Viagem à roda de meu quarto,
Depoimentos sobre a quarentena: outubro
Leitores enviam relatos sobre a experiência do isolamento
05out2020Gostaríamos de saber como você está enfrentando estes dias de isolamento. Envie o seu depoimento – a tribuna é livre e está aberta.
Queremos saber o que passa pela sua cabeça nestes dias, quais estratégias você inventou para enfrentar a ansiedade e o tédio, um trecho de uma coisa bonita que você leu ou ouviu, que comida preparou para quem está ao seu lado, ou para você mesmo.
Envie o seu depoimento para [email protected] e nós o publicaremos (trecho ou completo) nas próximas edições da nossa newsletter, no site ou nas redes sociais da Quatro Cinco Um
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Nós e os “clássicos”
[1] Aqui em casa, em algum momento da quarentena decidimos que só assistiríamos a filmes clássicos. Foi um acordo extraoficial, mas sempre respeitado, assim como nossa definição específica de “clássico”: filmões hollywoodianos dos anos cinquenta, com margem de erro de alguns anos para mais ou para menos. Nada de Bergman e seus casais precursores do isolamento social, nada de cinema francês (de que minha esposa tanto gosta), nada de cinema japonês (de que eu tanto gosto). Só “clássicos”.
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[2] Nossa TV é pequena para os padrões atuais, mas isso me conforta. A proporção tela-ambiente me faz lembrar a pequena TV de tubo do meu quarto de adolescente, onde vi bons filmes. Além disso, as tentativas de reproduzir a experiência do cinema em casa me deprimem. Por melhores que sejam, os quase cinemas domésticos estão para o cinema-cinema como a piscina de ondas artificiais está para o mar.
[3] 17 de outubro. Assistimos Um bonde chamado desejo (me recuso a chamar o filme de Elia Kazan de Uma rua chamada pecado). Logo no início, uma cena me desconforta. Vivian Leigh, interpretando a esnobe Blanche DuBois, anda com pressa pelas ruas abarrotadas de New Orleans. Por um momento, a fumaça dos carros a encobre. Quando volta a aparecer, ela pede informação a um homem: “Well, they told me to take a streetcar named Desire…”
A cena soa acintosa para o recluso sentado no sofá. A rua pulsa. Corpos se esbarram. Vivien Leigh mostra o rosto despudoradamente (será o rosto o novo decote?). Há um pequeno flerte entre ela e o homem que lhe dá informação, também sem máscara.
Mesmo na TV minúscula, Vivien Leigh parece mais real do que as cabeças falantes – em 480p e com delay – de familiares e amigos próximos. E até o preto e branco, que criaria um distanciamento entre imagem e realidade, faz o corpo de Blanche parecer mais palpável do que os corpos que vejo sob a luz hospitalar dos corredores do supermercado.
Mas a cena não me remete a um passado perdido. Pelo contrário. Assisto ao “clássico” dos anos cinquenta como se assistisse a um filme de ficção científica. A cidade que vejo da janela todos os dias parece uma pacata cidade interiorana em comparação com a enfumaçada New Orleans de setenta anos atrás. O rosto à mostra de Vivien Leigh aponta para o futuro; é um ato de rebeldia. O flerte desinteressado com o desconhecido, um gesto vanguardista.
O filme segue. O jovem Marlon Brando se debate dentro da TV pequena como um animal selvagem. O jovem Marlon Brando parece querer sair da TV. O jovem Marlon Brando parece querer sair da TV e entrar na nossa sala. Sem máscara.
Pego no sono no meio do filme. Amanhã, mais um clássico.
Caique Zen (São Bernardo do Campo, SP)
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Arrumando as gavetas
No bingo da quarentena, além de fazer pão e yoga em casa, dei check na arrumação de gavetas. E de caixas dentro das gavetas e de envelopes dentro das caixas dentro das gavetas, nessa espécie de ~matrioska existencial. Também não ficou de fora pensar e revisitar afetos, dos sólidos e definitivos, a esses novos, que a gente colhe do solo duvidoso do isolamento.
Então reencontrei uma carta recebida em 2001 de um amigo muito, muito querido que, para azar do mundo, não está mais por aqui. Ricardo, o Té, à época cursava medicina em Petrópolis e na missiva me contava da forma como a neblina da noite invadia seu quarto durante o outono. Dizia, também, de uma ida a praia que durou até o amanhecer ressacado do outro dia, com a cara na areia, o brilho do sol e a cabeça cheia de poesia com tudo aquilo.
