Viagem à roda de meu quarto,

Depoimentos sobre a quarentena: abril

Leitores enviam relatos sobre a experiência do isolamento

24jul2020

Gostaríamos de saber como você está enfrentando estes dias de isolamento. Envie o seu depoimento – a tribuna é livre e está aberta. 

Queremos saber o que passa pela sua cabeça nestes dias, quais estratégias você inventou para enfrentar a ansiedade e o tédio, um trecho de uma coisa bonita que você leu ou ouviu, que comida preparou para quem está ao seu lado, ou para você mesmo.

Envie o seu depoimento para [email protected] e nós o publicaremos (trecho ou completo) nas próximas edições da nossa newsletter, no site ou nas redes sociais da Quatro Cinco Um.

———

Chão perdido

E de repente o chão desaba sob os passos,
foge e revela o frágil esteio que o sustenta.
Suspenso, o tempo desafia o calendário.
Na corda bamba desafina a nota tensa.

E de repente o labirinto se contorce.
O invisível se apodera dos espaços.
Uma cratera engole em seco e nos devora
— no pesadelo o desatino joga o laço.

E de repente soa falso o alarme mudo
quando a sirene espalha o medo, o desatino,
retira o fôlego, afoga no deserto
e nos desterra, nos segrega, confundidos.

E de repente se repete a cantilena
— rasga e esfacela essa certeza imaginada.
Nada devolve o chão perdido, apenas resta
toda a ironia da ilusão desmantelada.

Flávia Queiroz (30/4/2020, Belo Horizonte, MG)

———

Relendo Borges na quarentena

Nessa minha quarentena estou lendo Jorge Luis Borges. Curiosamente neste mês de maio celebraremos 71 anos da publicação do "El Aleph". Pode ser uma boa constar uma menção nessa edição, não sei. O título do livro também é o nome de um dos 17 contos que ele trás. E na minha opinião "O Aleph" nem é o melhor conto. Prefiro "O Zahir", mas isso é pessoal.

É uma história é bem representativa do realismo mágico latino americano: aborda a desfelicidade do autor por ter visto uma vez o Zahir, descrita como uma moeda pequenina em tamanho, de poucos centavos, mas poderosamente atrativa. Após esse primeiro contato ele não consegue mais esquecê-la. Daí o nome Zahir. Palavra que na tradição corânica descreve as "pessoas ou coisas que têm o dom de serem impossíveis de se tirar da memória"

O narrador tampouco dá maiores detalhes sobre por que se encantou por uma moedinha… Sabemos que ela é muito bonita, que é pequenina em tamanho, exótica. O narrador, que é o Borges mesmo, passa a se comportar como estando "enfeitiçado", evocando a frequente lembrança do miúdo objeto. E o faz com uma dedicação quase platônica. É francamente uma excentricidade…

Mas você vê que o autor é bom quando ele parte de um fato bem banal, sem qualquer qualidade literária aparente (aceitar uma moeda de troco num balcão), e constrói em torno uma fábula profundamente psicológica, repleta de poder e carga poética. Há momentos em que sentimos uma tal empatia com o narrador que nos pegamos a imaginar conselhos que daríamos, se isso fosse possível: 

— "Olha Borges, eu te aconselho a esquecer essa moedinha. Ela não vale nada." Ou:

— "Perdes o teu tempo a pensar nela. Ademais, já deve estar na mão de outro." Ou ainda:

— "Acabarás encontrando outra, tem várias dessas por aí"

A história toma um rumo insólito. O narrador persevera desenganado, retornando sempre seu pensamento para o Zahir. A gente até torce pelo narrador, mas termina não rolando nada: o miúdo objeto o despreza miseravelmente.    

Não posso deixar de lembrar que logo no início é introduzida a personagem de Teodolina Villar, filha da sociedade bonaerense. E conforme se depreende, um antigo crush do autor. Ele faz questão de assinalar que o tempo a envelheceu e que sua pele perdeu o viço. Extrai disso uma pequena satisfação que lhe serve de consolo. Seriam Teodolina e o Zahir diferentes faces da mesma moeda? Cara e "Coroa"?

Ao final do conto prevê que o Zahir seguirá o seu desígnio, passando de mão em mão, enfeitiçando cada vez mais pessoas até o dia em que todos terão sucumbido ao seu encantamento. Conclui que um dia todos na Terra pensarão no Zahir, e o fetiche evocado pela moeda será algo indistinto do real: "quando todas as pessoas estiverem pensando na moeda, qual será o sonho e qual será a realidade, a Terra ou o Zahir?"

O relato é permeado por várias referências eruditas da História e da literatura mundiais. Elas são típicas do autodidatismo do autor e terminam conferindo um ar de legitimidade ao fantástico relato. Ficamos sabendo que a crença no Zahir conta com elementos pré-islâmicos cujas origens não se determina, mas que já aparece documentada em livros do século 18. Em outra passagem compara ao Zahir a moeda de ouro que Ahab prometeu ao primeiro marinheiro que avistasse a baleia Moby Dick; mais adiante remete à Ulysses, naquele trecho em que Leopold Bloom marca um florim com três entalhes antes de gastá-lo a fim de ver se vai voltar pra ele…  

Bom, é isso. Não era para ter me estendido. Desculpe-me quem for ler, mas…. é a quarentena

Humberto Almeida de la Serna (30/4/2020, São Paulo, SP)

———

A sombra se foi

A sombra chegou e disse que a luz era fraca. A sombra enfraqueceu. E a luz ficou mais forte, mas a sombra então reapareceu. É uma assombração? Só há luz em sombra quando o medo vê sombra. Mesmo em sombra, seja luz sem medo, pois ela é você. E a sombra se foi.

Jana Macedo (28/4/2020, Florianópolis, SC)

———

O renascimento da cidade

No final da década de 1970, o sociólogo Carlos Nelson Ferreira dos Santos desenvolveu um trabalho na favela do Catumbi, no Rio de Janeiro, que se tornou um dos marcos do pensamento urbano no Brasil. Esse trabalho foi publicado com o nome “Quando a rua vira casa”. Em comparação ao projeto de urbanização modernista do Selva de Pedras (conjunto habitacional no Leblon), Carlos Nelson mostrou que o uso dos espaços coletivos no Catumbi era um aspecto intrínseco à vitalidade daquele lugar e à construção de laços comunitários.

Essa ideia acompanhou o debate urbano por muitas décadas: a cidade precisa de pessoas, as pessoas precisam da cidade. Esquinas, encontros fortuitos, caminhadas, atividades distintas disputando o espaço das calçadas, a avenida Paulista num domingo, mesmo nublado. A casa, por outro lado, é o espaço da intimidade, do privado, da família. Na época dos estudos no Catumbi, Carlos Nelson observou que a rua virava casa, pois borrava esses limites. Os vizinhos colocavam cadeiras na calçada para conversar e ali também faziam várias atividades de lazer. O espaço público é para todos.

Contra minhas melhores expectativas, vi nas últimas semanas que o colapso do sistema é antiurbano. Evitamos a cidade para evitar nos encontrar, para preservar a vida humana, e acabamos por preservar também a cidade. Evitando a vida pública, pudemos olhar de longe outras coisas que estavam mal e só não levaram ao colapso antes porque os interesses econômicos eram mais fortes. De longe, olhando o vazio, percebemos que o tempo não estava dando conta, e muito menos a cidade. Céu limpo em São Paulo, água transparente nos canais de Veneza: falhamos com a cidade e não mudamos, precisamos uma doença para pararmos.

É longe dos outros que a casa agora vira rua, com direito à áudio viralizado no whatsapp sobre reuniões na varanda e happy hour na cozinha. É da sala que fazemos chamadas para ver os amigos e a família que ficou lá, do outro lado da cidade, lá onde a janela não alcança. É na porta ao lado que oferecemos ajuda aos vizinhos idosos ou com crianças (quem mais está vulnerável?). Encontramos tempo para sentir tédio, a falta da cidade que pulsa. Os espaços vazios das praças preenchemos com nossas mesas de jantar, para tentar, mesmo fora da rua, manter alguma urbanidade.

Luísa Gonçalves (28/4/2020, São Paulo, SP)

———

Medo, angústia e sensação de inutilidade

Hoje completo 42 dias de isolamento social. Nem ao supermercado estou indo, tarefa que é realizada pelo meu marido. Moramos nós dois, minha filha de 2 anos e meio e o cachorro em uma cidadezinha universitária no estado de Michigan.

Somos imigrantes brasileiros nos Estados Unidos há 5 anos completos e, para ser sincera, a vida de quem deixa seu país já é por si só bem solitária e monótona. Por isso estamos acostumados a encontrar a família e os amigos mais queridos uma vez por ano somente.

Mesmo assim, o que estamos passando é bem diferente. Além do isolamento físico de outras pessoas, do trabalho remoto e da falta do que fazer — já que tudo está fechado –, tem o medo, a angústia e a constante sensação de inutilidade. O que podemos fazer para isso passar mais rápido? 

Tenho passado horas pensando na vida, revendo minhas escolhas, pesando vantagens e lembrando de dias mais coloridos. Converso por vídeo com meus pais, irmãos e amigos e tenho um verdadeiro pavor de não encontrá-los nunca mais, de não poder mais sentir o abraço e o carinho de quem tanto amo.

E vamos existindo nesses dias que são todos iguais. Como se tivéssemos ficado presos eternamente em um domingo tedioso no meio do inverno. Mas vai passar, não vai? Aaah!!! Um dia vai…

Eloisa Torres (28/4/2020, Ann Arbor, Michigan, Estados Unidos) 

———

O sol da tarde

Muito se tem falado sobre o tanto que a gente pode aprender durante a quarentena, já que sobra tempo livre. Sobram também cursos e palestras online. Meus amigos se divertem aprendendo novas línguas com aplicativos de celular. Minha mãe mergulhou na sua longa lista de livros, começando por nada menos que Dom Quixote. Mas o que eu tenho aprendido na quarentena é que horas e em qual parte do quarto o sol da tarde bate. Quantos dias leva para todas as folhas de uma árvore aparecerem depois que a primeira dá as caras, agora que a primavera chega no hemisfério norte. Qual horário o vizinho, que tem um jardim de dar inveja, costuma ler o jornal. É como se aquilo que se passa nas nossas casas não esperasse ser observado durante o dia, durante a semana. A quarentena sempre esteve aqui entre essas quatro paredes, mas agora ela foi invadida por nós. Enquanto o sol, tão raro em terras londrinas, continuar se fazendo presente lá fora, acho que vai ficar tudo bem. 

