Viagem à roda de meu quarto,

Depoimentos sobre a quarentena: dezembro

Leitores enviam relatos sobre a experiência do isolamento

18dez2020

Gostaríamos de saber como você está enfrentando estes dias de isolamento. Envie o seu depoimento – a tribuna é livre e está aberta. 

Queremos saber o que passa pela sua cabeça nestes dias, quais estratégias você inventou para enfrentar a ansiedade e o tédio, um trecho de uma coisa bonita que você leu ou ouviu, que comida preparou para quem está ao seu lado, ou para você mesmo.

Envie o seu depoimento para [email protected] e nós o publicaremos (trecho ou completo) nas próximas edições da nossa newsletter, no site ou nas redes sociais da Quatro Cinco Um

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Emagreci 16 quilos, passei a usar óculos

Eu mudei de casa um pouco antes das medidas de restrição no Rio de Janeiro, no pós-Carnaval. Mudanças de casa, e eu me mudo bastante, sempre representam mudanças internas, rever o que se tem, mexer nas memórias escondidas nos objetos, jogar coisas fora. Uma possibilidade de instaurar um novo, criar algum efeito de limpeza para o olhar. Mudança realizada, o apartamento precisava de algumas obras, comprei alguns móveis, pintei paredes, agendei com pedreiros. Restrição social. As lojas de móveis fecharam, o condomínio restringiu as obras – apenas o emergencial. Fiquei em um apartamento praticamente vazio, eu, uma cama, uma geladeira e um fogão. Academias fecharam, parei de fazer exercícios. Com o tempo, me acostumei mais a ver pela janela, que para a pilha de livros encaixotados no chão, mais para o céu, que para as bolsas de roupas empilhadas. Fui me conformando com o novo apartamento montado pela metade. Neste novo lar, tirei muitas fotos do pôr do sol atrás dos prédios da Zona Norte, dancei na sala vazia, experimentei receitas, muitas receitas, engordei, aprendi a fazer a pizza dos sonhos. Inventei um sarau online no meu perfil do Instagram, tudo parecia razoavelmente bem, conseguiria atravessar o período de pandemia com um mínimo de equilíbrio, eu e eu.

A vida cada vez mais mediada pelas telas, comecei a perceber certa dificuldade para enxergar na tela, devia ser vista cansada, pensei. Lembro de ministrar uma oficina de mediação da leitura e pedir para os participantes lerem os trechos das obras que eu iria comentar, simplesmente porque eu estava, sem saber, começando a não conseguir enxergar. Até que um dia, olhei para o computador, e apenas conseguia ver uma mancha cinza, um cinza bem claro, as letras haviam se desfeito na minha frente, corri para o livro impresso e também não consegui enxergar nada. Depois de algumas idas e vindas em médicos e alguns exames, descobri que estava com uma taxa altíssima de glicose, me sentia zonzo constantemente, precisaria de remédio, dieta e exercícios. 

Mas e a visão? Isso que mais me angustiava. As respostas dos médicos eram as mais evasivas, para um homem que vive de ler e escrever, “em alguns meses, volta”. E não voltava. Lembro da tristeza na voz do meu pai, quando eu disse que não estava o enxergando com nitidez, e da angústia silenciosa da minha mãe. Os livros que eu precisar ler se acumulando, os livros que eu queria editar, o livro que eu queria escrever, o artigo para o doutorado. Por indicação de um dos oftalmologistas, passei a usar óculos, e com eles conseguia ler, mas causava bastante irritação nos olhos, não conseguia usar por muito tempo.

Era um tempo de espera, eu precisava aceitar isso, um dia ela retornaria, um dia.

Emagreci 16 quilos em pouquíssimos meses, voltei a me exercitar, fiz uma dieta com seriedade, não refiz a receita da melhor pizza do mundo. Na impossibilidade de, com conforto visual, ler e escrever, me afastei do celular, do notebook, escutei com mais atenção as histórias que a minha mãe contava sobre a minha família, sobre os vivos e os que já se foram. Refleti bastante, parei, em silêncio, em contato comigo. Contei para pouquíssimas pessoas o que estava vivendo, apenas fiz quando era inevitável, como no doutorado. 

Os dias passavam, lentos, a pandemia marcando cada vez mais a história do mundo.  Eu fui me confortando na espera, saindo de um ritmo intenso em que havia vivido a minha vida por muitos e muitos anos. 

Um dia, caminhando para o meu exercício diário, olhei para uma placa na rua e consegui ler, depois outra, e outra, testei ler informações que estavam mais distantes e consegui! Chorei, em um contato íntimo com a natureza, com a vida e o estar vivo.  Todo aquele instante, um instante profundo, inesquecível, luminoso, uma reconexão, como uma explosão de uma casca, ou o acendimento de uma luz.