Já tínhamos e-mail nessa época, claro, mas nos correspondíamos assim, numa tentativa de preservar a qualidade do nosso afeto. No envelope, embaixo do meu endereço, ele marcara “carta social”. A finalidade deste recurso, me explicou depois, era “proporcionar às pessoas de menor nível econômico o direito de corresponder-se com parentes e amigos em qualquer parte do país”, reforçando que, com isso, pagava-se apenas 0,01 centavo aos Correios, enquanto um selo poderia custar até 1 real. Mais uma de suas graças.
Relendo essa carta, imaginei a diferença que o Dr. Ricardo José Nicolau Nascimento, médico de família, estaria fazendo nesta pandemia, de quanta gente ele ajudaria a salvar. E refleti sobre como o conforto daquelas palavras e da nossa amizade me salvou da sensação de vazio daquele momento. De como certas coisas nos devolvem a nós mesmos e é só disso que precisamos para continuar.
O resto, como esse isolamento e todos os efêmeros, vai passar.
Fabiana Guedes (São Paulo, SP)
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Minha percepção foi aguçada
Desde o início desta era sem igual, percebi que um treino perceptivo.passou a incorporar as horas lentas do meu calendário durante estas centenas de dias.
Ao escrever meu primeiro poema após quarenta dias confinada, puramente para não sucumbir no desequilíbrio, minha percepção foi aguçada: meu olhar e o meu querer passaram a descobrir detalhes nunca antes experimentados.
Acostumei- me a notar o inicio e o fim dos dias com os sinos da igreja longínqua, do centro de São Paulo.
Aprendi a ouvir gatos invisíveis, e até vê-los, nos telhados cinza dos prédios e casebres abaixo dos 12 andares do minúsculo apartamento onde moro.
Numa nesga na ponta esquerda da janela, passei a aguardar o trem pontual, um risco vermelho raro cortando as veias da comunidade do Moinho.
Será que o embotamento do tempo nenhum das grandes cidades limitava até então minha relação com as coisas existentes, com o desejo, com o ser?.
A ansiedade de viver e viver, personificada no consumir e consumir, ler e ler, cumprir agendas, não perder uma boa peça de teatro, um sarau, mostras, filmes, celebrações, visitar religiosamente filhos e netas, escrever, e escrever, obliterava assim a escuta e a visão de mim e das cenas que ocupam agora meus silêncios?
Com a pandemia essa escuta se impôs obrigatória. No início, até me fazer mal. O auto confronto não é fácil.
Hoje, me sinto mais humana, e até menos exigente comigo mesma.
Passei a sentir prazer e calma com o desapego… ora, me apegar a que, a quem, quando sequer o dia seguinte é impensável? Doei muita coisa, roupas, livros e mais livros…
Por outro lado, tenho revisitado uns clássicos. Em Rimbaud, me identifiquei ao fato de ele necessitar se deslocar, buscar outras terras.
Imbuída e praticante dos hábitos de prevenção instalados, estruturei três roteiros, que cultivo intuitivamente, quando meu coração manda: portos seguros cheios de afetividade, em três cidades, onde estão filha e neta, noutro amigos ou só a natureza.
Tenho exercitado, entao, cada vez mais consciente, o desapego: manter o essencial e tento, apesar da idade, fazer minha vida caber num baú, e esse baú caber no meu carro, que é o mais barato da praça, para perambular nestes roteiros, sem necessariamente manter uma casa.
E, claro, com a rebelião interna que me move desde a adolescência por nao suportar a injustiça social, tornei -me doadora de uma grande associação mundial de voluntários, e carrego e entrego, sempre que saio, desde roupas a cestas básicas.
É importante registrar: sou (e já era) admiradora e divulgadora de ações desenvolvidas sobretudo por duas companhias de teatro com sede no centro.degradado de São Paulo que, diaria e incansavelmente, desde o início desta tragédia, recebem as populações vulneráveis que povoam a região e lhes distribuem refeições e kits de higiene, orientando milhares de pessoas. Essas companhias, por força da solidariedade, da empatia social e de sua ética, têm mantido vidas, têm protegido indivíduos e famílias e aglomerações abandonadas pelo Estado.