Mariana Schiller (27/4/2020, Londres, Reino Unido)

———

Carta aberta a Mary Shelley

Na quarta-feira passada terminei a leitura de O Último Homem, romance, com pitadas de ficção científica, de Mary Shelley (autora também de Frankenstein), e decidi escrever uma carta aberta à autora.

Cara Mary Shelley,

O ano é 2020 e não temos de enfrentar a pestilência que você imaginou para que o personagem Lionel Verney se tornasse o último homem. Não é, felizmente, o ar que propaga a doença que nos atinge.

Você ficaria impressionada com os avanços científicos obtidos desde seu extinto século 19. Sei que a medicina te interessa. Saiba que já fazemos os mais complexos transplantes, mapeamento genético e até, veja só, cirurgias com finalidade estética. Você não imaginou tudo isso para seu ano de 2092 e fico meio sem graça de te contar que já em 2020 não usamos mais balões, viajamos sim pelos ares, ganhamos em velocidade, aceitando perder em poesia.

O vírus que nos obriga a manter um distanciamento social pode ser controlado. A coisa já foi provada na China. Já ia me esquecendo de alertá-la, não dê ouvidos a quem insistir em chamar a causa de nosso mal de vírus chinês. As nações, envergonhadas de seu despreparo, aproveitam da pandemia para acirrar fronteiras e demonstrar suas posições racistas, os ouvidos do mundo não saberiam ser terrenos mais férteis do que neste momento.

O coronavírus pode ser controlado, mas não nos organizamos.

Em seu romance, um belíssimo texto, ouso dizer, você discorre sobre a propensão humana a se entregar a falhas morais ao lidar com a morte iminente; temos sofrido da maior frouxidão moral possível: não nos importamos. E nossos líderes, espelhos potencializados de nossos discursos egoístas, empurram a massa ao precipício.

O coronavírus pode ser controlado, mas fazemos como se ele não fosse.

Muitos nos recomendam a criação de um apego às notícias positivas, ao número crescente de pessoas curadas; como se a cura de cem pessoas pudesse compensar a morte de uma. A alegria em face ao número de curados não deveria diminuir nossa perplexidade diante do número de mortos. A alegria se tornou coisa acanhada e muitos são tidos como pessimistas.

De maneira geral, ainda se pensa que o otimismo é o único catalizador de nossas energias, a matéria prima que nos faria avançar, mas pelo o que tenho visto, apenas o alarde poderia nos levar à uma postura preventiva e até de cuidado. Sim, ao contrário da peste descrita em seu romance, os pacientes testados positivos para o coronavírus têm a chance de resistir à doença através da ajuda de respiradores. No começo do século 20, encontramos uma soluçao para tratar insuficiências respiratórias severas, um aparelho de respiração artificial através de insuflação. Uma pequena máquina que comporta um motor elétrico que, por intermédio de bielas, levanta ou abaixa a pressão em uma câmera impermeável onde fica um balão. Dois tubos separados por um tubo em Y, munido de uma válvula, fazem a ligação entre o paciente e o respirador. Conto com sua perspicácia mais do que com minhas limitadas capacidades em bio-engenharia para construir a ideia do que é essa pequena máquina hoje, com a tecnologia de um século depois. Cabe aos pacientes do mundo todo tentar sobreviver à escassez de leitos e de respiradores disponíveis.

Não tem como falar em extinção da raça humana, não haverá um último homem, eu não serei essa figura da derradeira resistência, e nem poderia ser, hipocondríaca e asmática, esvaziada da despreocupada energia da juventude (tudo foi gasto nos anos que vivi em Paris), seria incapaz de guiar um grupo de sobreviventes. Devo admitir que já não consigo convencer nem as pessoas sãs que me rodeiam da necessidade que temos que elas fiquem em casa para retardar ao máximo a propagação do vírus.

Pandemia. Você acertou, nunca fomos tão globalizados. E, como em seu livro, a doença começou pelo Oriente. Fizemos como seus personagens, consideramos o risco muito distante de nós. Geograficamente. E também culturalmente. Não tivemos o menor problema em criticar o consumo de carne de animais silvestres na China, não nos ocupamos em dar destaque à tragédia causada pela pandemia na população do Irã. Os que adoeciam, os que morriam, os que não tinham mais direito de sair de casa eram diferentes demais de nós para que nos importássemos.

Não é novo como ideia, sem identificação é esperado que não nos importemos. Só que a Itália foi atingida, a doença foi mais rápida que nossas reações de surpresa. A Espanha e os Estados Unidos também foram pegos de calças curtas. Sentimos então que a questão também era nossa, pessoas de modelos políticos e econômicos que cultuamos eram infectadas. Mas agora que a doença começa a ameaçar os mais pobres nos países em desenvolvimento em que muitos de nós vivemos, percebo que ainda julgamos quem vai morrer como muito diferente de nós para que nos importemos.

Eu gostei muito de sua ideia de que a Inglaterra de 2092 seria governada por um Lord Protetor. Te aconselharia apenas a achar um outro nome para o posto, a tomar mais cuidado com tudo que possa parecer religioso demais. É com pena que digo que o Primeiro Ministro, Boris Johnson, não se parece em nada com seu personagem Adrien, Conde de Windsor — muito embora a figura de salvadores da pátria esteja em moda no mundo todo neste nosso ano de 2020.

Nossos trópicos mergulhados na melancolia, nos falta, no Brasil, uma liderança que possa se apoiar em dados científicos capazes de nos salvar. Infectologistas dizem que sofreremos tanto quanto a India e alguns países da Africa se continuarmos flexíveis em relação ao isolamento social. Faltará tratamento até para os mais ricos. Não conseguimos nos projetar e prever o horror, o que nos torna bem pouco reativos. Todos os dias tem nos sido cobrado a não-reação de ontem.

Arrisco o palpite de que você também não lide muito bem com a morte. Me desculpe, estou pensando em seu maior sucesso, Frankenstein. Não te conheço muito bem, mas eu li sua obra mais conhecida e tem nela um bom retalho de inanimados membros humanos que reganham vida. É coisa bastante normal, nossa natureza – podemos chamar de natureza algo tão falso? – é de acreditar na imortalidade. Estou sendo simplista? É provável que sim, porque não há dúvida de que você conceba a existência do horror e por isto talvez seja mais conciliada com a morte do que nós.

Mary, a variedade tem diminuído, mas ainda pensamos coisas diferentes. Esta minha carta, por exemplo, se escrita pela minha irmã mais velha, seria diferente no conteúdo e, se redigida pela minha irmã mais nova, seria parecida no conteúdo, mas certamente diferente na forma. Então eu faço um mea culpa, coisa que costumo considerar covarde, e digo que aqui estão opiniões minhas que considero muito corretas e próximas de uma ética que deveria nos governar de forma geral. Tenho em meu favor, e não sou a única, um discurso de defesa à vida que acho bem estranho que não comova as bancadas cristãs do governo brasileiro, sempre tão contrárias ao aborto. Parece-me o tempo todo que estamos escolhendo quem vai morrer. Eu poderia certamente fazer mais do que tenho feito, mas minha confiança é tão pequena que acho mais fácil ser lida por uma autora já falecida do que ouvida por boa parte de minha própria família.

É com um tanto de vergonha que faço o relato de uma doença menos grave que a imaginada por você em seu romance e que já causa no mundo parte do que em sua obra eram estragos fictícios. Em resposta, gostaria de ter sua opinião sobre tais informações e, se não for pedir muito, talvez um conto ou até mesmo um romance sobre nosso ano de 2020.

Cordialmente,

Aline Oliveira (27/4/2020, Cruzeiro, SP)

———

Quanta vida ao meu redor

Eu aqui,
luz do sol 
nas orquídeas amarelas e roxas.
E a luz não é comum: é a luz do esperado outono.
Quanta saudade neste
mesmo céu de cromagno a Platão até
nosso último fascista.
Quanta esperança, amor e ódio nos une
nesta jornada
chamada humanidade.

Do que a mente é capaz

Hoje é feriado,
Vamos descansar,
Correr para curtir
E namorar.

A vida, como ela é
A orquídea 
Mineira,
A serra,
A brincadeira.

De tudo o que a mente
é capaz
De produzir
exagerar
De construir
Minimizar

De tudo o que 
A terra traz,
A guerra, arte,
A paz..

Do que a mente é
Capaz,
De inventar 
Problemas,
Maquetes, estantes,
Soluções, poemas,

Do que a gente
Refaz,
Amores, manhãs,
Tardes, noites,
Dilemas
Em traços, pinturas
Pensamentos
Geniais

Hoje é feriado,
Vamos descansar,
Correr para curtir
E namorar

A vida, como ela é
A orquídea 
Mineira,
A serra,
A brincadeira.

Airton T. Bovo (21/4/2020, São Paulo, SP

———

O que se passa por dentro das casas?

o pão, o azeite, o trago do cigarro
arrumamos a mesa
enfeitamos o dia
com as janelas abertas, não há boemia

os carteiros trazem as cartas
as plantas colorem o dia.
e a necessária verdade traz o que dói.

trancados, distantes e sozinhos
um cenário apocalíptico
os olhos já não veem as ruas da forma que viam antes

as mãos já não se tocam, como se tocavam
os lábios não se beijam da mesma forma
parece que tudo que construímos para nos aproximar
sumiu, dando lugar a um vasto abismo.

o que se passa por dentro das casas?
o que se pulsa por dentro das vidas?
nos olharemos da mesma forma?
cuidaremos da mesma ferida?
seremos enfim uma nação, ou uma pátria perdida?

Eduardo Vasconcelos (21/4/2020, Mossoró, RN) 

———

Um poema

sem futuro

sobra o presente

momento perene, semi estático

dissipa planos, prazos e pálido

o amanhecer

igual ao outro, sucessivo

até que o baque latente no idílio

descortina a rotina, reprise

inconsolável sobre o palco

as 4 paredes impenetráveis

o quarto.

Macauley Dominguez (19/4/2020, Volta Redonda, RJ)

———

Onde me encontro no tempo

Teve um dia em que senti uma coisa boa. Eu havia dormido com a janela meio aberta, entrava um pouco de claridade — à noite, luzes de postes; no alvorecer, a luz débil da manhã. Acordei sozinha, sem despertador, e olhei para a parede que se opunha a mim. Vi a sombra da persiana, um recorte daquelas tirinhas na horizontal, e algo me inundou de serenidade.

