Viagem à roda de meu quarto,

Depoimentos sobre a quarentena: fevereiro

Leia relatos dos nossos leitores sobre o isolamento

04fev2021

Gostaríamos de saber como você está enfrentando estes dias de isolamento. Envie o seu depoimento – a tribuna é livre e está aberta. 

Queremos saber o que passa pela sua cabeça nestes dias, quais estratégias você inventou para enfrentar a ansiedade e o tédio, um trecho de uma coisa bonita que você leu ou ouviu, que comida preparou para quem está ao seu lado, ou para você mesmo.

Envie o seu depoimento para [email protected] e nós o publicaremos (trecho ou completo) nas próximas edições da nossa newsletter, no site ou nas redes sociais da Quatro Cinco Um

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Um dia de cada vez

Meu lema é “um dia de cada vez”. Eu me propus a pensar assim desde o início da pandemia, quando percebi que as coisas iriam se alongar. Ter contato 24 horas por dia com minha filha, que agora completou 2 anos, e com meu marido, que teve queda abrupta de trabalho, por ser músico. Não poder ter rede de apoio. Conviver com o mesmo, tendo que dar conta de tudo (trabalho, casa, cuidado da família) ainda que de forma compartilhada com o companheiro, usando a criatividade para fazer deste mesmo algo diferente. Meu marido está cozinhando de forma deliciosa. Aprendeu a fazer pães, pizza caseira, seu tempero está cada dia mais gostoso. Está aprendendo jardinagem. Tem projetos de trabalhos profissionais em mente e em execução. Eu voltei a andar de bicicleta, uma antiga paixão, e descobri a vontade de pintar com aquarela. Leio muito, junto com a filha no peito, ainda. Há momentos de angústia, de paz, de gratidão, de estresse, de cansaço, de raiva, de desalento, de epifania. O ansiolítico foi necessário. O lado bom é que aprendi a ressignificar muita coisa na marra, e também não tivemos nenhuma perda na família. O lado ruim é o presidente.

Patrícia R. Nacarato (Mairiporã, SP)

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Descansar lavando panelas

Uma astróloga uma vez me falou: Camila, você descansa carregando pedra. Reconhecida a pandemia pela OMS e imposta a clausura, chegou meu tempo de serenar. Encara essa ladeira, vai ser Sísifo na vida.

Março começa e março avança, e eu não podia sair de casa. Compro e devoro quatro livros. A mente organizada, O método bullet journal, O poder do hábito e Como mudar sua mente. Venha aqui, cabeça minha, eu vou te mapear e desenhar uma nova cartografia dos meus delírios, planilhar meus avanços e recuos, colorir vazios de papel com sonhos e pesadelos, esboçando dias com a metragem que me der prazer, em uma agenda vazia, em branco, preenchida com pontilhados soltos, abertos ao meu gozo oportuno, para que eu, ao som de músicas sem palavras, trace os meus horários e me aproprie dos compromissos que eu quiser assumir. Escolho as velocidades das minhas horas – eu sinto que é o tempo de eu esculpir o meu presente.

Confessionário: poder desenhar o meu calendário é viver o alívio de não ter que garimpar desculpas para evitar as agendas de rua. Até março, me amordaçava atendendo a compromissos dos outros, em um teatro em que eu era uma protagonista sem fala. Ou atriz ao sabor de uma direção surda, que manda para que eu deslize sem atrito. Trancam-se as portas. Recobro o fôlego.

Ainda mais do que ao teto: vejo o ouro que é ter as minhas paredes. E as minhas pedras.

Estou para descobrir alguém que propositadamente também deixa alguma louça por lavar tal como aquela última mordida da comida predileta no prato, fazendo poupança desse tipo de pequeno prazer. Camila, você descansa lavando panela? Pois se o dia começa com uma ansiedade que não se arrefece na meditação ou no alongamento da yoga, e acaba por avançar por entre as horas da manhã, saber que ainda tenho uns três pratos, a taça suja de vinho da noite anterior e a xícara de café da manhã: suspiro. É um alívio sabê-las (as louças sujas) serenamente me esperando para que eu, com o olhar quase perdido na janela do vizinho, com as mãos ressecadas e peles soltas, possa respirar.

