Viagem à roda de meu quarto,
Depoimentos sobre a quarentena: novembro
Leitores enviam relatos sobre a experiência do isolamento
02dez2020Gostaríamos de saber como você está enfrentando estes dias de isolamento. Envie o seu depoimento – a tribuna é livre e está aberta.
Queremos saber o que passa pela sua cabeça nestes dias, quais estratégias você inventou para enfrentar a ansiedade e o tédio, um trecho de uma coisa bonita que você leu ou ouviu, que comida preparou para quem está ao seu lado, ou para você mesmo.
Envie o seu depoimento para [email protected] e nós o publicaremos (trecho ou completo) nas próximas edições da nossa newsletter, no site ou nas redes sociais da Quatro Cinco Um
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Mudanças na percepção do espaço urbano
"Por medidas de segurança, trabalharemos de maneira remota na próxima semana. Peço que levem seus computadores para o cumprimento das atividades diárias", dizia o e-mail da minha chefe na sexta-feira, 13 de março.
A mensagem veio como um alívio. Seria a oportunidade de viver uma rotina de menos trânsito, mais tempo em casa com meu companheiro, mais brincadeiras com o cachorro, mais manhãs de pijama seguidas por tardes de roupão e, sobretudo, a chance de me recuperar da forte gripe que havia pego depois de passar o carnaval entre blocos e poças d'água no Rio de Janeiro.
Naquelas primeiras semanas, enquanto choviam tutoriais sobre o que fazer com o tempo livre, como se a liberdade privilegiada de não fazer nada é que fosse o vírus devastador da pandemia, as reuniões de trabalho postergavam a volta à labuta tête-à-tête e minha casa parecia encolher. Até então, os 60 metros quadrados do meu apartamento ficavam estreitos apenas quando recebia visitas que excediam as cadeiras disponíveis. Mas conforme os dias passavam e as memórias de estar fantasiada em uma multidão de desconhecidos no centro do Rio se diluíam em meu hipocampo, eu me dava conta de que seria impossível manter barreiras entre a intimidade e o trabalho se não trocasse o pijama por uma roupa digna de, pelo menos, participar de uma conferência online. O ar foi ficando rarefeito dentro de casa.
Moro em São Paulo em uma rua paralela à Avenida Faria Lima, próxima da estação de metrô, de pontos de ônibus e cravejada de bares e restaurantes por quilo. Antes de o álcool em gel custar o triplo do que custava, caminhar pelas redondezas entre meio-dia e duas da tarde era uma missão curiosa. Grupos de homens e mulheres de crachá no peito, uniformizados pelo celeste e nada diverso dress code característico desta avenida, caminhavam em fileiras horizontais ocupando toda a extensão da calçada. Uma paródia capitalista do exército imperial de Star Wars descia dos edifícios espelhados da Faria Lima, famintos com seus smartphones em mãos e sempre, antes e depois da refeição, com semblantes genuínos ou dissimulados de preocupação.
A vantagem é que, por causa deles, havia barracas de doces caseiros em vários pontos da quadra. "Um é três, quatro é dez no dinheiro ou doze no cartão", dizia a vendedora. No final da tarde, as mesmas pessoas — agora unânimes em sincera expressão de alívio — se apinhavam em volta de mesas com baldes de cerveja, ignorando ou atendendo aos pedidos de moradores de rua que peregrinavam por aqui. Da minha cozinha, sabia que a noite estava próxima do fim de acordo com os decibéis das músicas berradas no karaokê da esquina.
Logo que mudei para este apartamento, passei a ter problemas para dormir. Cresci em uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul, onde se alguém dissesse que havia enfrentado engarrafamento ou seria tido como mentiroso ou piadista. Mas aqui, se eu quisesse sonhar teria que me afastar de buzinas, motores, e demais zunidos desta parte de São Paulo. Acabei instalando uma janela antirruído no quarto. Dela, eu costumava ver carros, motos, bicicletas, patinetes, engraxates, vendedores de chocolate vencido, pessoas esperando ou correndo atrás de ônibus, incessantes movimentos de ir, vir e ganhar a vida. Enquanto me adaptava a ficar dentro da minha própria casa com passeios ocasionais pelas escadas do prédio, aquela armação de vidro duplo perdia a serventia. O medo da doença desconhecida, somado à quarentena imposta pela prefeitura, fez o som das engrenagens virar vazio e a fauna do trabalho, do almoço e da farra entrar em extinção. Todos os dias ganharam cara de domingo invernal.
