio (Rio de Janeiro, 1931) foi organizada pelo cineclube, que via no filme a representação pura de seus ideais. 

Retardatário-temporão à Semana de 22, o prodigioso e singular Limite foi o único filme realizado por Peixoto e o único do período silencioso que poderia plenamente conjugar da hóstia das hostes modernistas, pelo caráter experimental da linguagem e pelo teor local dos motivos (avantgarde made in Mangaratiba). Mário nunca viu Limite. Mas resenhou Mundéu, o primeiro livro de poemas de Peixoto, publicado em 1931, sem poupar pompas: “É a melhor revelação de poesia que tivemos esse ano”; “o movimento plástico das noções e das imagens é incomparável dentro da nossa poesia contemporânea” (Revista Nova, dezembro de 1931).

O maior especialista no autor de Limite, seu melhor amigo e confidente, foi Saulo Pereira de Mello, curador do Arquivo Mário Peixoto. Por ocasião das pesquisas de meu segundo pós-doutorado, Mello disse que Peixoto nunca comentou sobre a pessoa do poeta paulista nem sobre o impacto da resenha de Mundéu, e me garantiu que Mário de Andrade desconhecia a existência de Limite e jamais se referiu ao filme. Então perguntei sobre o depoimento transcrito em “Trechos de comentários sobre Limite quando da sua exibição no Rio de Janeiro em 1931”, no artigo de Octávio de Faria (A Pátria, maio de 1931). Ali “Mário de Andrade” dispara: “… esse filme todo inteiriço um jato de pura arte…”. Mello me contou a confissão de Peixoto: “Todas as citações foram inventadas, menos a de Sergei Eisenstein, que era verdadeira”. Mas esta, afinal, também revelou-se inventada.

Se a Semana tivesse ocorrido em Paris, René Clair a teria filmado, com as credenciais de seu ‘Entr’acte’, curta exibido no intervalo do balé ‘Relâche’

Descobri duas cartas (datadas de 31 de julho de 1938 e 29 de março de 1939) de Peixoto pedindo ao xará paulista a devolução do manuscrito de O sono sobre a areia. Este era o título original do que viria a ser o segundo longa do cineasta Onde a terra acaba, que acabou sendo abortado. Com Menotti, Guilherme de Almeida e Pedro de Oliveira Ribeiro Neto, Mário de Andrade integrava a comissão julgadora designada pela Academia Paulista de Letras para o concurso de roteiros da Companhia Americana de Filmes e no qual O sono sobre a areia foi inscrito. Peixoto costumava repetir para Mello: “Mário de Andrade concedeu-me o prêmio paulista”. Mas tal fato não ocorreu — o concurso foi cancelado em junho de 1938.

Mário fotógrafo

Em 1923, Mário assinava Der Querschnitt (O corte vertical), revista que propaga a Nova Objetividade de Man Ray, Alexander Rodchenko e László Moholy-Nagy, e na qual aprendia rudimentos e urdimentos de fotografia. Naquele ano, começa a fotografar. Inovador não reconhecido pela historiografia oficial da fotografia, talvez pela multidisciplinaridade macunaímica e até por uma noção de reservinha de mercadinho dos peritos.

Seis anos após a Semana de 22 e no ano da publicação de Ensaio sobre a música brasileira e de Macunaíma, Mário diagnostica: “Nossa música popular é um tesouro prodigioso, condenado à morte. A fotografia se impõe como remédio de salvação”. (Diário Nacional, fevereiro de 1928). Em “A escrava que não é Isaura” (escrito em abril de 1922 e publicado em 1924), radiografa: “O poeta não fotografa o subconsciente”.

   Como “turista aprendiz”, Mário fotografou extratos do real e se firmou como exímio fotógrafo, comprovado pelos mais de quinhentos instantâneos documentais apurados nas expedições etnográficas de 1927 (Amazônia, Norte e Nordeste; de maio a agosto) e 1928 e 1929 (Nordeste; de novembro a fevereiro). Logrou ainda fazer uma série de fotos que escapam do registro, com senso de composição e enigma, como as selfies de sombras em chão, parede e mar – Sombra minha (Santa Tereza do Alto, São Paulo, 1 de janeiro de 1928) e Que-dê o poeta?: Retrato da minha sombra trepada na tolda do Vitória (Rio Madeira, julho de 1927).

