Viagem à roda de meu quarto,

Depoimentos sobre a quarentena: setembro

Leitores enviam relatos sobre a experiência do isolamento

23set2020

Gostaríamos de saber como você está enfrentando estes dias de isolamento. Envie o seu depoimento – a tribuna é livre e está aberta. 

Queremos saber o que passa pela sua cabeça nestes dias, quais estratégias você inventou para enfrentar a ansiedade e o tédio, um trecho de uma coisa bonita que você leu ou ouviu, que comida preparou para quem está ao seu lado, ou para você mesmo.

Envie o seu depoimento para [email protected] e nós o publicaremos (trecho ou completo) nas próximas edições da nossa newsletter, no site ou nas redes sociais da Quatro Cinco Um.

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Interlúdio

Retrocedeu o Brasil, mais distante ficou o milagre, o futuro, distópico. Água já não limpa a contento, higienizamos mãos, objetos, obsessão com álcool em gel ou 70%. Máscara isola boca e nariz, respirar é sinônimo de embaçar as lentes dos óculos. Viver cada vez mais intermediado pela tecnologia. Terapia, pizza, consulta médica, coxinhas douradas, pilates, yakisoba, via WhatsApp.

Aulas, avaliações com consulta, seminários, desenvolvidos no Teams. Cinemas reativaram o drive-in, as lojas, intensificaram o delivery, passaram a oferecer o drive thru. Português segue desvalorizado. Almoçar, sob a sombra da pitangueira do quintal, em cadeiras dobráveis de praia, substituiu as visitas semanais ao restaurante árabe. Quarentena passou a contabilizar mais de 40 dias.

E quando tudo voltar a ser lá fora, a umidade continuará estufando a parede do quarto; direitos básicos seguirão não atendidos; passeio pedestre pelas ruas do bairro, será equivalente a percorrer pontos turísticos. 

Fernando Oliveira Mendes (11/9,/2020, Araraquara, SP)

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Prazer em reclusão

"Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!"
Fernando Pessoa

Há dias lavava louça e escutava o som da máquina de lavar roupa. De repente um som de aeroporto… mas era a geladeira a funcionar…  Senti uma grande paz. Esses sons me trouxeram  a segurança do lar. Uma falsa segurança. Existe segurança no viver? O som da geladeira me fez ainda voar e pensar em viagens. Mas quando?

 Hoje, voltando a ler Fernando Pessoa, deparo com o poema acima, em um livro que ele descreve as glórias de Portugal, e dos seus "heróis."
   
Como este isolamento que estamos vivendo nos leva a contentar com o que antes julgávamos pouco… Nosso anseio 
por mares e descobertas… passou a se limitar em não adoecer.

Estamos aprendendo a gostar das coisas mais essenciais? Ou apenas nos adaptando pela necessidade premente? Talvez ambas as coisas. 

Eu me refúgio na culinária. Gosto de doces, e de adoçar os corações das pessoas queridas, com bolos, pães e tortas. Uma forma de me comunicar.

No caminho da farmácia, passo por um grande prédio, ao lado do parque.  No seu jardim interno, um manacá floresce. Hoje, não pude ver a árvore,  pois, uma cerca verde, muito densa,.a  cobria. Mas, senti o perfume de sua flor,  trazido pela brisa da manhã. Já é um consolo, poder sair perto de casa.

As viagens por mares e as descobertas ficarão para mais tarde.

Beth Mourthė (28/8/2020, Belo Horizonte, MG) 

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Depoimento

Diante do caos que o mundo vem passando, causado pela pandemia, escrever é uma das formas que me ajuda a lidar com a quarentena, a suportar a solidão e a morte, porque, todas às vezes que morre alguém, se esvai um pouco de mim, pois na essência humana do existir, eu também sou o outro.

 Silêncio velado

 Covas são abertas ao léu

À espera de corpos

Corpos esses

Nem vistos mais

Por seus familiares que

Diante do caos

Também são vítimas

De um governo genocida

Lágrimas descem face abaixo

E a escavadeira cobre 

Os caixões como se fossem

Entulho

E a Covid-19

Em pleno século 21

Passa a ser a terceira guerra mundial

E no Brasil Hitler aparece

Na imagem monstruosa

Do presidente que incentiva

O caos

Enquanto o mundo tenta 

Combater o monstro invisível

Objetivando salvar milhares

E milhares ou milhões de vidas

Mais um corpo é jogado

Na valeta

E uma lágrima provinda de um

Silêncio fúnebre desce face abaixo

Procurando fanar a dor

Dos seus familiares

Adenildo Lima (16/9/2020, São Paulo, SP) 

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Cadê a vacina?