O coronavírus abafou a cidade, mas não calou quem vive nela. A revolta pelas pataquadas do governo gastaram o fundo das panelas e da garganta, e acenderam luzes e gritos de comunhão ou inimizade em janelas ao redor de casa. Além disso, o vizinho de porta começou a ensaiar canções de musicais, o casal de cima intensificou os rangidos da cama, consigo escutar o curso online da vizinha de baixo e as reclamações de seu marido sobre a fatura do cartão. Acredito que eles tenham percebido que meu namorado e eu também aumentamos a frequência do amor e da impaciência. "Estamos ótimos, mas o contrato não previa 24 horas ininterruptas por prazo indefinido", disse à minha sogra quando ela telefonou para desejar Feliz Páscoa.
No esvaziar das ruas, o quarteirão se encheu de obras. Como se a pandemia tivesse incitado uma ebulição das construtoras ou um delírio da especulação imobiliária de que metade da cidade vai querer (e poder) mudar para apartamentos com varanda gourmet assim que houver vacina contra a Covid, retroescavadeiras, carregamentos de material de construção, betoneiras, gruas e homens de macacão invadiram a paisagem. Ao lado de casa, o estande com placa de "Visite Decorado" que serviu de praça por meses submergiu no concreto e deu lugar a um buraco profundo como o inferno de Dante onde, até o final do ano, vai brotar um colosso de 40 andares. Nossas janelas nunca mais foram translúcidas.
No auge da obra de fundação do condomínio vizinho, tive uma crise enxaqueca. Deitada no escuro, misturei o barulho aos anúncios do desemprego que galopa no país e ao aumento das mortes por corona em diversos países, lembrei dos conselhos de especialistas para tomar sol desinfetar as compras e deixar os calçados na porta, imaginei os zeros do preço desses vindouros apartamentos que nenhum morador da região será capaz de bancar dançando até virarem estacas que esmurram o solo, trincam meu crânio e fazem a rua inteira tremer.
Quando a dor diminuiu, saí pela primeira vez em trinta e cinco dias. Não esperei o sinal abrir, não desviei de funcionários engravatados nem dos apressados rumo ao metrô. Pelos botecos de café-almoço-janta de portas fechadas, parecia que o bairro havia sido evacuado. Mas, naquele momento, os entregadores de aplicativo e eu ignorávamos o suposto toque de recolher. Ao entrar na farmácia à procura de um analgésico para dar fim ao resquício da obra, digo, da enxaqueca, me percebi como a única sem máscara. Na última vez em que havia posto os pés para fora, as pessoas tinham menos nojo de pele, apertavam as mãos, dividiam copo, colavam umas às outras no transporte público, seguravam na barra de proteção das escadas.
Pedi o remédio a mais de um metro do balcão. "Moça, compra um sabonete pra mim? Falaram que se eu não lavar as mãos, eu vou morrer", disse uma mulher, também sem máscara, que reconheci ser a senhora que dorme ao lado da banca de jornais desativada da quadra. Não tive tempo de responder, os farmacêuticos foram mais rápidos em pedir para que ela saísse de lá. Cheguei em casa decidida a arranjar um outro lugar para viver, um local menos árido, algum resquício do lado bom da realidade que até então conhecia.
Não soube o que procurar no site da imobiliária. O resultado da busca seria "endereço inexistente".
Pâmela Carbonari (São Paulo, SP)
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Pandora
Pânico, pandemia, pandemônio:
é o inimigo invisível, é o novo demônio,
é a face coberta por um pedaço de pano,
é o humano reaprendendo a ser humano.
É uma carreata de caixões pelas ruas de Turim,
é o translúcido azul do céu de Pequim.
É o papa rezando na São Pedro deserta,
são as águas transparentes dos canais de Veneza.
Parece que faz tanto tempo que tudo aconteceu,
presos no labirinto com Minotauro e Teseu.
Legiões de desempregados em Teerã, São Paulo, Paris.
As calçadas de Guayaquil estão cheias de cadáveres.
Estão pregando tapumes nas fachadas.
Todas as fronteiras foram fechadas.
Os médicos e coveiros estão exaustos.
Os jornais nem noticiam mais o holocausto.
São pilhas de corpos-números cobertos por um véu,
São poemas que jamais sairão do papel.
Mais Lidas
Os confinados batem panelas, invocam os magos,
pumas invadem as avenidas de Santiago.
É uma vida pulsando entre a pedra e a espada,
é o prenúncio de uma economia global robotizada.
São velórios e shoppings vazios, praias desertas,
é o começo de um renascimento, é o fim de uma era.
É o silêncio ensurdecedor e o medo de morrer,
é o tempo pra ler toda a obra de Shakespeare,
é a chance de ser o maior experimento
de controle social de todos os tempos.