Afinado ao feitio de abrasileirar termos estrangeiros, Mário chamou sua câmera de Codaque e criou o termo “fotar”. Anotava os diafragmas com legendas irônicas e poéticas, como em Jardim zoológico / Museu Goeldi / Belém (21 de maio de 1927), foto de garças brancas com o subtítulo super-trocadilhesco: “La propreté c’est le vol” – troçando o famoso dito do socialista Proudhon, com os sentidos de “propriedade” (atributo inerente; objeto de que se é dono) e “vol” (roubo e voo).

Em sua primeira viagem etnográfica, a Codaque de Mário fotografou vestes brancas e íntimas num varal, esvoaçando, in(su)fladas pelo vento. A legenda aposta em aposto revelatório, situando a posição da luz e da lente (“Sol 1 diaf 1”) e datando “Fortaleza, 5 de julho de 1927”, com o título: Roupas freudianas. Fotografia refoulenta – refoulement. O poeta traduzia refoulement (“recalque”) por “sequestro”. A primeira ocorrência publicada do termo está no artigo sobre Alguma poesia, estreia de Carlos Drummond de Andrade (Revista Nova, 1931). A noção é elaborada no ensaio inacabado O sequestro da dona ausente (1936-1943), onde resume: “a ocultação da dor e da saudade e a insatisfação física. Sublimação disso na criação de imagens derivativas.” Glória ou miséria do mistério, a imagem refoulenta guarda mais do que um sequestro de seu estro, de seu rastro, de seu resto.

Logo após a Semana, um orgulhoso Mário confessa a Menotti que a consagração se deu pela celebridade. Se a Semana tivesse ocorrido no final do século 20, como projeto de leis de incentivo ou mecenato institucional, teria sido obrigatória a documentação fotográfica, até pela prestação de contas. Se tivesse ocorrido em Paris, René Clair a teria filmado, com as credenciais de seu Entr’acte (1924), curta de encomenda para ser exibido no intervalo do balé Relâche, de Francis Picabia e Erik Satie.

Façamos o recuo de uma década em relação à Semana para uma especulação alegórica. Mário teria visto Caça à raposa (1913, de Antonio Campos)? O curta trata da expedição oferecida pela mecenas modernista Olívia Guedes Penteado nos campos do Barro Branco, em plena planície urbana paulistana. Exibido em salas de cinema e nos lares das elites, o filmete é desejo de projeção na posteridade e demonstração exibicionista de “ritual de poder” e “berço esplêndido” (denominações de Paulo Emílio para temas documentais do período silencioso). Fotos da caçada foram publicadas em julho de 1913 na Careta.

Rebobinemos a fita para a frente. Um ano após a Semana, o poeta da pauliceia desairosa e da lira paulistana foi conhecer a farra de momo no Rio de Janeiro. Em carta de fevereiro de 1923, Mário explica a gênese de “Carnaval carioca” a Manuel Bandeira, a quem o poema é dedicado, em termos que valem por um manifesto e uma anamnese: “Tenho perdido tantas coisas no Carnaval, não perdi a máquina fotográfica, antes cinematográfica de meu subconsciente. Pois não é que ontem começaram a se revelar fotografias e fotografias dentro de mim! Pois não é que, no écran das folhas brancas, começou a se desenhar o filme moderníssimo dum poema!”.

Ao tentar entender os porquês da ausência da fotografia e do cinema na Semana de 22, somos confrontados com “sombras de uma dúvida”, onde sobram as ruínas de uma história, para júbilo e desespero de Walter Benjamin, que, em toda a sua obra analisou a natureza tecnológica da imagem na modernidade e por pouco não lecionou literatura alemã na  Universidade de São Paulo (USP) no ano de sua fundação, em 1934.

E algo para a gaiatice da Pérola White. Seu fã Mário de Andrade, em “A escrava que não é Isaura”, toma o cinema como elemento regenerador da “história moderna das artes” — “o Eureka! das artes puras”. Em termos de imagens fotocinematográficas, a tela da Semana de 22 nem se revelou nem desfolhou — fita hodierna de uma ausência, ficou em brancas nuvens.

Quem escreveu esse texto

Carlos Adriano

Doutor em cinema pela USP, escreveu Peter Kubelka: a essência do cinema (2002) e dirigiu o filme A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998).

Matéria publicada na edição impressa #54 em outubro de 2021.