Mirei a cama e percebi que a sombra também se estendia sobre ela, ao meu lado. Deixei meu braço receber aquela impressão e me conectei profundamente à imagem, imagino que por sempre achar bonitos esses jogos de luz e sombra em fotografias. A sensação era a de um abraço acolhedor.

Na manhã seguinte, a mesma luz chegou no mesmo horário. Nas duas ocasiões, eu estava entre a vigília e o sono, e os minutos pareciam se expandir. Fiquei com isso na cabeça: “será que a luz vai me despertar a cada novo hoje?”, pensei.

Ela de fato vem, mas só me encontra quando o acaso permite. E eu, que já não sei mais dizer onde me encontro no tempo, tenho desejado que, entre tantos mergulhos interiores que se justapõem à dura realidade lá fora, o isolamento guarde um tantinho dessa luz e projete ela adiante.

Victoria Netto (18/4/2020, Porto Alegre, RS)

———

Quando tudo passar

Quando tudo isso passar
Será esse o primeiro lugar ao qual retornarei.

Melhor seria se eu pudesse ir amanhã mesmo
Ou enquanto ainda é outono e as folhas jazem placidamente
Alfombras encarnadas
Recendendo sob os nossos pés

Sabeis dizer por que as folhas caem das árvores?
Quando o sol é minguado, os dias exíguos
Insuficientes para nutrir a coma
Desprender-se dos galhos é um sacrifício
Necessário para permitir que a árvore tenha forças para suportar o inverno

Mas que angústia seria
Querermos romper com esse inexorável ciclo da vida
E não falarei em morte,
Pois as entranhas da terra nos acolherão,
E passaremos a existir de outra forma

Do que eu falava mesmo?
Ah, sim!
Quando isso tudo passar…
O céu há de ser mais azul;
O sol há de ser mais brilhante;
E a lua argenteando o céu
Entre as nuvens flutuantes

O trinado dos pássaros
Escutar-se-á ao longe
E nem mesmo a folha orvalhada
Far-se-á olvidada

Será o advento da primavera?
Ou o sepulcro invernal que a fizeram tão belas?
Elas? A vida, a morte, a existência.

Quando tudo isso passar…
E nós, menos apáticos
Mais hiperestésicos
Entenderemos que “isso” não é passageiro,
Mas perpétuo.

Arielma Guedes (17/4/2020, Salvador, BA)

———

Saudades do mundo lá fora

Ruas vazias, comércio fechado, praias e parques interditados. Os setores do turismo e da aviação certamente estão entre os mais afetados pela pandemia. Voos cancelados, viagens adiadas, fronteiras fechadas. Mais parece um cenário distópico de um futuro distante retirado de algum livro ou filme de ficção científica. Mas não, é real. Está acontecendo aqui, agora, no Brasil, no mundo.
Creio que em tempos assim — de angústias, incertezas, medo do desconhecido –, o jornalismo, mais do que nunca, se faz tão importante para a sociedade como um todo. Filtrar e entregar às pessoas informações de qualidade, verdadeiras. Expor o que é fato e o que é fake. Vivemos na era da informação, da tecnologia; mas também rodeados por um mar de fake news, onde essas se
espalham rapidamente e com facilidade. Os telejornais, por exemplo, têm tido um aumento expressivo de audiência. Fica evidente que há essa necessidade por parte da população, de entender o que realmente está acontecendo, quais as proporções e os impactos causados pelo novo coronavírus.

Sim, é chato o isolamento social, porém necessário. Sua eficácia já foi comprovada cientificamente, inclusive, mas alguns líderes mundiais parecem não entender bem esse fato. Ou fingem ignorá-lo? Aliás, não concordo muito com o termo “isolamento social”, acho estranho, equivocado. Prefiro “afastamento social”. Estamos nos resguardando e distantes fisicamente, mas conectados. Veja bem, a tecnologia entra em cena para somar, a internet para nos unir. Essas inúmeras lives que temos visto nas diversas mídias sociais e
conteúdos online estão aí para comprovar isso. 

Sinto saudades do mundo lá fora. Saudades dos rolês de skate às quintas-feiras à noite, após o trabalho. Saudades de encontrar meus amigos pra tomarmos aquela cerveja gelada — que é de lei — enquanto damos boas risadas e ouvimos o bom e velho rock ‘n’ roll. Saudades de reunir a galera para as expedições de surfe rumo ao litoral norte de São Paulo. De ir à caça das melhores ondas. Tenho o maior apreço, sentimento especial por estas quatro praias: Indaiá, Riviera de São Lourenço, Baleia e Maresias. Ah, eu daria tudo pra ir agora mesmo, meter o pé na estrada e pegar um fim de tarde clássico em qualquer uma delas, com ondas perfeitas, vento terral e aquele pôr do sol dourado ao fundo. Feel the vibe, this is real life, bro! Descalço, em direção à natureza, sentir o ar puro, as diferentes texturas e cheiros que só ela nos proporciona. Isso não tem preço.

Durante a quarentena, estou procurando equilibrar minha rotina. Dedico um tempo para o trabalho, para acompanhar as notícias e me manter atualizado, depois um tempo para fazer algumas coisas que me dão prazer e ajudam a driblar o tédio: cozinhar algo gostoso, por exemplo, testar receitas novas, assistir filmes e séries, fazer cursos online, me exercitar — afinal, é importante cuidar da saúde física e mental. Estou passando mais tempo com meus animais. Tenho duas gatas da raça maine coon que são as coisas mais lindas
e um labrador, com um coração do tamanho do mundo; nos divertem com suas brincadeiras e alegram o ambiente.

Aproveitando também para tirar a poeira de livros que até então estavam encostados na estante do meu quarto e assim, colocar as leituras em dia. Terminei ontem Tempos extremos, da jornalista Míriam Leitão. Livro interessante em que ela faz um resgate histórico sobre o passado sombrio do Brasil, fala sobre a ditadura militar e o período da escravidão. Li Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago; achei pertinente por conta do atual cenário em que estamos vivendo. Agora, me debruço em livros que me despertam
bastante interesse e curiosidade, livros voltados para ficção científica. Acabo de ler As cavernas de aço, um romance policial do aclamado escritor Isaac Asimov, e o próximo da minha lista é O homem do castelo alto, de Philip Dick, que traz uma visão assombrosa da história que poderia ter se tornado real caso a Alemanha nazista e o Japão tivessem ganhado a Segunda Guerra Mundial.

E assim tenho passado meus dias em casa. Dias de maior introspecção, nostalgia e autoconhecimento. É importante sabermos apreciar nossa própria companhia. Por fim, quero propor a você, que está lendo este texto, uma reflexão: que mundo você gostaria de deixar para as próximas gerações? Eu, com certeza, gostaria de deixar um mundo muito melhor do que esse. Idealizo um mundo em que seres humanos e natureza convivam em sintonia, harmonia. Devemos repensar nossos hábitos: reciclar mais, desperdiçar menos, reutilizar, ter consciência ambiental. Um mundo onde as crianças não tenham que sair de suas casas com máscaras por causa de poluição ou com medo de serem infectadas. Que a pandemia sirva de lição e que possamos sair dessa quarentena dando mais valor a um simples abraço, aperto de mão, ao estar junto. Repensar como nos relacionamos uns com os outros enquanto pessoas, sociedade, com mais senso de coletivo. Por hora, o que me resta é ter paciência, torcer e esperar que tudo isso passe e que dias melhores virão.

Henrique Alonso Dolezar (15/4/2020, São Bernardo do Campo, SP)

———

Seis propostas para o fim do mundo

O título é óbvia homenagem ao grande autor italiano (nascido em Cuba) Italo Calvino (1923-1985), que escreveu as Seis propostas para o próximo milênio, publicadas postumamente em 1988. Imagine-se o que diria hoje, ante a sua bela Itália devastada pelo coronavírus… Calvino bem que poderia ter assistido não só a uma passagem de século, mas a uma virada de milênio – privilégio de poucos na humanidade, desde que se estabeleceu a convenção do nosso calendário. Junte-se a esses dois momentos, o que agora se vive, com o mundo inteiro paralisado pela covid-19, como se um terremoto gigante sacudisse todo o planeta, um monstruoso tsunâmi não deixasse a seco um palmo de terra nos cinco continentes. Triste privilégio sofrê-lo, sim, mas de valor histórico, porque incomum no passado da espécie humana. Lembra-me um conterrâneo cearense que dizia: “Quando o mundo se acabar, vou para a serra de Maranguape…”, onde nasceu Chico Anysio. Com a pandemia, inútil ir a Maranguape: “Minas não há mais”, como disse Drummond no poema “José”.

Aos milhões de brasileiros isolados em casa, o melhor que lhes posso sugerir é a leitura de livros novos ou daqueles aos quais voltamos. Note-se que não falo em “releitura”, porque jamais “relemos” um livro, mas o lemos outras vezes, quantas venham a ser ao longo da vida. Se “nunca dois leitores leram o mesmo livro”, como escreveu o crítico Edmund Wilson, pode-se também dizer que de um livro jamais se farão leituras idênticas, embora pela mesma pessoa. Os livros, claro, continuam os mesmos: somos nós que mudamos, com a experiência, o saber, a visão diversa dos homens e das coisas que ganhamos com o passar do tempo. De maneira que não há “releituras”, mas “outras” leituras, “novas” leituras, em que se revivem o prazer das descobertas e a emoção com que nos deixamos conduzir, elevar, engrandecer pela arte.

Graças ao “distanciamento social” destas últimas semanas, leio pela terceira vez Grande sertão: veredas, a obra-prima de Guimarães Rosa, para mim o romance maior da literatura brasileira em todos os tempos, aquele que levaria para a famosa “ilha deserta”. Impressionam as falas, ideias, símbolos, sugestões rosianas que só agora percebo, como se nunca antes houvesse lido a história. Assim também com Quincas Borba, de Machado de Assis, cujas leituras já não conto, por elegê-lo à frente de Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Projeto de nova leitura a longo prazo é a monumental trilogia O tempo e o vento, de Erico Verissimo, capaz de fazer, sozinha, a grandeza de qualquer literatura. Segundo Josué Montello, os escritores dividem-se entre os que “contam” histórias e os que “escrevem” histórias. Acompanhado pelo gaúcho Verissimo, ele mesmo pertence aos dois grupos, como autor da admirável trilogia maranhense composta pelos romances Cais da Sagração, Os tambores de São Luís e Noite sobre Alcântara.