É um exército branco higienizando as cidades,
é um planeta em quarentena por toda a eternidade.
É um homem que saiu do isolamento e nunca mais foi visto,
são fanáticos gritando O Vírus é o Anticristo.
São anjos em polvorosa sobre os céus de Berlim,
são amantes aprendendo a amar enfim.
Já ninguém ouve o que os agonizantes urram,
os metrôs voltaram hoje a circular em Wuhan.
É solidão compulsória, é um estado de sítio,
são coiotes vagando livres por San Francisco,
É uma flor desabrochando durante a tempestade
(pois quando tudo acabar talvez seja tarde).
É a solidão futurista da Times Square,
é o suicida alcançando um revólver.
São navios de cruzeiro proibidos de atracar,
são hospitais abarrotados em Milão, Rio, Dakar.
Pássaros continuam voando, geleiras caindo,
há um pôr do sol distante, solitário e lindo.
É viver entre as paredes dos parênteses
em reticências que se alongam como meses.
É o mundo inteiro em stand-by,
é o corpo lutando por ar.
Rodrigo Garcia Lopes (Florianópolis, SC)
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Não guardo luto pelo ano que 2020 poderia ter sido
Me sinto como se o fluxo do tempo tivesse me excluído. Não consigo nomear o que sinto; um tédio impaciente, como em uma fila enorme que se alonga a medida que as pessoas furam na minha frente.
Me sinto tão diferente de quem eu era antes da pandemia que não guardo luto pelo ano que 2020 poderia ter sido; guardo, apenas, talvez, por uma expectativa irreal ou outra da quarentena. Antes, era obcecada em tomar apenas decisões certas, como se estivesse girando uma roda para sortear um futuro dentre tantos possíveis, mas todos se foram. Só me restou o inevitável; do qual acho que teria fugido por mais alguns anos. Sinto-me libertada… e tentada a dizer que a libertação custou caro.
Ao mesmo tempo, sinto que só existi durante a pandemia. Parte de mim teme que, quando ela acabar, eu descubra que quem sou agora não tenha passado de um daqueles sonhos… você está abraçando alguém e, quando acorda de repente, leva um tempo para perceber que, na verdade, está sozinha em um cubículo improvisado.
Não sinto saudade, sinto um vazio. Ausência. De assuntos a puxar, de vontade de socializar… não por falta de afeto; mas redes sociais têm me deixado claustrofóbica. Odeio não saber como estão as pessoas que amo; até "como vai você" soa invasivo e meia-boca. Odeio não me fazer presente e temer que outros o façam; sempre considerei o ciúme um dos mais baixos sentimentos, mas é inevitável.
Odeio usar o verbo "odeio." Mas qualquer ideal ou propósito, qualquer surto de otimismo ou tentativa de alegrar a mim ou a outros me parece fútil, bobo. Tenho me confortado com o que precisa de mim, o que depende apenas da minha força de vontade. Tenho deixado para lá os desejos que ainda não podem ser realizados, mesmo sem conseguir ignorar o desejo de que houvesse algo a se fazer em relação a isso.
Mas não há. Então, como escrevi num poema baseado numa das minhas músicas favoritas, produzidas durante a pandemia: "Baby, agora e até tudo isso passar / poderei apenas sonhar com o que acontecerá quando você ver minha cara de novo."
Luana Minho Rabelo (Salvador, BA)
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Nós e os “clássicos”
[1]
Aqui em casa, em algum momento da quarentena decidimos que só assistiríamos a filmes clássicos. Foi um acordo extraoficial, mas sempre respeitado, assim como nossa definição específica de “clássico”: filmões hollywoodianos dos anos cinquenta, com margem de erro de alguns anos para mais ou para menos. Nada de Bergman e seus casais precursores do isolamento social, nada de cinema francês (de que minha esposa tanto gosta), nada de cinema japonês (de que eu tanto gosto). Só “clássicos”.
[2]
Nossa TV é pequena para os padrões atuais, mas isso me conforta. A proporção tela-ambiente me faz lembrar a pequena TV de tubo do meu quarto de adolescente, onde vi bons filmes. Além disso, as tentativas de reproduzir a experiência do cinema em casa me deprimem. Por melhores que sejam, os quase cinemas domésticos estão para o cinema-cinema como a piscina de ondas artificiais está para o mar.