Às vezes me pergunto se somente eu tenho a sensação que todos os dias da quarentena parecem domingo.

Muita coisa fechada, o dia não rende, aquela nostalgia, fazer comida em casa, arrumar a casa, aquele desânimo pré-segunda…

Odeio domingos. Mas de novo vem a nóia: será que só só eu penso assim? kkkkkk 

Só que nessa Bukowski me salvou ao dizer: "Domingo, o pior, o mais desgraçado entre todos os dias da semana". 

De domingo em domingo, setembro chegou, e parece rapidamente já se encaminhar para o fim, assim como o ano, mas a quarentena nada.  

Na verdade, a vacina nada né? Porque parece que nem existe mais quarentena, e eu sou um dos poucos alienígenas em casa (sem cor, sem vida, no loop eterno de domingo e pijamas).

Erica Rabelo (10/9/2020, Distrito Federal, DF)

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Poema

Nesta pandemia percebi
As sementes me semeiam
As flores me plantam 
Meu cachorro me cuida
Os sinos me tocam
A lua me olha
Sempre vi o oposto 
Mas o tempo descortina
A ordem certa das coisas…
Seu olhar espreita
Ultrapassa o tempo
Pra esse brilho não encontrei ordem
certa 
Somente horas incertas. ..

Fátima Domingues (11/9/2020, Campo Grande, MS)

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Tempo

Chove lá fora e aqui dentro ferve – ouço Bohemian Rhapsody, sinto meu corpo e mente conectados à música. Levanto e me ponho a dançar. Estou na sala e os sons que chegam até mim, além da música, são do meu marido cozinhando, aconchego é a palavra que surge. Meus sentidos estão mais aguçados, por conta da pandemia, ganhei tempo para respirar, observar, sentir. Percebo que nunca estive por tanto tempo em casa, minha ansiedade faz com que eu tenha que estar em movimento constante, e por consequência quem está comigo, entra na roda. Se estou parada sinto o tempo passando e um tsunami me invade.  Com a quarentena estou aprendendo o prazer de estar em casa e por alguns momentos sem fazer nada. Curtir o ócio e ouvir os sons produzidos pelo meu silencio, é o que mais me desafia. O sentimento de solidão, gerado pela falta do encontro compartilhado vem sendo suportado pela companhia dos livros, da música, dos momentos de estar na horta e dos rumores do meu marido e filha. O tempo com os dois é ouro. É na rotina que nos despimos dos personagens sociais. Se fala na mudança do ser humano pós pandemia, não sei. Em mim fica a certeza de que não temos controle de nada, que a vida é o presente e que ter tempo é fundamental. Tempo para respirar, buscar alternativas e agradecer pelo dia de hoje. A canção chegou ao fim, e o som que ouço agora é o da minha barriga, roncando, sinalizando que é tempo de almoçar. 

Angela Staub (6/9/2020, Novo Hamburgo, RS)

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Sonho

Meu depoimento é feito um sonho iniciado logo após a decretação da pandemia em março. Me aliei aos "sonhos tropicais" de Moacyr Scliar e continuo até agora com Chico Xavier, que sairá domingo na minha coluna (Memórial), publicada semanalmente no jornal digital "Jornal da Besta Fubana" (www.luizberto.com). A publicação dos "sonhos" continuará até o fim da pandemia. Iniciou homenageando os cuidadores da saúde (Cabras da Peste) e prossegue com cuidadores da saúde mental (Cabras da Mente). O sonhos prosseguem até o fim da pandemia. 

José Domingos de Brito (4/9/2020, São Paulo, SP)
 
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Apavorou

A rotina mudou

assustou, apavorou

Adaptando, limpando, orando

Homióficeando

por vezes chorando

Nesse dito novo normal

sinceramente

Tudo é o escambal!

Tatiana Duffrayer (30/8/2020, Rio de Janeiro, RJ)

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