Sonho que isto possa e deva se manter. Que, por conta de uma pandemia como.esta, no futuro próximo, nenhum ser humano não sinta mais fome, frio e solidão. Utopia? Sim, essas populações são as mais atingidas, sempre, sabemos bem.
Porém, é o que tem me mantido um pouco mais sã e feliz.
Beth Brait Alvim (São Paulo, SP)
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Era um quarto muito… Transformers
Para escrever sobre a minha quarentena, eu preciso te contar sobre o meu quarto. A primeira coisa que vem à minha cabeça é Vinicius cantando a Casa engraçada. Mas no meu texto de sobrevivência à pandemia, o lar vira um único cômodo. E eu descobri que o meu é um Transformer.
Quando me quarentenei banhada em álcool gel e vestindo minha capa – digo, máscara – de heroína que combate um vírus e a própria ansiedade, minha vida se mudou para o meu quarto. Não era um jogo de amarelinha do Cortázar sobre resistir nos cômodos. Esta era mais uma escolha compulsória de quem a gente levaria para a Ecovila dos Novos Baianos de nós mesmos. Ainda que escolher com quem se trancar fosse liberado, era necessário manter um limite de individualidade.
O meu foi o quarto. Aliás, este espaço para mim sempre foi sagrado porque existe energia e escolhas nele. Fotos no quarto? Nunca havia feito. Convite para conhecer meu quarto? Para poucos. Trabalhar no quarto? Jamais. Ali era momento de conexão com o sutil e desmaio nos braços de Morfeu. Jamais atravessei este limite de descanso de mim mesma. Até agora.
Quando o apocalipse chegou ao mundo, meu quarto se revelou um daqueles robôs que se transformam com super poderes. Num dia, ele só tinha uma cama, silêncio, um armário potente em tendências e meus livros. No outro, as vídeo – chamadas não paravam de popar, o livro de Clarice escrito por Benjamin Moser se revelou o melhor apoiador de celular para call que existia nele. Minha poltrona adornando minha parede de placas à la Pinterest se tornou o cenário daquelas lives que a gente faz arrumada só da cintura para cima.
De um dia para o outro, aquele quarto se tornou um palco sem igual. Entraram nele meus colegas de trabalho, meus professores novos e os antigos, alunos como eu, a Tereza Christina, o Samba da Maria Rita, a sustança de meninos e homens pelas letras do Jé, a montanha de Gregório, as saudades do meu afilhado, a Monja Coen com a Mariane, a Carol Teixeira trazendo Kali.
Quando eu percebi, estava em férias e desespero nele. Ali ele virou grama para fazer yoga, ashram para meditar, chão para sentar e chorar, tablado para dançar Flamenco, palco para moves de Pole Dance, lugar para que nascesse um projeto lindo, um amor no front, um amor aqui dentro que me ensina como é difícil desligar a câmera quando a gente tem que se despedir.
Eu abro e fecho a porta. Mentalizo as palavras mágicas e invoco sua potência. Nele, ainda que em dias de terapia eu me apresente de pijamas, me descobri roteirista, bailaora, puro desespero, budista e apaixonada. Meu quarto, meu bunker.
Mas ainda assim, eu sonho com o dia em que toda esta mágica desapareça e ele volte a ser um lugar particular.
Nathalia Triveloni (São Paulo, SP)
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Triste, exausta e esperançosa
Ela veio de longe, crescente, como uma onda inundando, varrendo continentes, invisível, devastadora. Em câmera lenta, mas de repente, o ar faltou no mundo.
Eu ainda nem tinha dado conta da minha condição, meu problema no coração, o risco maior que corro. Letal. Num piscar de olhos, ela já estava presente me encarando, esperando eu dar bobeira. Mantenha-se sempre alerta, Isabel, mas não perca a sanidade. Pensei em comprar aquele porta comprimidos com dias de semana para velhice, quando esqueceremos se já tomamos os remedinhos ou não, pois, aconteceu comigo, fiquei olhando para o copo d’água, aflita, pedindo para minha memória cooperar, fui e voltei até a cozinha, e nada, resolvi tomar meio. Meu mundo ficou radioativo. Minha casa, meu bunker. Isolamento.