[3]
17 de outubro. Assistimos Um bonde chamado desejo (me recuso a chamar o filme de Elia Kazan de Uma rua chamada pecado). Logo no início, uma cena me desconforta. Vivian Leigh, interpretando a esnobe Blanche DuBois, anda com pressa pelas ruas abarrotadas de New Orleans. Por um momento, a fumaça dos carros a encobre. Quando volta a aparecer, ela pede informação a um homem: “Well, they told me to take a streetcar named Desire…”
A cena soa acintosa para o recluso sentado no sofá. A rua pulsa. Corpos se esbarram. Vivien Leigh mostra o rosto despudoradamente (será o rosto o novo decote?). Há um pequeno flerte entre ela e o homem que lhe dá informação, também sem máscara.
Mesmo na TV minúscula, Vivien Leigh parece mais real do que as cabeças falantes – em 480p e com delay – de familiares e amigos próximos. E até o preto e branco, que criaria um distanciamento entre imagem e realidade, faz o corpo de Blanche parecer mais palpável do que os corpos que vejo sob a luz hospitalar dos corredores do supermercado.
Mas a cena não me remete a um passado perdido. Pelo contrário. Assisto ao “clássico” dos anos cinquenta como se assistisse a um filme de ficção científica. A cidade que vejo da janela todos os dias parece uma pacata cidade interiorana em comparação com a enfumaçada New Orleans de setenta anos atrás. O rosto à mostra de Vivien Leigh aponta para o futuro; é um ato de rebeldia. O flerte desinteressado com o desconhecido, um gesto vanguardista.
O filme segue. O jovem Marlon Brando se debate dentro da TV pequena como um animal selvagem. O jovem Marlon Brando parece querer sair da TV. O jovem Marlon Brando parece querer sair da TV e entrar na nossa sala. Sem máscara.
Pego no sono no meio do filme. Amanhã, mais um clássico.
Caique Zen (São Bernardo do Campo, SP)
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Tomei medidas para me reinventar
Assim que começou a ser divulgado os protocolos de isolamento e distanciamento social tomei algumas medidas para me reinventar e não entrar na onda de tédio. A primeira foi mudar da casa da cidade para a casa de praia. Nela tenho muita liberdade. Caminho a hora que quiser na areia da praia, no calçadão, pedalo bicicleta, faço atividade física ao ar livre, sempre que posso, e ainda tomo banho de mar. Aproveito para fazer uma boa reserva de vitamina D.
O dia uso escrevendo, porque sou escritora de histórias infantis, leio bastante e também contribuo orientando escritores independentes a realizarem o sonho de publicar um livro. Faço atendimento virtual. Sou responsável por uma publicação anual de um periódico de 115 anos que trata sobre a memória histórica e cultural da Bahia. Assim tenho algumas horas do dia reservadas para acompanhar o processamento dela. Realizo todas as minhas reuniões remotas a contento. Participo de lives, faço lançamento de livros e conto histórias. Tenho muita habilidade manual e uso para o meu devaneio e alimentar a minha criatividade, mas, sobretudo, para relaxar. A marca Linhoelinha é um trabalho que desenvolvo na produção de panos decorativos trabalhados em cambraia de linho e linha de alto estilo, neles teço uma arte sem igual! Faço bicos de crochê com estilo singular! Aprecio demais o bordado, estou sempre com um bastidor nas mãos! Este ano participei de um concurso e estou no catálogo de Mulheres Bordadas da Flipoços. Gosto muito de cozinhar e sempre vou à cozinha criar pratos novos!
Conto com a presença das filhas e das netas frequentemente em casa. E para elas sempre têm muitas novidades de lanches e de brincadeiras.
Aproveito ainda e realizo pequenas reformas em casa, cuido de meu jardim, que tem bastante flores e orquídeas. Sempre converso com todas elas, observando cuidadosamente para que as pragas não as consumam. Tenho um carinho especial pelos pássaros. Todos os dias, logo cedo, ofereço o alimento para eles. Essa é a forma que encontrei de agradecê-los por me presentearem o dia todo com uma sinfonia dos deuses… com cantos maravilhosos. Gosto de cuidar da alimentação, e por isso criei uma horta, e sempre que posso planto novas hortaliças e replanto outras. Não tenho tempo ocioso. Durmo cedo e cedo começo o meu dia! Recentemente li um livro e aprendi que para viver e ser feliz preciso de pouco e que o muito é sempre o que deixarei nas minhas realizações e nas boas ações. Estou no processo de ensaio da filosofia minimalista. Admiro todas as estações do ano, procuro encontrar em todas a poesia e a singularidade que lhe são peculiares, e assim eu me dedico ao dom da vida! Tenho tempo de admirar o sol se pôr e o nascer da lua cheia no infinito horizonte do mar…
Nadja Nunes (Camaçari, BA)
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FEVEREIRO, 2021