Vagner Amaro (Rio de Janeiro, RJ)

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Parto

Uma gravidez inteira e já está chegando o Natal. Agora, as árvores são de plástico. Os pisca-piscas de plástico. E a neve de plástico-isopor. Meu filho que não existe, vinda de uma gravidez sofrida, não sabe o que é o Natal.

Rebecca Machado (Santo André, SP)

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A felicidade é simples, suave e tranquila

Já faz tempo que o tempo parou. E experimentei a dor de abdicar da liberdade que é minha por direito. Precisei deixar pra depois o ritual da rotina, o espaço fugitivo das lutas diárias, a alegria servida ainda quente nos domingos. Naqueles dias comuns, eu achava que a felicidade era algo inquieto e barulhento, como uma criança bagunceira pulando dentro de nós. Mas aprendi que ela é simples, suave e tranquila. É mais parecida com a paz. E é essa paz que tento manter dentro de mim, ainda que lá fora o caos insista em continuar. Nesse meio tempo, alimentei a parte forte que eu era. Há tempos já esquecida. Adormecida dentro de mim, mas viva. Criei uma oração pra me acender a esperança do futuro: que tudo que estou perdendo me seja devolvido em dobro!

Lucélia Gomes Pereira (João Pessoa, PB)
 
 
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Ressurreição

A pandemia me fez conversar com a alma, e me sentir sem corpo, como uma ficção onde não existissem pessoas, apenas energias sem corpo. Onde éramos seres extraterrestre voltando para o universo de onde havíamos saído milhares de anos atrás. Me sinto numa ressureição, voltando à vida no fim dos tempos. Como um morto a espera da salvação. 

O medo de viver um morto vivo, me fez me encontrar com o desconhecido. Dentre vários desconhecidos, um me surpreendeu, pois na verdade era um amigo íntimo.  Existente bem ali próximo. Não o via. Achava disponível para encontrar a qualquer momento da vida.  Eram os Livros! Muitos Livros que tinha e também ganhei. Leio vários ao mesmo tempo. Descobrir novos autores, e redescobrir velhos autores da minha infância. E frases lindas essa da Clarice Lispector que amo de paixão, me fez pensar melhor e positivamente:

“Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.

A mistura da incerteza de ser sorteado pela pandemia, me fez olhar o invisível que existia aos meus olhos. Invisível que entrava e saia quando assim bem o quisesse. Mas que hoje já se transportou para o desejo da ficção onde a alma o transportou silenciosamente.

Mergulhei nas lives, e assistir de tudo e de todos. Através das redes sociais, pratiquei o pensamento da Clarisse Lispector. Vi que ali, ainda é a melhor opção de reinventar a vida sem contato físico! É assistir vidas se reinventando como todos ao meu redor. Comendo em excesso, sem coragem para um check-up e sem coragem pra caminhar, respirando ofegante com as máscaras, tentando driblar os sorteios da Pandemia. Todos tentando adiar a chamada da morte. Morte que ainda já percebe a intimidade de todos nós com o sofrimento.

Na ansiedade, eu acordo querendo ver milagres! Milagres da vacina, da volta a vida, do esquecimento da ficção, do aperto demão, do abraço, do corpo presente, da visão do real.

Juvenal Cardoso Filho (Guanambi, BA)

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Não tem sido fácil
 
Tem pouco mais de 200 dias que eu vivo aqui. Eu acordo e agradeço por estar vivo. Não tem sido fácil ter saúde esse ano. Tomo um banho e inicio meu dia: um pouco de sol, um pouco de café e muito chá de cadeira no serviço home-office.  E tem sido assim. Quando chega a noite, ainda dentro de casa, assisto ao jornal, fico por dentro do que acontece em muitos lares, como alguma coisa e vou dormir.
 
A hora de dormir é a minha preferida: é quando moro em meus pensamentos, faço as minhas reflexões e penso que, na verdade, eu nunca sairei daqui. Aqui eu vivo com os meus sentimentos, sinto meu coração bater, ouço os passarinhos cantarem, sinto cheiro de carne assada e dou leves tapinhas na minha barriga. Também é o local em que posso me esconder de tudo e todos. Acredito que isso acontece por estar em casa. Talvez fora dela eu não enxergasse a minha vida como ela é e justamente por isso cada um tem uma história tão única. Porque não precisamos estar em quarentena para ficar em casa. Ela está conosco dia e noite, por muitos anos, a nossa casa nada mais é do que a nossa própria mente.
 
Nicole Gomes Cantagallo (São Paulo, SP)

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