Aficionado por biografias, li recentemente duas. O homem que aprendeu o Brasil, de Ana Cecilia Impellizieri Martins, é justa homenagem que se presta a Paulo Rónai, intelectual húngaro que engrandece e dignifica a literatura brasileira. Em Lima Barreto: triste visionário, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz apresenta a vida e a obra do romancista de Policarpo Quaresma, do contista de “O homem que sabia javanês”, do memorialista do Diário íntimo, a quem não se deu em vida o reconhecimento merecido com que hoje se inclui entre os grandes valores da nossa ficção.  

Somem-se as obras citadas e veremos que o título em homenagem a Calvino é duplamente enganoso: as propostas são mais de seis, e o “fim do mundo”, queira Deus, não acontecerá tão cedo. Jornalista, se sobrevivesse sozinho à hecatombe derradeira, bem que eu gostaria de contar a história, mas para quem?

Edmílson Caminha (14/4/2020, Brasília, DF)

———

Tempos de tropeços

Para evitar a angústia que circula incessantemente ao meu redor, evito dar nome aos tempos que vivemos. Descuidadamente, tropeço ao me lembrar que há um vírus lá fora. De todos os desafios que vivo, aprender a conviver com o caos é o que mais consome meus dias. Intencionalmente, tropeço numa enxurrada de notícias.

Meu coração inquieto faz com eu me disponha a tentativas frustradas de produzir algo. Um texto, um conto, um poema, uma pintura. Me atrevo a cantar, dançar, desenhar. Após horas, descanso sobre a cama, com um pensamento fixo em minha mente: não sou suficientemente boa para nada disso. Sou incapaz de criar algo que faça sentido (para mim ou para o outro) neste novo mundo que surgiu há poucas semanas. Sonolenta, tropeço ao perceber que não sei o que fazer com o tempo que transborda.

Decido fazer algo. Crio esboços com desinteresse, escrevo linhas sem sentido, assisto a vídeos sem conteúdo. Acompanho as notícias, números e gráficos que revelam o medo, o caos e a morte evidente, batendo na minha tela, na minha porta. Diariamente. Faz algumas semanas que vivo em uma eterna briga contra o tempo. O problema é que justamente agora que o tempo me sobra me falta a capacidade de sentir algo realmente bom e útil ao outro. Me deparo com a escassez, não sou capaz de encontrar em mim algo que possa servir de acalento para aquele que se esconde entre paredes, trancafiado entre janelas e portas.

Acho que de tanto me fechar para evitar o contágio, passei a não me contaminar mais com a sensibilidade, com a leveza da vida. Procuro dentro de mim algo que possa oferecer aqueles que assim como eu, se protegem com luvas e máscaras, e medo. Tropeço violentamente no vazio do meu ser. Nada pode ser criado, não há sinais de arte aqui dentro.

Com o passar do tempo me rendo a sensação de esperança. Me permito viver um dia novo, entre velhas paredes. Me empenho na missão de cuidadosamente separar o caos que circula lá fora, do caos que habita aqui dentro. Inevitavelmente tropeço nesta bagunça. Me irrito, embora saiba que antes destes tempos estranhos chegarem, o caos já estava presente.

Confortavelmente tropeço no cinismo. Cansada de tamanha oscilação, permito me conformar com aquilo que sempre detestei: o conformismo. Preciso aprender a viver com o perigo evidente de não estar mais presente na vida lá fora e de não encontrar (com frequência) vida aqui dentro. Confio que dias melhores virão e entre portas e janelas, tropeço novamente em algo que evito dar nome: tempos de isolamento. Me frustra perceber que foi em vão tentar evitar a angústia.

Geizi Carla dos Santos (13/4/2020, Dublin, Irlanda)

———

A casa agora é o mundo

O sol já não nasce ou se põe. As horas ou frações do dia já não parecem importantes. Não sei ao certo, confesso, há quanto tempo estou quarentenado. Talvez a razão do meu esquecimento seja justamente o abalo na noção de tempo neste ínterim entre aquilo que conhecíamos como “vida normal” e o hoje.

Ao meu redor, os sons do cotidiano já não sãos mais os mesmos. Ouço menos motores, menos buzinas, passos, gritarias e vozes que tentavam, por vezes inutilmente, estabelecer uma comunicação elementar. Ouço mais os latidos do cachorro do vizinho, as folhas das árvores farfalhando no quintal ao lado, o som das lives que se proliferam no andar de cima, o estalar de uma lata de cerveja que se abre na cozinha e a voz da minha mãe que se impõe e ecoa por toda a casa.

A casa, aliás, agora é o mundo. É isso, o mundo, o velho e agonizante mundo, reduziu-se aos poucos metros quadrados de uma habitação para duas pessoas. Mas, paradoxalmente, passamos agora mais tempo onde o mundo é mais vasto: a internet. O que aprendemos com isso? Não faço ideia. Por hora, vou escrevendo, lendo e ouvindo, ainda não aprendi outra forma de viver no novo mundo, da porta para dentro, ou no velho mundo, da porta para fora.

Pedro Del Mar (11/4/2020, Jacobina, BA)

———

Uma intrusão furiosa do mundo exterior em nossas vidas

Se não fizer mais nada, a pandemia de covid-19 oferece uma oportunidade para uma reflexão sóbria sobre a tensão entre o raciocínio científico e a irracionalidade humana. 

No entanto, apesar dos alertas claros dos riscos de contágio e da necessidade de manter a distância social, fomos confrontados com cenas de um presidente passeando nas ruas em comitiva, abraçando o povo, tirando selfies e conclamado o retorno ao trabalho (e ao culto). Pessoas aplaudiam aos gritos de "mito". Nas ruas e nas midias sociais.

Na verdade, o comportamento irracional de seus apoiadores não é tão difícil de entender. A simples verdade é que criamos para nós mesmos um mundo muito mais complexo do que qualquer mente humana individual jamais poderia imaginar. Inventamos estruturas sociais extraordinárias para nos ajudar a ganhar a vida, cuidar de nós, proteger-nos dos danos e gerenciar o comércio entre nós em um mundo cada vez mais conectado.

Em tempos normais, mantemos nossa sanidade mental lidando diariamente com as coisas que acontecem dentro de nossos limites pessoais e prestamos o mínimo de atenção possível ao que está acontecendo lá fora, o que acreditamos que não podemos realmente influenciar ou controlar. Mas não podemos impedir a invasão do mundo exterior, forçando-nos a tomar decisões que afetarão nossas vidas e a vida de potencialmente muitos outros. Como uma intrusão furiosa do mundo exterior em nossas vidas pessoais, essa pandemia é exemplar.

Quando se trata de decisões importantes sobre aspectos da ciência e da tecnologia, a maioria de nós não tem conhecimento nem experiência para julgar. Exacerbamos uma situação já difícil, recorrendo ao bom senso. E isso é um problema.

Tudo bem, mas existe a ciência, baseada na lógica fria e rígida dos especialistas em jalecos brancos, treinados no método científico. Todos nós podemos relaxar. Podemos estar propensos a crises de estupidez abjeta, mas os cientistas certamente nos salvarão de nós mesmos.

Entender que as instituições científicas podem ter falhas e às vezes podem errar não deve prejudicar nossa confiança na ciência, pois as instituições também empregam mecanismos para corrigir erros. Devemos, no entanto, ser céticos em relação aos motivos dos políticos, mesmo quando declaram a intenção de "salvar a economia". Nossa resposta deve ser exigir maior transparência. O acesso total aos fatos, à lógica e ao raciocínio por trás do que nos pedem para fazer não deve esperar pela investigação pública que inevitavelmente ocorrerá.

Nunca eliminaremos a tendência humana à irracionalidade, mas podemos tornar muito mais fácil sermos racionais quando damos voz ao bom senso e à alguma noção de humanidade.

Renee Bodas (10/4/2020, Rio de Janeiro, RJ)

———

O homem de uma cabeça

Era o dia 11 de março quando ouvi o noticiário sobre a situação de pandemia decretada pela OMS. Logo procurei me informar pelos corredores da universidade onde faço um curso de História da Filosofia.

O curso é na realidade uma parte de minha vida, e prefiro me deter em seus fragmentos, pois a totalidade é demasiado longa e incognoscível. Os fragmentos de um curso em curso são estáticos como a vida fragmentada, e o que há de conteúdo nessa tal filosofia é decadência. Temos perguntas e apenas perguntas, e disto poderia arrancar os fragmentos que, sobrepostos, dariam no infinito e, portanto, nada mais haveria de importância a não ser o próprio fragmento. E o curso de história da filosofia? Decadência! 

No dia 13 de março, ou seja, dois dias após o decreto de pandemia, eu estava como um palhaço alarmista em frente a um público de trinta alunos do ensino médio. Não me senti um completo idiota, mas eles sem dúvida riram do meu prognóstico de que em duas semanas estaríamos em casa estocando alimentos e sem colocar a “fuça” na rua. Talvez tenha exagerado um pouco, mas não fui tão longe da realidade que se instaurou. 

Nos dias seguintes acabei me desligando dos afazeres corriqueiros da vida em curso. Isolei-me no interior do interior do Brasil em um lugar com mais natureza do que homem. Ali fiquei com dois outros homens; mãe, pai e eu. O que sucedeu — se deste encontro inesperado e necessário talvez fosse melhor contar às escondidas, entretanto me abstenho de diplomacias decadentes.  

No dia 18 de março, quando já percebíamos o poder do vírus a cutucar o Brasil, pois o caos já se espalhava pela Europa e outros países, percebi que meus parceiros de quarentena tinham o hábito de assistir a um certo canal da TV a cabo que passava notícias 24 horas por dia. Surpresa não foi a minha quand,o nos dias seguintes, todos os canais — inclusive os da TV aberta – só passavam notícias sobre o coronavírus. Neste momento fiquei um pouco desesperado, não por mim, estudante de filosofia cheio de vigor físico, mas por meus companheiros: dois vulneráveis por idade e comorbidades.  

Foi então que em certo momento em meio a notícias de números de mortos e infectados indaguei meu pai: “Consegues perceber que há beleza na destruição?" Com este comentário freudiano, queria dizer que há em nós algo de espanto e admiração ao perceber um vírus que não vemos, mas podemos perceber seus efeitos. É onipresente. Está em toda parte. E até agora tem tido a prepotência da onipotência da destruição. Semelhanças à parte com o que não queremos aqui considerar, é um estranhamento, que às vezes causa repulsa, porém verdadeiro. Ah! Quantas vezes percebi alguém do meu lado se agitar com o noticiário sobre números de mortos na Espanha ou Itália. 

