Política,

Manu D’Ávila fala de feminismo, privilégio e transtorno de imagem

A política, que lança livro sobre a luta feminina, revela curiosidades como a de que sua mãe comprava meias-calças para Rosa Weber

22out2019

No chamado “novo feminismo”, que tomou corpo e, claro, atitude de vinte anos para cá, um conjunto renovado de vocábulos é uma das curiosas e, sobretudo, indicativas diferenças em relação ao que propunha o movimento de mulheres dos anos 1960 e 1970. “Sororidade”, por exemplo, é um deles, mas já existe também “dororidade”, “double standard” e “manspreading”. Explicações a seguir, talkey?

Em seu recém-lançado Por que lutamos? — um livro sobre amor e liberdade, a gaúcha Manuela D’Ávila, ex-deputada estadual e federal, ex-vereadora e ex-candidata a vice-presidente do Brasil, tudo pelo pcdob, não só dedica uma página inteira a catalogá-los (ao final da lista, vem a pergunta “Você está aí?”, e fiquei na dúvida se ela quer saber se o leitor já passou por alguma situação envolvendo aquelas palavras ou se teve paciência de chegar até o final do índex) como os utiliza sem moderação. Ela usa 29 vezes a palavra “gênero” (ou derivadas dela, caso de “cisgênero”); “privilégio” aparece vinte vezes, “transexual” (e aparentados, como “transfobia”), dezoito; seguidos por “assédio”, “estupro”, “acolher”, “gorda” e “gordofobia”.

A escolha desse tipo de linguagem e as definições que surgem ao longo do livro para esses termos se explica pelo fato de que a obra foi escrita especialmente para meninas de quinze a vinte anos que, segundo ela, “se sentem feministas, vêm num movimento engajado, mas que podem ter dúvidas de conceitos elementares desse feminismo”. Apesar de Manuela, de 38 anos, falar sobre essa classificação etária, não há indicação de que o livro seja voltado para o público jovem. Tanto que a autora também diz que “ele é ainda para mulheres mais velhas que se descobriram feministas mais longe na caminhada”.

Assimilada a explicação, diversos trechos que de topada soam pueris podem então ser encarados com propósitos didáticos. Há um momento, por exemplo, em que Manuela diz — o que parece óbvio — que não há um destino biológico para mulheres e homens, e que os papéis são construídos socialmente. “Vamos lá: menina nasce com vagina, menino nasce com pênis. Vagina não capacita ninguém para lavar louça. Pênis não torna ninguém jogador de futebol. Dá pra entender?”

Ainda no quesito louça, a autora traz um dado curioso: uma pesquisa realizada pela organização não governamental Plan International Brasil mostra que enquanto 76,8% das meninas lavam louça, apenas 12,5% dos meninos executam essa mesma tarefa.

Manuela, “a detentora oficial da camiseta ‘Lute como uma garota’”, como lembra a atriz e amiga Maria Ribeiro no prefácio, dedica o livro à falecida avó paterna, “que sempre me contou sobre a mulher que ela poderia ter sido”. Solange era dona de casa. Ela poderia ter estudado, mas decidiu se casar com o avô de Manuela. Depois, preferiu cuidar dos filhos a se casar com outra pessoa que era apaixonada por ela. “Minha avó sabia que tinha muita potência nas escolhas que ela não tinha feito. Especialmente porque a mãe dela havia sido vereadora nos anos 1950, numa cidade machista do interior do Rio Grande do Sul — e por um partido de esquerda”, conta Manuela, em entrevista à Quatro Cinco Um. “Minha avó era minha maior cabo eleitoral. Incomparavelmente maior do que a minha mãe.”

Os pedaços que Manuela escolhe contar sobre a vida da mãe ajudam a compreender o que, ao menos publicamente, conhecemos dessa política eleita aos 22 anos para seu primeiro cargo eletivo, o de vereadora de Porto Alegre. Em nossa conversa, pergunto se posso tratá-la por “você” e ela responde: “Por favor! Me chamam de senhora desde que tenho vinte”. Pois, então, a desembargadora Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira Rebout foi uma mulher que, em 1977 — meses antes de ser promulgada a Lei do Divórcio — resolveu se separar do pai de seus três filhos, mesmo sem ter trabalho e tendo abandonado a faculdade de direito. “Minha mãe foi uma dessas mulheres excluídas das festas de aniversário e círculos familiares”, diz Manuela. “Sofreu muito preconceito por ser mulher.”