Tirou-me o cheiro e os afagos das pessoas mais queridas, os raios de sol de quem eu sempre fugi mas que conseguiam me alcançar o suficiente para eu não passar de alva-contraste para o verde-doente, o prazer de me vestir e ser medida de cima abaixo, meu amado ofício de desenhar e vestir as mulheres, é temporário mas parece uma eternidade. Roubou meu fôlego e meu tempo. Mas empurrou goela abaixo, troca injusta, vídeos toscos robóticos e desconexos com as pessoas queridas fingindo normalidade e não conseguindo disfarçar tristeza que grita junto com a microfonia, a sombra, pijamas e mais pijamas com chinelo e meia e coque mal feito com piranha de plástico, improdutividade e ócio sem ser do romântico. Pernilongos fora de época vieram de brinde. Meu varal fica tão deselegante com as máscaras, olho e me desanimo.
Nunca gostei de ficção-científica, quanta viagem. Ô ironia. Não é um Ensaio Sobre a Cegueira, mas está sendo um ensaio sobre o sufoco.
Socorro.
Sempre apertei as coisas da rua, onde todo mundo encosta, com as costinhas das mãos, esperei alguém entrar no banheiro público para aproveitar e entrar no vácuo sem encostar na porta, tentei surfar no metrô para não pegar no cano morno oleoso, venci sono em banco de ônibus para não relar na janela melecada de carimbo redondinho de cabeça, esterilizei controle remoto de hotel, deixei de usar cobertor de pousada com pentelho alheio que du-vi-de-o-dó que lavam, entrei na escada rolante reverberando de maneira calculada no mesmo ritmo igual entrava na brincadeira de pular corda para obviamente não ter que usar o corrimão, enxuguei as mãos em toalha de rosto da casa dos outros na área provavelmente menos tocada e só se não estivesse úmida, lavei os copos antes dos pratos, tomei banho de cima para baixo para não cruzar sujeira, prendi a respiração na Doutor Arnaldo por causa do infectado Emílio Ribas e dos mortos evaporando do Araçá, me safei de perdigotos do tipo que acumulam brancos e corpulentinhos saltando na sua direção, não dei nem pedi sem ser pro namorado bocada de sorvete ou qualquer doce em colher que ficam as marcas dos dentes escorregados e o doce meio derretido e lambido e também não gosto de pisar na grama, nem de tomar banho de chuva.
Já fiz muita vista grossa no Chifu, pro chão que dá pra patinar, pra garçonete que coçou o vão dos dedos do pé e trouxe o arroz em seguida, mas ainda assim, imaginem o impacto dessa pandemia sobre minhas maneiras.
Mas a esperança é a última que morre.
Pastel de carne e queijo da feira acompanhado de caldo de cana com limão e das pombas com piolho voando baixo para bicarem as migalhinhas da massa que caem no chão inevitavelmente. Nem ligarei para essas feias imundas. Estarei mais concentrada lambendo os dedos, sentindo o cheiro de coentro e manga madura. Nem ligarei pra a barraca que vende incenso hippie, o treco mais fedido que existe, só perde para patchuli. Certamente ficarei de olho no horário que marquei no salão para depilar e fazer os pés, pintar as unhas de vermelho aberto, já tá calor para calçar a sandália baixa trançada rosa esmaecido. Nem ligarei se a Nalva tirar um bife. Tô é pensando em qual dos muitos vestidos que estão loucos para sair do cabide vou botar para arejar e exibir, se tiver amassado, nem ligarei, desamassa no corpo. Passarei sim na banca da Joana, para por a vida em dia e escolher um buquê de flores arranjado de uma maneira que é só dela, que veste minha sala de casa bonita, nem ligarei se avistar atravessando a rua aquela pessoa chata pra danar, matarei até saudades de gente mala. Além do mais logo vou sentar na Sede para tomar vinho, brindar, ser mimada e querida pela Dani e pela Cássia, se tiver acabado a comida do Checho, ficarei quase mal humorada, mas resolvo com um hambúrguer da Garagem vizinha, saudades daquela batata frita com maionese picante.
A Teresa chegará com a Nina logo mais e eu preciso sentir o cheirinho do cangote com penugem da minha sobrinha, o mesmo que me invade docinho e cheio de ternura quando a porta do apartamento delas se abre. Se eu e minha irmã estivermos de mal, não me importarei mais, esquecerei rapidamente o motivo só de olhar para ela e poder conversar novamente frente a frente sem ser por áudios tamanho podcast. As baratas pelo caminho continuarão existindo, me perseguindo e me fazendo sapatear, sim, vou esbravejar, mandar de volta pro inferno, a vida não pode ser perfeita, afinal.