Eu não os culpo. Como não ter admiração por algo tão grandioso e que tem uma única função, que é a de se alimentar de nossas células e depois ir para outro organismo? Como não ter admiração ou espanto por algo que mudou todo nosso sistema de vida e possivelmente mudará para sempre? Nossa mudança em relação ao outro e a sociedade já mudou e a tendência é de continuar nesta progressão. 

Não necessitamos sentir-nos culpados por isso. Isso é da natureza humana. Bastaria olhar um pouco para a história. A Grande muralha Chinesa do imperador Qin Shi Huang, a qual milhões de turistas visitam felizes e contentes anualmente pela sua grandeza, que causa admiração e espanto, durante séculos foi associada com um derramamento de sangue sem precedentes. Quando admiramos pessoas como Napoleão Bonaparte, digno de admiração e espanto para muitos, por vezes nos esquecemos de que se tratava de um assassino.

É claro que não estou a fazer uma apologia viral. Obviamente, não! O que quero manifestar é que podemos sentir espanto e admiração pela destruição e ao mesmo tempo tristeza. Sim, sinto tristeza por todos os que tive compaixão nesta crise, e compadeço-me pelo mundo. Não queria que o mundo estivesse em uma pandemia. Portanto eis o ponto crucial: aquilo que se refere a falsa moral que lhe acusa, o inconsciente, os pensamentos e os sentimentos, não são a moral. A moral é o que você fará disso.

Maicon Silva (9/4/2020, Pelotas, RS)

———

Mis)taking for granted

Existe esta expressão em inglês, “to take for granted”, que sempre me encucou. Talvez porque seja de sonoridade tão agradável quanto de significação enganosa. Ao menos pra mim, cujo inglês “book on the table” poderia ser traduzido como “pelas tabelas”. Pois aqui estou: encucado com umas palavras noutro idioma. 

Em casa, perdendo a conta dos dias, confundindo quartas com quintas-feiras, sonhando com o dia de ir ao supermercado, à farmácia, e temendo que este dia chegue, tentando me livrar de desgastadas rotinas, adquirindo novos hábitos que, lá na frente (se eu chegar lá), se revelarão danosas manias, cultivando higiênicas paranoias, irritantes obsessões. Lendo com garra e gosto, ouvindo as músicas que me derretem num prazer que é quase uma compreensão, tocando um inútil trabalho à distância, sustentando a farsa de que meu ganha-pão de formiga, mesmo inútil, é imprescindível como a orquestra do Titanic, quando sei muito bem sabido que não terei nem esta ilusória compensação. Mal escorando uma “disciplina humana para a empresa da vida”, como Cecília tão terrivelmente escreveu, controlando a alimentação para não engordar, fazendo alongamentos e exercícios respiratórios e abdominais como quem busca o self e o fit ao mesmo escandalizado tempo. Preenchendo o dia, como tenho feito há meio século e uns trocados, preenchendo dia após dia como quem enche balões de ar para uma festa que não é sua. Encucando para não pensar na morte, sobre quem só se pode dizer que dispensa adjetivos e apresentações, já que quem não se importa com as lágrimas dos que ficam não há de se incomodar com o ridículo dos clichês linguísticos. Encucando. 

E encucado moo e remoo as palavras da expressão que escuto num filme e noutro. Trituro, mas não esmiúço ao ponto de esfarinhar em algo com que faça um "sei lá" ao menos satisfatório. A mente, em suas caraminholas, atinou que o que a gente faz é take a vida for granted

Digo “a gente” por covardia, essa generalizadora. O que aí está sempre esteve ou está há tanto tempo que é certo que amanhã de novo estará, garantido como o sol. A gente take for granted que o pai vai nos sinalizar como um farol nas tempestades e escuridões, que a mãe vai nos abraçar como um cobertor nas mesmas e noutras tempestades e escuridões. Eu take for granted que os amigos vão rir comigo, que hão de aturar as provocações e malícias que afloram no piso fértil da intimidade; que na balança dos sentimentos a seda dos anos pesará mais que o cascalho dos dias; que amores são resistentes à ferrugem, ao mofo e à indolência das palavras não ditas. Que do silêncio entre nós surgirão entendimento e sabedoria; que dos vícios nascerá saúde; que mágoas guardadas e esquecidas jamais saltarão da gaveta como aquele boneco de mola que pula da caixa. Que minhas explorações internas já me explicam e que, entre mim e mim e entre mim e você, não há mais surpresas nem sustos; que sua sombra é só isso que você já conhece. Que serei perdoado por ti porque pedi perdão e você perdoou; que te perdoarei sem que tenhas de pedir, porque, se não guardo dinheiro, que é bom, não é ressentimento, coisa ruim, que guardarei. Que a esperança é boa conselheira. Que, mesmo que eu duvide, Deus existe e, se eu rezar com força e convicção, Ele escuta e atende. Que aquele milagre se repetirá. Que o mundo vingará. Que, quando digo mundo, quero dizer o mundo e não as pessoas. 

Sim, take for granted é um modo de confiar demais, de subestimar aquilo e aqueles a quem nos acostumamos. Mas nada está garantido – está? Nem o mundo nem eu, muito menos você. Então, e se…

Lao Borges (8/4/2020, Brasília, DF)

———

Os dias têm sido poucos
 
Nos últimos meses, minha rotina e eu não estávamos nos dando muito bem. Algumas desavenças, outras tantas discordâncias. A verdade é que todo esse constante frenesi de cidade grande me cansa bastante. Eu não consigo acompahar o ritmo dos acontecimentos, mesmo sabendo que não preciso. As confusões são tantas, são prontas.
 
E agora, aqui estamos nós. Isolados da rotina que nos fazia sangrar e sangrando com outra que jamais imaginávamos viver. A tecnologia sufoca uma metade e a outra eu mesmo trato de submergir. E, antes que pareça só mais um Holden Caulfield por aí, tenho que dizer: não tem sido fácil viver um isolamento social.
 
No mais, sigo trabalhando, escrevendo algumas coisas por aí e me conectando com o que ainda temos de humano.
 

Marcelo Martins (8/4/2020, São Paulo)

——————

"Ninguém fica bom, as pessoas só morrem?", perguntou minha filha

Descobri que esse é o nome que se dá para o meu estilo de vida: Quarentena. Mas também descobri que o fato de eu preferir ficar em casa a ficar na rua era liberdade. Agora não há liberdade de ir e vir, mas responsabilidade e autoconscientização de ficar em casa, por mim e pelos outros. É diferente. Quase uma prisão condicional, mas com alguns privilégios, como a minha estante cheia de livros, meu gato, meu marido e uma filha de seis anos. Meu sofá, minha cama, meu conforto. Todos em casa. Juntos. Passando por esses dias estranhos com a esperança de que vai passar. 

Estou tentando criar o ambiente mais normal possível, com desenhos, animações e filmes, pois minha filha já estava ficando assustada só de ouvir a palavra "morte" ecoar da boca dos jornalistas. "Ninguém está se curando? Ninguém fica bom, as pessoas só morrem?", ela me perguntou. Então é melhor mudar de canal e colocar na Peppa Pig. Por aqui, só nos atualizamos sobre as últimas notícias dessa pandemia por meio de alguns sites e apenas uma vez por dia. Precisamos preservar a nossa saúde mental.

Fora isso, fica a saudade me fazendo companhia. Dos abraços, das presenças, da rotina. Sinto falta até de pegar metrô e ônibus lotado. Minhas aulas da faculdade estão sendo todas on-line, eu só vejo a rua através da minha varanda. Queria sair e fotografar o céu e as flores, saudades de fotografar borboletas. 

Mas sei que vai passar. É nisso que me apego. Na esperança de dias melhores. 

Caroline Queiroz Souza (4/4/2020, Salvador, BA)

 
———
 
Diário da Quarentena no Ano do Rato (Reflexões sob a perspectiva de um gato de apartamento)

Ah, humanos, esses tutores de estimação impossíveis de adestrar! Somente um cataclisma de proporções bíblicas seria capaz de fazê-lo. Sim, sei que haveria de ferir sensibilidades se me expressasse publicamente, mas não posso me furtar a regurgitar este pensamento, fruto de longa ronronação, ao menos a mim mesmo: há males que vêm para o bem. Ao menos o nosso bem. Felinos de todo o mundo, miai-vos!

Falo, claro, do coronavírus, a mais nova praga egípcia a assolar a humanidade. Ela que fez de nós reis, contudo.

Forçosamente livres de suas infinitas tarefas & distrações (fora do além-lar, diga-se de passagem), e restritos aos perímetros de suas, por empréstimo, moradas, nossos outrora autointitulados tutores agora se dedicam à doce ventura (graças à dadivosa deusa Bastet) de nos manter alimentados, satisfeitos, aconchegados. Em tempo integral. Indefinidamente.

Somos as mais novas potestades domésticas: senhores dos conjugados, dos 3/4-mais-dependência-de-empregada, dos lofts, das quitinetes, dos duplex, triplex e mesmo dos sobrados e geminados. Fomos restituídos à nossa condição original de divindade: pequenos faraós, ainda que de domínios aparentemente pouco vastos: 30, 40, 50… 80 m², se tanto. O que, para nós, é todo um mundo. 

Ora, ora, somos seres em eterna quarentena. Em estado de meditação perene. Solitários embora nunca sozinhos. Humanidade, observai e aprendei.

É certo que ser felino-deus (redundância!) tem lá seus inconvenientes. Nossos sofás-trono e camas-pedestal não são mais exclusivamente nossos. Há conversas e burburinhos incessantes a perturbar o necessário repouso de 15 horas seguidas. Sem falar das palmas & panelas dia sim, outro também. A propósito, que estranho ritual é esse que nos enerva tanto? Destina-se a quê? A conjurar forças místicas ou a espantar demônios? A que serve, além de nos histerizar?

É preciso lembrar que nós, gatos, somos seres de rotina. Ainda que em meio ao caos.

Mas tais dissabores constituem, ronrono eu, o preço a pagar pelos comedouros sempre limpos e repletos de refeição fresca; pelos toaletes constantemente higienizados (nestes tempos de pestilência, a assepsia voltou à pauta de nossos tutores-servidores); pelos afagos intermináveis sobre nossa pelagem. Era preciso uma hecatombe para que a humanidade compreendesse o óbvio?