Aulas de violão ajudaram Ana Lúcia a sustentar a casa. Ela conheceu o engenheiro e hoje professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Alfredo Luís Mendes D’Ávila, apaixonou-se, teve com ele mais dois filhos — Manuela é a quarta — e retomou os estudos. Passou no concurso para juíza quando Manuela tinha três anos, tornou-se desembargadora (“porque é juíza de carreira, não é indicada. No meu caso, é bom dizer”, frisa Manuela) e, no dia 5 de abril de 2018, quando Lula teve negado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido de habeas corpus que poderia tê-lo poupado da prisão decretada por Sergio Moro, Manuela soube que o chefe de sua mãe, então estagiária em um escritório de direito, mandava que ela comprasse meias-calças para sua esposa, Rosa Weber, a ministra do STF que deu o voto decisivo para o encarceramento de Lula. “Minha mãe vai ficar brava quando ler isso”, comenta.

“Odeio meu corpo”

De cara, parece esquisito, mas, em outro capítulo, Manuela revela que chegou a pesar cem quilos na adolescência e que há anos luta contra um transtorno de imagem. “Odeio meu corpo 24 horas por dia […] Sempre me acho gorda, mesmo quando estou um palito”, escreveu em uma rede social, em 2017. Mas o assunto se encaixa no temário atualizado do feminismo, uma vez que os corpos, com seus leques de pesos, pelos, cheiros e cores, são agora não apenas celebrados como transformados em pièce de résistance contra ataques gordofóbicos e/ou machistas. Mas aqui mora um problema — que fica claro nesse pedaço, e que também se insinua em outros cantos do livro.

À parte ter a coragem de assumir essa fragilidade emocional — e, na nossa conversa, ela detalhou durezas que não estão no livro, como a de que não se pesa há dois anos e meio, não vê fotos suas e evita se olhar no espelho, já que esses são gatilhos para novas crises —, Manuela responsabiliza a pressão que as mulheres vivem para estar magras e dentro de padrões afins à “estrutura de opressão na sociedade”. Ela escreve: “É difícil para um homem entender ao que somos submetidas. E ainda mais difícil para uma mulher feminista como eu reconhecer o quão envolvidas podemos ser nessa trama de horror aos nossos corpos promovida pela indústria da moda, do entretenimento, da ‘saúde’”.     

Manuela é jornalista e mestre em políticas públicas. Também faz terapia psicanalítica, além de gostar de estudar teorias ligadas a essa prática clínica. Portanto, sabe que transtornos emocionais têm raízes não só no ambiente externo, mas nas experiências familiares, de infância e (não) amorosas, para ficar no arroz com feijão freudiano. No entanto, ela prefere não expor as causas de sua questão física/psicológica — e que vêm a ser as de muitas mulheres — que não são unicamente ligadas a machismo, indústria, moda, patriarcado etc. Falamos sobre essa lacuna na entrevista. E ela disse, de maneira que considerei honesta: “Eu identifico as origens do meu transtorno, mas tem um volume de informações minhas que não compartilho no livro”.

Por que lutamos? — um livro sobre amor e liberdade é um trabalho que tem importância. Reedita números que evidenciam as diferenças entre homens e mulheres no Brasil — principal razão da luta feminista atual —, como a de que nós ganhamos 70% a menos do que ganham os homens e a de que 40% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres e que, destes, 27% são de mulheres solo com filhos. Traz também explicações didáticas sobre que tipo de feminismo Manuela e as meninas e mulheres que gostam dela defendem. A saber: “Nosso feminismo precisa ser popular. Precisa ser útil […] e estar a serviço da mulher que não consegue colocar comida na mesa dos filhos […], que não é mãe porque não está pronta ou não quer […], das atrizes que se uniram contra o assédio e de todas as empregadas domésticas que foram violentadas naquele quartinho sem banheiro e sem janela lá atrás do duplex no Leblon”.    

Luta lá e Bozo aqui

Lula e Bolsonaro não aparecem textualmente. Mas estão em todos os lugares. No que se refere ao presidente, o perfume — ou o fartum — do que ele representa para Manuela se insinua no tanto de vezes — quase vinte — que ela usa a palavra “amor” para falar especialmente da luta pela igualdade entre homens e mulheres.

Em trechos como “este é um livro sobre amor. Não sobre amor romântico, mas sobre o amor como potência, força de luta”, a palavra se encaixa bem, mas em outros — como “o feminismo é a ideia amorosa de que é possível construir um mundo onde homens e mulheres sejam pessoas com igualdade sociais, políticas e econômicas” — é dispensável morfologicamente e sugere mitigação.