Pinheiros, me aguarde, tô vacinada.
Isabel Mascaro (São Paulo, SP)
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Usando máscara sem abaixar
Quando começamos o isolamento total, em 17 de março, eu jurava que duraria, se muito, uns três meses. Fomos rígidos, eu e meu filho de 6 anos não saíamos para absolutamente nada, apenas meu marido e pai do Pedro é quem garantia às idas ao supermercado e farmácia. Aulas on-line a todo vapor, que no começo foram motivo de desespero e hoje posso dizer que vencemos a arrebentação, nos adaptamos e o aprendizado está acontecendo com muita calma e respeito ao processo (mérito do meu menino, que, na sua pouca idade, tem entendido o contexto e importância e da professora maravilhosa dele). Agora estamos vendo o afrouxamento quase total, ainda sem sair de dentro de casa para quase nada e sem ver familiares e amigos desde março. Sigo realista esperançosa, como bem disse Ariano Suassuna. Aguardando o que os médicos e cientistas tem a dizer sobre os próximos dias – é neles em quem confio. Usando máscara sem abaixar no queixo ou botar o nariz pra fora!!!
Patricia Pavloski (Curitiba, PR)
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Três poemas
no ir e vir entre cômodos
alvoroçados pensamentos
escoltam a passagem do tempo
disfarçando segunda de sexta
e quinta de terça
Espreito o futuro
A quarentena tem sido um aprendizado interessante. Sou privilegiada em moradia e livros, escrevo, vejo filmes e séries. Converso com os filhos, netas e ouço bisnetos. Penso no pós pandemia como novo tempo, mas não para mim. Com 81 anos bem vividos espreito o futuro.
Margarida Gordinho (São Paulo, SP)
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No primeiro dia do resto de nossas vidas
O mundo não se tornou melhor, não implodimos a ilha de Manhattan, as veias abertas da América Latina continuam sangrando e a maçã da Apple não apodreceu. Vejo um planeta chocar-se com o desconhecido, mas não o choca o inventário da derrota, todos ainda condenados à insularidade do egoísmo, aos fetiches do deus mercado, às re(l)ações virtualizadas, à tirania do fundamentalismo eletrônico e à potência esterilizante das fake news. O horror do vírus travestido de estatística transformou vítimas em números. Na indigência de Nova Iorque, Manaus ou Vila Formosa, as sepulturas enfileiradas: metáfora de um sinistro código de barras na fa(r)tura dos obituários, leitura ótica da desumanidade que nos apequena e inaugura o inverno do nosso descontentamento. As casas engolem os homens e estes, ausentes, inúteis, cansados, não percebem lá fora os escombros que nos soterram.
Ronaldo Cagiano (Estoril, Portugal)
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Pandemim
Ao se verem fechadas no meu dia-a-dia, as palavras buscaram guarida num canto do lado de dentro; tampouco elas queriam encontrar esse mundo.
Justo elas que tecem tudo que seja vida, que desenham o dentro e o fora, criam tangentes, se viram capturadas em Pandemia. Só falam Pandemia. Só fazem Pandemia.
Acho que se escrevesse cem vezes (mil vezes?) PANDEMIA no papel uma hora o traço ia soltar a palavra da dor.
Esse “ia” que vem ao fim, lembra tudo que seria caso ela não tivesse entrado pela porta.
Estudo:
Pandemia, aquilo que acontece com todo um povo.
Hipótese:
Então ela é futuro do pretérito e está condicionada a outro acontecimento anterior.
(Isso não é etimologia, é alguma logia de boteco, é dedo buscando tecla e o som tec tec tec.)
Estudo:
Acontecimento condicionante do mal que acomete a todo um povo.
Detalhamento:
– cor, cor preta;
– corpo, corpo de mulher;
– pobre, pobre de dinheiro.
“No combate entre você e o mundo, Prefira o mundo.” – escreveu Kafka por aí.
Escrever é preferir povoar mundo de cor, corpo e riqueza de tudo que seja, de tudo que é.
Estudo:
Fazer pandemia de mim.
Detalhamento:
-deixar-me acometer por todo um povo;
– expandir;
– escrever, escrever, escrever.
Paula Fontana Fonseca (São Paulo, SP)
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Porque você leu Viagem à roda de meu quarto
Depoimentos sobre a quarentena: fevereiro
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FEVEREIRO, 2021