Diante disso, não posso crer em teorias conspiratórias que alegam ser essa doença invenção de um povo de olhos puxados e pele amarela imbuído, dizem, de ambição desmedida pelo controle do mundo. Despautério. Ou como dizem hodiernamente, "feiquinius". Se for para acreditar em tolices de tal sorte, prefiro uma que nos favoreça. Se existe um plano de dominação mundial em curso, há de ser obra de um felino. Sem sombra de dúvida.

No que me diz respeito, não tenho do que reclamar. B. e M. L., meus tutores de estimação (reluto em qualificá-los de serviçais, haja vista a dedicação que a mim sempre devotaram, o que demonstra reconhecerem seu lugar de subalternidade) são excepcionais. Desde meus mais remotos tempos de felis catus, eles me tratam como o pequeno deus que sou. Por isso, rogo que permaneçam bem — porque os estimo, mas também porque desejo — e mereço — continuar sendo estimado. Afinal, de que serve a divindade sem seus adoradores?

Desgraçadamente não sou o único senhor desta morada classemediana. Compartilho meu reinado com outros dois companheiros de espécie, de modo que exercemos nosso domínio sob a forma de um Triunvigato. Mas sou o mais velho, mais forte e mais sabido, portanto, tenho-lhes precedência.

Denominam-me Tistu, mas deveriam chamar-me de César.

Bruno Peixoto (3/4/2020, Goiânia, GO)

P.S.: Um comentário sobre a palavra confinamento, tão em voga no vocabulário dos homens neste momento. Não posso deixar de notar a ironia de, agora, aplicarem a si um regime de vida imposto às vacas, às galinhas e aos porcos, aos quais nunca perguntaram a conveniência do sistema. E isso para fazerem dessas pobres criaturas picanha, galeto e bacon…

———

Estou surpresa de me manter com a mente tranquila

Nas últimas semanas estou surpresa com o quanto estou conseguindo me manter, se posso dizer assim, com a mente tranquila, dada a situação que estamos vivendo. Além de tudo já sabido e vivido por todos, estou desempregada – no que vejo ser o pior momento para isso, para mim e pra muitos brasileiros. 

Não acho válido também dizer que é um momento para se aproveitar alguma coisa, mas estamos tendo o tempo que sempre reclamamos estar em falta. Desde o início do ano estou retomando o hábito de escrever meus sonhos e também como me senti durante o dia. Ao olhar as páginas da agenda dá para perceber como as escritas ficaram muito mais ricas e extensas nos últimos dias, com vários insights e inspirações também.

Uma das coisas que me trouxe mais felicidade nos últimos dias é concluir a leitura de um livro em menos de uma semana — a propósito, a nova biografia da Simoninha que enviaram (estou ansiosíssima para ler a resenha na próxima edição da Quatro Cinco Um).

Ler os livros que há anos estão esperando o momento certo, assistir aos tantos filmes para os quais sempre faltava tempo, me informar na medida pra não surtar, cozinhar com calma e observar as luzes do dia com a minha gata no colo é um breve resumo do que tem me trazido alegria. Obrigada pelo espaço e oportunidade, 

Nathália Martins ( 2/4/2020, Campinas, SP)

P.S. Não poderia deixar de aproveitar para pedir, se for possível, até numa próxima edição, um pôster da maravilhosa Simone de Beauvoir. Amo os pôsteres que mandam e a escolha dos livros são muito antenadas meus desejos. Muito obrigada e parabéns pela revista. 

———

Esta casa não tem paredes

minha mãe levanta da mesa do almoço já com a cafeteira italiana na mão. os segundos ainda com gosto de arroz com feijão já escutam o barulho do café ficando pronto. tenho aprendido nestes dias a gostar de misturar os sabores como ela. eu lavo a louça devagar e ela tanto reclama da minha avó que em um piscar de olhos fica igualzinha a ela. gosto de apreciar o tempo das coisas perdidas. me divirto com o poder de interromper gerações. 

o isolamento social na casa da minha mãe tem aberto feridas. quase como um reencenação da separação dos meus pais. ele fora de campo e nós que sobramos apertados apertados apertados até tudo virar um. desta vez, por outro lado, tudo é bem diferente; eu trabalho, minha mãe conta janelas no autocad e isabella desenha no chão no canto do meu quarto. felipe dorme até tarde. 

esta casa não tem paredes. mesmo grande, tudo aqui é conectado. as portas abertas marcam um convívio-corredor: juntos do início ao fim. os dias passam devagar e tento pegar o sol nos resquícios que a minha cortina quebrada deixa passar. um sentimento de déjà vu nos leva de lá pra cá. minha mão continua com cheiro do frango com limão que fiz no almoço. 

a sala não pega o wifi, minha mãe fica comigo na mesa apertada entre as chaves caídas e o cabide de bolsas. a gente se espreme do jeito que dá, até ela pedir um copo de matte e eu cansar do barulho do telefone dela tocando. 

hoje queimei minha mão com a manga congelada na hora que fiz o suco. 

minha irmã de 4 anos desenha animais tatuados no quadro branco e brinca que as bonecas dela estão bêbadas. minha mãe atende o telefone e troca de roupa e mal dá tempo de rir. eu normalmente estou de fone mas dessa vez não estou. fico mais velha e tenho a sensação de que somos três gerações e não duas — se descobrindo mulheres todas ao mesmo tempo, de formas diferentes.

Julia Stallone (1/4/2020, Rio de Janeiro, RJ)

———

Diário de transbordo

Coordeno um curso de Letras de uma instituição privada. Significa estar atenta às atividades dos estudantes durante o período de quarentena. Nesse sentido, pouco tempo tive para sentir solidão, ostracismo ou nada fazer. Em um primeiro momento, pensei que muitas coisas que não faço normalmente teriam hora oportuna para realização. Ledo engano.

Organizar meus livros mais adequadamente? Separar alguns para doação? Eu leria aqueles que ainda não consegui por falta de tempo. Nada. Minhas leituras são informes e mais informes para organizar o trabalho. Nessa lida incluídas todas as outras arrumações. Armários? Mais bagunçados do que antes. 

Imaginava também testar a culinária que existe na sombra da cozinheira que não sou. Meu computador, outro que precisava de limpeza, está ocupado até a próxima encarnação. São tantos arquivos que já se acumulam esbarrando-se uns nos outros.

Para que meus companheiros de labuta, coordenadores, professores e alunos, pudessem sentir um pouco de solidariedade, senti e sentei para escrever um texto — ânimo.

Roseli Gimenes (31/3/2020, Barueri, SP)

———
 
DIário da Quarentena

Dia 1 – Estamos reclusos para resguardar nossas vidas da ameaça de um vírus. A reclusão me levou a explorar novos lugares. Coloquei a rede na sacada, mas quando fui deitar vi num cantinho escondido minha plantinha que ficou lá pelas últimas três semanas quando a levei pra pegar sol. Não descansei.

Dia 2 – Já imaginei cenários apocalípticos os mais diversos possíveis para o Antropoceno, principalmente após as eleições de 2018. Na verdade, confesso que sou #MeteoroTeam no melhor estilo Asterios Polyp. Mas vírus? Sei lá, no campo das batalhas virais acho que nunca pensei muito sobre quão frágeis são nossas estruturas biológicas e sociais. Além de sempre ter atribuído muito poder a ciência, não sei se o Bruce Willis tem mais pique pra cavar um buraco em meteoro em pleno 2020, ainda que o Elon Musk lhe forneça a tecnologia.

Dia 3 – Separei o suprassumo do meu lixo orgânico e enterrei no vaso da minha plantinha que secou para ver se ela vai me redimir dos dias de abandono.

Dia 4 – De repente todo mundo já sabia que essa pandemia poderia acontecer. Toda vez que eu digo gente, e esse coronavírus né? Que loucura! Surgem respostas como ah pois é, o Bill Gates já tinha avisado em 2015 ou o Yuval Harari já tinha escrito lá em 2011. O que eu estava fazendo esses anos que não vi isso? Aí veio aquela velha sensação, que me acompanhou durante toda minha vida escolar: o arrependimento de só começar a ler os textos na véspera da prova. Por que eu não li o Yuval Harari? Por que eu não sigo o Bill Gates? Por que não pesquisei sobre a Cliodinâmica? Por que não cursei biologia? Medicina? No auge da ansiedade, quando eu já estava quase entrando na barca da piração, hesitei. Que diferença faria eu ter estudado sobre o coronavírus antes da pandemia? No máximo eu teria economizado na compra de álcool gel, porque inventar vacina é que eu não iria. Diante dessa constatação de impotência, abracei meu não saber e continuei no caos das minhas leituras. 

Dia 4 (depois do surto) – O primeiro livro que escolhi para ler, na verdade, para terminar de ler foi A história dos meus dentes, da Valeria Luiselli, uma escritora mexicana. Meu amigo Lucas me emprestou o livro dizendo que eu iria gostar porque ele era engraçado. Acolhi a assertividade da indicação e comecei a ler sem ter pesquisado nada sobre a autora ou sobre a narrativa. O que foi uma boa escolha, porque qualquer coisa que se fale sobre esse livro pode ser um spoiler daqueles. A coisa mais próxima que eu tinha lido nesse estilo foi O museu Darbot do Victor Giudice. Só faço essa nota porque em um trecho no livro da Luiselli, o personagem principal que se chama Estrada está realizando o leilão de uma obra de arte e para contextualizá-la ele cita O morcego da história, segundo ele "Benjamin levemente modificado". Já imaginei a nova versão do quadro do Paul Klee. Eu ri muito, Lucas, você tinha razão. Inclusive, ri de nervoso com a puta coincidência de toda esse história entre o coronavírus e o morcego: ”Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única". Fim de nota.

Dia 5 – Receitas testadas e aprovadas até o momento: panqueca de banana, farofa de banana, banana congelada batida com outras frutas, toast de banana com pasta de amendoim. Em breve publicarei os resultados de meu estudo empírico sobre como o ser humano pode sobreviver longos períodos a base de banana e água.