Respeito os cozinheiros de quarentena e os virginianos de ocasião, que se puseram a descobrir novas habilidades com a comida e libertaram dos armários tantas roupas esquecidas. Na cozinha, eu só descansei limpando sujeiras e ordenando sobras, enquanto no escritório a serenidade veio em me debruçar sobre uma bagunça gostosa, que eu estava há muito tempo esperando para organizar. Hoje já são tantos meses protegida por entre as minhas muradas e ladeada pelo meu caderno pontilhado, que surgem alguns buracos nas paredes, eu já deixo entrar e sair alguma luz e um tanto de som – e sabendo das minhas táticas tão mais azeitadas, eu já me enxergo com outros contornos, e tanto ajuda saber que ainda tenho muita pedra para carregar e um Pedro para me ajudar nesse caminho. E vice versa.

 Camila Pietrobelli (São Paulo, SP)

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Percebi a sorte que pude ter

Vi a chamada para envio do depoimento sobre a quarentena e resolvi escrever um trecho de um bonito sentimento que tive o privilégio de poder sentir em meio a todos esses meses de caos – o amor. 

"Estava ali desde o dia primeiro – melhor acontecimento em meio a todo o caos instaurado. Estava ali como amigo, como início de algo a mais, recém saído de outra vida, enquanto eu tomava a coragem. Mas, não, nossa história não se iniciou no dia um. Foram anos apenas de pura e simples amizade, onze anos em que nunca imaginamos encontrar o amor um com o outro, separados por mil e quinhentos quilômetros de distância e justamente em meio a uma pandemia global. Pude reencontrar dentro de mim o amor que não me permitira mais sentir com o meu melhor amigo. Olhei para o meu interior, revi prioridades, percebi a sorte que pude ter em sentir tantos sentimentos bons durante todos os meses que se passaram. Hoje, dia trezentos e dezenove do caos, separados por menos de dez quilômetros – sim, ele mudou toda a sua vida por nós – continuo a viver essa história de amor, próxima a completar doze anos, clichê de tantas formas, mas tão inusitada e especial que, confesso, seria difícil acordar no dia trezentos e vinte e descobrir que tudo não passou de um sonho: de repente, não mais existiram os dias de caos e as vidas de todos os humanos seguiram seu curso natural – mil e quinhentos quilômetros mantidos, sem nunca ter sentido o leve toque dos seus lábios."

Feliz em compartilhar um pouco de mim e dos meus dias com essa revista incrível que tive o prazer de conhecer.

Andrezza Delazari (Macaé, RJ)

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Hoje senti vontade

De passear na rua com meu cachorro, de abraçar os amigos, de ir à livraria e comprar o cheiro dos livros, de tomar café com uma amiga e falar sobre a vida, de comer um croissant na melhor padaria da cidade, de dançar nas rodas de Biodança, de tomar cerveja no bar da esquina, de banho de mar ao final da tarde, de olhar o por do sol viajando de ônibus, do escurinho do cinema, de cumprimentar o vigilante do shopping, de sorrir para a velhinha no sinal, de comer cuscuz com o grupo de bordado, de andar pelas calçadas mesmo esburacadas, de usar sapato alto, de vestir saia rodada e poder voar, de usar batom vermelho para ir à festa, de tomar duas bolas de sorvete na Beira Mar, de comer peixe frito numa barraca de praia, de visitar a família e rir das mesmas piadas, de colocar minha neta no colo, de viajar de avião, de tomar vinho e chocolate quente em Guaramiranga, do alpendre da fazenda São Vicente, de banho de cachoeira, de ver exposições de arte, de comprar caderno e lápis de cor, de encontrar um amigo no restaurante, de comer fruta no pé, de notícia boa, de visitar museus, de sacar dinheiro no caixa eletrônico, de comprar chegadinho ouvindo o triângulo do andarilho, de ir
para as manifestações da esquerda, de comprar flores, de sentar na praça, de ir à feirinha de artesanato, de entregar o presente ao aniversariante, de rezar no Mosteiro São Bento, de ir ao Mercado São Sebastião, de ouvir o barulho dos camelôs no centro, de ser arrastada pela ventania da Praça do Ferreira, de comer pastel com caldo de cana na Leão do Sul, de receber amigos em casa, de atravessar correndo a faixa de transito, de cantar bem alto nos shows, do sol de meio dia queimando o juízo ao sair do carro, de ler e trocar ideias com o grupo Livros e Vinhos, de assistir as velas do Mucuripe saindo para pescar, de ver a lua cheia em cima das dunas, de ter algumas certezas da vida, de se perder na multidão, de ouvir o coração achar graça no meio do mundo, de ver olhos e boca sorrindo ao mesmo tempo, de apertar a mão de um desconhecido e não lavar as mãos só para desapontar Pilatos. Ô vontade!