Por que tanto amor, diabo? “Porque umas das ideias mais fortes quando se fala em feminismo hoje é a do ódio. Recebo milhares de mensagens falando que defendo o extermínio de homens, de famílias e perguntando como posso ser feminista se sou casada e tenho uma filha. O livro é uma tentativa amorosa de enfrentar um conjunto de mentiras e desinformação forjado em valores ultraconservadores sobre o feminismo, que estruturaram, inclusive, parte da vitória de Bolsonaro”, diz Manuela.

Numa entrevista que deu em 2013 à revista tpm, a então deputada federal contou que a única vez que havia perdido a cabeça na Câmara fora dois anos antes, quando “saltei em cima de um deputado, o [Jair] Bolsonaro”. Eis os detalhes: “Eu presidia a Comissão de Direitos Humanos. O Bolsonaro sentou na primeira fila, o Jean Wyllys [então deputado federal pelo psol] logo atrás, e ele começou a falar aquelas coisas horrendas e desumanas, entre elas a de que o pai do Jean havia morrido com vergonha dele. Eu cassei a palavra dele e o mandei calar a boca”, diz ela em nossa conversa.

O privilégio e o rock

Manuela escreve que “é a pessoa mais determinada que conhece”. Quando era uma adolescente obesa, aos dezessete anos, emagreceu quarenta quilos em oito meses. Ao decidir parar de fumar, largou o vício no dia “10 de dezembro de 2010, às 15h”.

Ela conta também que já teve “ideias absolutamente tolas e machistas sobre as mulheres feministas. Tipo dizer que elas eram chatas, frustradas etc.”, e que “adorava dizer que só tinha amigos homens e que era aceita nesse círculo sagrado de relações deles. Significava que era uma igual, que não tinha o comportamento marcado pelas ‘fraquezas’ femininas”. Mas isso mudou. Tanto que nos agradecimentos Manuela só cumprimenta “as minhas amigas que escreveram contando aquilo que gostariam de ler sobre feminismo em um livro”.

Privilégio é um tema caro à autora. São linhas e linhas de uma tese laboriosa em que, grosso modo, ela sustenta que pessoas brancas e de classe média são privilegiadas em relação às negras e pobres. A salvaguarda se daria porque os grupos não partem do mesmo patamar de oportunidades e, ao longo da vida, seguem em situações desiguais econômica, social e politicamente. Há quem se incomode com essa premissa por, no mínimo, dois motivos. Ao se dizer privilegiada, Manuela estaria também dizendo quem é o desprivilegiado, que estaria numa posição que ela não conhece; portanto, não teria autoridade para falar em nome dessas pessoas, além de homogeneizar grupos sociais complexos.

Em sua defesa, Manuela se sai bem. “Não falo individualmente, mas do ponto de vista econômico do país. Sob esse aspecto, tenho privilégios, acesso a políticas que deveriam ser garantidas a todos. É claro que muitas pessoas brancas podem não ter. E a Ágatha [Felix], por exemplo [menina carioca de oito anos que foi morta por um tiro de fuzil em setembro], era uma criança negra da comunidade, que fazia balé e inglês. A análise social da realidade dela mostraria o contrário. Mas esses não são casos genéricos”.

Na conversa, Manuela ainda pondera: “Me analisam publicamente desde que tenho 22 anos. Aliás, muito do jeito como eu me vejo passa por esse olhar público. Não sei, mas talvez em alguns momentos eu tenha me colocado no lugar de alguém que sabia do tema de que estava falando e não entendi que era preciso dar mais atenção para quem discordava dele. Dia desses, estava assistindo ao documentário A terra é plana [de 2018, disponível na Netflix] com meu marido e ri numas horas em que ele me parecia absurdo. Meu marido disse que gente que ri como eu e não toma aquele assunto a sério leva um monte de gente a não acreditar na ciência”.

O músico gaúcho Duca Leindecker, casado com Manuela há sete anos, abriu os shows de uma turnê do Bob Dylan no Brasil nos anos 1990. Tento futucar mais sobre a vida do casal, e ela entrega só o que quer. “É um cara que compartilha comigo de maneira igual os cuidados com a nossa filha. Quando ela ainda mamava, ele a levava ao meu trabalho para eu amamentar. Mas, se tu gosta de rock, deixa eu te contar: ele também tocou com o David Gilmour, do Pink Floyd.”

Quem escreveu esse texto

Juliana Linhares

É jornalista.