Dia 7 – Hoje reparei que tenho muitos livros sobre distopias e fim do mundo. Inclusive um se chama Apocalipse. Na verdade é um anuário, uma coletânea de textos, fotos, twitters.. escritos entre 2018/2019 por artistas de diversas nacionalidades e publicados pela Editora Todavia. Até hoje eu só tinha lido o texto da Zadie Smith, em que ela fala sobre as ilusões multiculturais diante do Brexit. Ao retomar a leitura nesse momento oportuno, meu coração começou a acelerar, e como muitas vezes acontece comigo, paro tudo, olho os livros espalhados ao meu redor e penso:

 

Dia 11 – Eu me emociono quando consigo juntar as leituras. Antes da pandemia eu estava mergulhada em James Bridle, no livro onde ele fala sobre a Nova Idade das Trevas, a tecnologia e o fim do futuro. Ele mostra que a medida que a tecnologia foi ficando mais sofisticada, o discurso científico foi se tornando mais inacessível para as pessoas, ressaltando que a obscuridade da linguagem tecnológica serve a alguns propósitos.

Hoje a nuvem  é a metáfora central da internet: um sistema global de grande potência e energia que ainda assim retém a aura do numeral e do luminoso, algo quase impossível de entender. Nós nos conectamos à nuvem; trabalhamos na nuvem; guardamos coisas na nuvem e recuperamos coisas dela […] É algo que vivenciamos o tempo todo sem entender de fato o que é como funciona. […] A nuvem não é imponderável; não é amorfa, nem mesmo invisível, se você souber onde procurar. […] É um infraestrutura física que consiste em linhas eletrônicas, fibra óptica, satélites, cabos no leito oceânico e vastos depósitos cheios de computadores que consomem imensa quantidades de água e energia e que habitam jurisdições nacionais e legais. A nuvem é o novo tipo de indústria.[…] Existe um motivo para o Google e o Facebook gostarem de construir data centers na Irlanda (impostos mais baixos) e na Escandinávia (luz e resfriamento mais baratos). […] A nuvem se molda a geografias de poder e influência, e ajuda a reforçá-las. A nuvem é uma relação de poder, e a maior parte das pessoas não está no alto.

Dia 13 – Vi toda a escrita de Bridle ecoando em O crepúsculo do fato do jornalista Cláudio Ângelo, também da coletânea Apocalipse, em que ele fala sobre os perigos que vieram à tona com o declínio do discurso científico na sociedade da informação.

O motivo pelo qual a visão de uma sociedade cada vez mais racional parece ter ruído é justamente a balbúrdia  informativa produzida pela revolução digital. Por um lado, checar a veracidade das informações ficou mais fácil. Por outro lado, quantidade de informações a checar se multiplicou a ponto de tornar essa tarefa muito mais complicada.[…] Outra barreira à razão é uma dificuldade da ciência em dialogar com a sociedade à medida que o próprio empreendimento científico se expande velozmente.

Nesse ponto vejo que a história do coronavírus pode provocar uma mudança positiva. Seria a pandemia o meteoro que vai extinguir a Fake News? No texto publicado na sexta-feira, dia 24 de março, no Blog da Companhia das Letras, o próprio Cláudio Ângelo ressalta que:

Um efeito colateral do cataclismo epidemiológico que se abate sobre a humanidade neste 2020 pode ser o restabelecimento da saúde de uma senhora que anda nas últimas: a verdade. A Covid-19 tem dificultado a vida de governos que têm na mentira seu método de exercer o poder, como os regimes neofascistas das Américas. Se ainda houver civilização no final desta crise, talvez a contagem de patógenos como Donald Trump e Jair Bolsonaro na corrente sanguínea da humanidade despenque a ponto de o mundo receber alta.

Dia 15 – A plantinha não sobreviveu. O mundo não será mais o mesmo.

Gabriela Paulo (São José, SC)

———

Estamos isolados. Mas será que já não o estávamos antes? 
 

Tempora mutantur et nos mutamir em illis: o tempo muda e nós com ele. Muito se fala das mudanças que a pandemia trará ao mundo. Cientistas tentam prever o comportamento da humanidade a partir de dados; religiosos recorrem ao credo como remédio e consolo; historiadores recorrem aos documentos para identificar ciclos; personalidades emprestam sua notoriedade à alguma causa; empresários, dos maiores aos menores, reinventam seus negócios.

É inegável que o vírus há de marcar o século. Espraiou-se pelo mundo e o deglutiu como uma bolha. Mas também como bolha explodiu. E para todos os lados, lançou aquilo que há muito aprisionávamos em nós.

A febril ansiedade contida, a produtividade histérica, os vícios até então irreconhecidos e as vaidades secretas começam a se revelar durante o isolamento. Potencializadas pela redes sociais, as ondas se superpõem em uma melodia confusa onde cada um tenta se autoafirmar. Todos parecem sofrer o isolamento, mas cada um parece também ter encontrado a melhor fórmula para superá-lo. Reconhece-se o sofrimento, mas dele não se permite padecer.

Sou um cidadão, político por definição. O remédio mais eficaz contra a pandemia tem sido o isolamento; o remédio mais eficaz para os nosso problemas cotidianos é a construção coletiva. Como transpor as experiências? Será que os dias que passaremos longe do convívio social nos mostrarão a importância daqueles que nos cercam? Ou será que reforçarão ainda mais a primazia do solo? Estamos isolados. Mas será que já não o estávamos antes? 

São questões abertas a que somente o futuro responderá. E toda a especulação acerca desse – seja ela de cientistas, religiosos, historiadores, personalidades, empresários, economistas e políticos – é tão anxiogênica que limita e adiciona ruídos à nossa percepção do presente.

Pois parece que a bolha é uma bola. De neve. Daquelas que só crescem quanto mais evoluem. Quando as dúvidas parecem não ter fim e o futuro não se desenha claramente, viver o presente é a solução aparentemente mais sensata. Interromper o rolar da bola e a evolução da bolha antes que por ela sejamos soterrados e engolidos.

Sou daqueles que não conseguem entrar em uma sala de cinema sem saber a que horas o filme acaba. Sou daqueles que não conseguem começar um capítulo do livro sem saber em que página ele se finda. Mas parece não haver outra saída nessa pandemia além de viver em verdade o isolamento ou a quarentena – para aqueles que possuem esse privilégio. Trabalhar com parcimônia, exercitar-se física e intelectualmente, dar vazão aos instintos mais orgânicos, apreciar o lento passo das horas e assumir nossa vulnerabilidade. Estamos em casa e nada mais natural do que sermos genuínos.

Temos enfim a oportunidade de nos assumirmos para nós mesmos. E quando tudo isso acabar e sairmos lá fora, talvez teremos cultivado a coragem de nos assumirmos para os outros. Tempora mutantur. Et nos mutamir em illis?

Gabriel Couto (30/3/2020, Belo Horizonte, MG) 

———

Comprei uns tantos livros sobre epidemias, talvez amanhã eu os leia

Escrevo como uma forma de tentar manter a concentração; dispersei-me, mais do que o habitual, neste período de confinamento. Imaginei que iria escrever, nestes dias de crise, o livro que me daria o Nobel de Literatura, mas acabo de ser informado, no iPhone, que o “meu tempo de uso aumentou 43%”. Ainda não li A Montanha Mágica; conheço, porém, a estatística diária do vírus no Suriname. E ninguém deve estar interessado, bem sei, no que faço enquanto não sou infectado. Acho justo: tampouco estou interessado nas atividades alheias. Ocorre, contudo, que vivemos na era das redes sociais — publicamos, portanto, o que nos dá na telha.

Oficialmente, ainda não estamos em quarentena obrigatória, mas ela virá, tenham certeza. Virá impávida que nem Muhammad Ali e tranquila e infalível como Bruce Lee? Virá, virá — mas não virá apaixonadamente como Peri, que governante nenhum é besta. Pois planejei os meus dias para isso — o plano inicial era ler ou reler, por assim dizer, a “literatura da peste”, livros cujas histórias se passam durante epidemias. Plano inicial, eu disse: ontem revi Um peixe chamado Wanda e A dança dos vampiros, dois filmes idiotíssimos e muito engraçados (uma triste coincidência: Jack MacGowran, o Professor Abronsius de A dança, morreu em 1973 de… influenza). Quando a peste vier, encontrará um semelhante, uma ameba cercada por embalagens vazias de McDonald’s.

Tem mais: esses livros sobre pragas nunca são realmente sobre pragas, assim como os rinocerontes de Ionesco não são rinocerontes e os bois e cachorros de A Hora dos Ruminantes, do meu conterrâneo J.J. Veiga, tampouco são um retrato desses bichos nossos amigos. Pensemos em Albert Camus e A peste — o livro trata da resistência ao nazismo. O amor nos tempos do cólera, aquele bolerão que fica na linha limítrofe da doçura diabética porque García Márquez estava no auge da sua imaginação criativa e assim pensou o romance, cuida da velhice e da persistência do amor. E não podemos nos abrigar numa bodega qualquer, imitando os personagens de Álvares de Azevedo (Noite na taverna) — as tavernas estão fechadas. “Eu também já fui brasileiro/ moreno como vocês./ Ponteei viola, guiei forde/ e aprendi na mesa dos bares/ que o nacionalismo é uma virtude./ Mas há uma hora em que os bares se fecham/ e todas as virtudes se negam.” Preciso, penso vaga e preguiçosamente, encontrar o meu Decamerão.

Leio desordenadamente; vou ao Spotify e, em vez de ouvir a Nona de Beethoven, escuto podcasts rasos; arrumos estantes; miro o felino, de quem sou fiel servidor, se lambendo; discuto política com amigos, um tanto asperamente, no Whatsapp; enfastio-me. Gasto-me como se gastam as pontas dos charutos que ocasionalmente fumo. Outro dia houve panelaço às 20h, depois houve mais panelas tamboriladas às 21h — quase cronometrei a diferença de duração da barulhada, mas preferi desarrolhar um vinho. “Precisas mudar de vida”, digo a mim mesmo, repetindo a ordem de Rilke naquele verso meio obscuro.

Comprei uns tantos livros sobre epidemias, a história da gripe de 1918, “a próxima grande pandemia”… São temas que realmente me interessam, mas eles estão amontoados ali no canto do quarto. Talvez amanhã eu os leia, talvez ouça a Nona, talvez escreva o livro que me trará o Nobel. Será isso ou filmes antigos do Jerry Lewis.

Marcelo Franco (28/3/2020, Goiânia, GO)

———

A leitura está sendo o maior motivo de prazer nestes dias

A quarentena veio devagar durante minhas férias da faculdade, e parece ser um prolongamento delas. Isso gera estranheza em relação ao tempo e as vezes estresse ao pensar "e o período?", mas a nova realidade foi se assentando durante as semanas.