Betania Moura (Fortaleza, CE)

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O que não se vê

Desde o início da pandemia eu percebo que cada pessoa tem encarado o isolamento de formas diferentes. Alguns tiveram que enfrentar um estado de pânico e ansiedade avassaladores, outros ficaram (e continuam) enterrados em uma ignorância inexplicável, que até hoje tento compreender e ter um pouco de simpatia e menos julgamento, e alguns conseguem ser otimistas a ponto de encontrar algo positivo em seus isolamentos forçados, em seus enfrentamentos com a própria solidão.

Eu desenvolvi uma antipatia pelo mundo virtual. Minha vida tem se resumido em acordar, ligar o computador, e passar o dia inteiro frente à tela. Pausa para o almoço. Lavo as louças. Ligo o computador de novo. Hora de fazer um lanche. Olho para a minha janela e não vejo nada mais do que prédios altos que bloqueiam a minha vista e o quintal de uma casa. Fico angustiada. Volto para a cadeira e a tela e sua luz artificial. Nesses pequenos intervalos, verifico o Instagram em uma tentativa de ver vestígios de uma vida “normal”. Ilusão. Checo o e-mail. Fim do dia, é hora de jantar. Enquanto faço a digestão, respondo as mensagens no WhatsApp. Faço uma vídeo chamada com a minha mãe. Hora de dormir e me preparar para outro dia exatamente igual, com seu ritmo frenético e artificial.

Meses a fio e vejo o quão estou enojada ao ver anúncios, lives, reuniões online. A normalização das telas. Eu me sento diante do computador e sinto ânsia. Criei uma resistência por tudo que promete facilidade e rapidez, como se eu precisasse dar algo em troca (a percepção de que estou, de fato, viva, talvez?). Não me parece uma troca justa.

Descobri que, no fim das contas, não é essa rotina que me aniquila, mas a angústia perpassada por aquilo que não consigo ver, seja por estar invisível aos olhos, ou distante de minha realidade. O vírus e seu perigo iminente, a simplicidade de uma existência fora das tomadas, e a paisagem obstruída pelos prédios em frente à minha janela.

Mariana Ruiz Nascimento (Uberlândia,MG)

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Aprendi que a felicidade é simples

Já faz tempo que o tempo parou. E experimentei a dor de abdicar da liberdade que é minha por direito. Precisei deixar pra depois o ritual da rotina, o espaço fugitivo das lutas diárias, a alegria servida ainda quente nos domingos. Naqueles dias comuns, eu achava que a felicidade era algo inquieto e barulhento, como uma criança bagunceira pulando dentro de nós. Mas aprendi que ela é simples, suave e tranquila. É mais parecida com a paz. E é essa paz que tento manter dentro de mim, ainda que lá fora o caos insista em continuar. Nesse meio tempo, alimentei a parte forte que eu era. Há tempos já esquecida. Adormecida dentro de mim, mas viva. Criei uma oração pra me acender a esperança do futuro: que tudo que estou perdendo me seja devolvido em dobro!

Lucélia Gomes Pereira (João Pessoa, PB)