Eu, minha mãe e minha vó moramos na mesma casa (minha avó no andar de cima) e conseguimos manter o espaço de cada um. Às vezes há confraternização nos almoços, troca de preparos.

Os dias seguem com uma rotina. A principal parte dela é a de manhã: acordar às 8 horas, ir ao terraço com um livro e percorrer as ruas do Rio com Rubem Fonseca ou viajar para Budapeste com Chico Buarque… enquanto perpassa o som do bairro, com os poucos carros, a vizinha lavando a calçada, o bater das asas dos pombos e os ventos (não notava como venta!).

A leitura está sendo o maior motivo de prazer nestes dias e a relação com o tempo sem a correria do mundo (como é bom ler os textos da Quatro Cinco Um com calma!). A quarentena não sei quanto vai durar, mas uma certeza tenho: a casa não é a mesma, nem o tempo, nada parece ser o mesmo, parece que nunca estive neste bairro, nesta rua ou nesta casa. A ressignificação do tempo e do espaço é o que de melhor está acontecendo. Eu espero que "as estranhezas" continuem acontecendo após esse momento difícil que iremos superar juntos. Também desejo que venham mais ruas, mais matérias, mais ventos para "reconhecer"! Os desejos e a ressignificação como herança.

Pedro Henrique Goulart Vieira Curty Guimarães (Volta Redonda, RJ)

———

Estou encantada com Nunca houve um castelo, de Martha Batalha

Apesar da apreensão, estou me adequando a passar tanto tempo em casa, coisa que minha rotina não permitia. Faço coisas que são importantes para minha família, como preparar refeições saudáveis e deixar a casa limpa e desinfetada – principalmente maçanetas, chaves, cartões, pois meu marido ainda está trabalhando. 🙁 

Depois começo a pensar em coisas mais prazerosas, então leio Nunca houve um castelo, de Martha Batalha. Que livro, hein!!  Estou encantada com essa escritora, já havia lido a Vida invisível de Euridice Gusmão: ler sobre a trajetória de duas irmãs na década de 40 me trouxe lembranças de minha avó e de seu comportamento frente a meu avô.

Não esqueço das minhas aulas de pilates, que agora são feitas em frente a TV. Escrevo no meu diário por achar importante o relato de tudo o que vivo e como vivo, agora mais ainda! Assim os meus – os que puderem e quiserem ler – saberão um pouco de mim.

Rezo diariamente, fico em sintonia com Deus, pedindo a graça da fé, a proteção de todo o planeta e agradecendo o dom da vida. Acabo o dia assistindo a um bom filme – pode ser romance, filme de ação ou desenho (ontem assisti Meu malvado favorito 3 – assistam se vocês são dos anos 80 rs).

Dedico menos tempo – mas não deixo de ver as redes sociais — para trocar mensagens com amigos e parentes. Ligo todos os dias por vídeo para conversar com meus pais e dar a assistência possível. E assim vamos criando estratégias para passar por mais essa, e que tudo isso nos faça crescer como pessoa – como seres humanos preocupados com o próximo, pois a vida é frágil Beijos a todxs, fiquem bem, 

Obs. Ansiosa por ler a Quatro Cinco Um 🙂

Jeanette Muza Antoniassi Scarazzatti (26/3/2020, Santa Bárbara do Oeste, SP)

———

Tédio, aflição e 'frango tipo chicken'

Estou em casa há dez dias. Sinto tédio e aflição, trancada num apartamento sem varanda.

Duas coisas que tenho feito pra passar o tempo: cozinhar e fuçar nos livros de receitas antigos da avó do meu esposo (como a gente chama a avó do esposo? vógra?). Os livros são muito engraçados. Eu amo o fato de que toda receita acompanha a autoria (“nhoque da Clélia”, “salpicão da Ida”). Amo perceber as mudanças na língua (“môlho inglês”, “vinho branco sêco”, “sal a gôsto”) e as manchas de gordura a cada três ou quatro páginas.

A coisa mais maluca que achei até agora foi o frango assado na coca-cola, de uma tal de Alzira. Ainda não testei nenhuma das receitas, mas estou pensando em fazer o “frango frito tipo chicken” (???) da Cida, o patê de creme de leite da Vilde (“para servir com bolachinhas, digo, biscoitos salgados”), ou mesmo o pão de queijo da Antonieta, que traz o aviso: “Pôr em forminhas untadas. Pode encher que não transborda”.

Beatriz Guimarães (24/3/2020, Campinas, SP)

———

Uma lição do Grande sertão

Me marcou profundamente um trecho com o qual me deparei nesse final de semana, fechada em casa. A fala de compadre Quelemém: “Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho.” Por todos, fiquemos em casa.

Livia Galeote (24/3/2020, São Paulo)

———

O tempo nesses tempos

“Infelizmente, por ordens do financeiro, a demanda estará suspensa nos próximos meses. Não temos previsão de volta, mas entraremos em contato”, dizia o e-mail do freelance. Tirei os olhos do notebook, afastei a cadeira e levantei. Soltei a respiração e dei dois passos até a janela do meu quarto, que de dia é escritório. Por aqui, home office não é novidade há tempos.

Céu limpo, uma grade atrapalhava a visão. Foi colocada para o gato não pular da altura de quase um andar. Vejo um extenso corredor, com as portas de entrada das três casas em cada lado. Meu quarto divide a parede com o vizinho, um vendedor de frutas. Volta e meia, o cheiro de jaca invade a sala. A estrutura é meio estranha de explicar. Uma quase vila, com inquilinos de dois irmãos locatários.

Alguns dias, ouvimos a vizinhança entrando pelo corredor. Outras vezes, testemunhamos brigas homéricas, como a moça ruiva de óculos dizendo ao marido, um grandão desengonçado, que ele não colocaria a família em risco pelo capricho de comprar pão doce na padaria. 

Ainda olhando pelas grades, pensei nas contas de abril. Sem perspectivas de um emprego fixo, me viro bem com os frilas. Meu pai pagou o aluguel, eu paguei água, luz e internet. Mas e mês que vem?

Lembrei a psicóloga. Viva o hoje, o agora, deixa o futuro para o futuro, costuma dizer. Se quero controlar a ansiedade, preciso me fixar no intenso agora. No intenso agora. Nome do documentário com narração lenta, em voz baixa. Como deveriam ser todos os dias, sem gritos dos bárbaros tentando nos intimidar.

No intenso agora. Vi nas redes sociais perguntas sobre como sairemos dessa e especialistas falando do pós-quarentena. Estranho falar em sair do que mal entramos. É como as festas chatas, em que chegamos e olhamos para o relógio o tempo todo, à espera de um evento mais divertido em outro lugar. No intenso agora, há uma só festa macabra, de presença obrigatória. Nem todos vão aguentar a ressaca, alguns vão embora de ambulância, outros serão ausência nos eventos futuros.

Poucos dias de confinamento e um ensaio para o enlouquecimento em desafios digitais para adiar o tédio. Como essa gente apressada vê as Grandes Guerras? Depois que tudo é História escrita em livro, distante, fica fácil de entender. E no dia após dia, sem saber a data para o fim do terror, sem a certeza de sobreviver ao terror?

Para os menos afortunados, os dias após o terror ainda serão dias de terror, porque todos os dias são dias de terror.

Em um grupo de WhatsApp, vi clamores por uma vacina rápida e reclamações pela cura do inexplicável, que estaria demorando muito. O tempo da pandemia não é o tempo das redes sociais, respondi. Todos falaram ao mesmo tempo. Saí do grupo.

Desisti do céu gradeado. Paciência. Desliguei o computador, desci e fui ver o sol no quintal. O gato que não pula a janela me encarou com os olhos verdes. A rua deserta, o bar com a porta semiaberta sendo lavado, o salão do barbeiro fechado. Triste ouvir o eco na rua meio bairro, meio centro.

Mas vai passar. Assim como o tempo, no tempo dele, mesmo nesses tempos.

Leandro Marçal Pereira (25/3/2020, São Vicente, SP)

———

Modo estoque: ativar

Bastou eu entrar de férias para o tal do coronavírus arriar as malas em solo tupiniquim, com direito a suspiro de satisfação ao ver a praia de Ipanema. Férias com isolamento social tem um quê de melancolia, mezzo azar, e para quem estava planejando ir à praia em dias alternados, as coisas formaram um desenho bem diferente do papel. Os cariocas estão completamente malucos. Senhores aposentados saem de suas casas para formar aglomerações em filas de farmácia, com máscara e álcool em gel debaixo do braço  mesmo a OMS reforçando 47 mil vezes que é o sabão o nosso verdadeiro aliado. Depois, voltam para suas residências com uma família de coroninhas na bengala. Pessoas estão brincando de bate-bate no mercado com carrinhos apinhados de papel higiênico e congelados. Dá pra imaginar a quantidade de gente que reviveu, no âmago do inconsciente, o trauma do governo Collor. Modo estoque: ativar. Isso tudo eu sei porque precisei ir ao médico, antecipando o olhar torto de vocês do outro lado da tela. E bastou essa saída para ficar totalmente apavorada. Não temos estrutura pra receber um evento desse porte. Numa loja de eletrodomésticos, uma tv de 50” transmite as autoridades da saúde implorando aos cidadãos que fiquem em casa, enquanto pessoas na mesma calçada se cumprimentam com um aperto de mão. Piada pronta. Isso tudo foi antes do Witzel  que finalmente começou a mirar na sensatez ao invés da cabecinha  fechar a maioria dos estabelecimentos. Não fez mais que a obrigação.

Por aqui, adotei a rotina de desligar o celular depois do almoço. Tomo sol no terraço, ponho as matérias e os podcasts em dia, leio um livro da Elena Ferrante que, obviamente, é ambientado numa outra Itália, muito diferente da que existe agora. Será que ela está bem? Deve estar, é uma senhora esperta que viveu governos de uma estupidez gritante. Engraçado como a história se repete. Não comprei álcool em gel, optei pela glicerina e faxinas regulares. Já a cozinha se tornou o melhor lugar para exercer a criatividade. "Crise é oportunidade", penso, enquanto olho os mesmos três ingredientes para o resto da semana. Olhando pela janela, as coisas parecem até normais. Não há remédio melhor do que o autoengano. Depois de, claro, lavar bem as mãos.  

Krishna Montezuma (25/3/2020, Rio de Janeiro)