Psicologia,

Divã de papel

O editor Luiz Schwarcz publica suas memórias da depressão e do transtorno bipolar

01abr2021 | Edição #44

As primeiras lembranças da vida costumam ser de quando tínhamos entre três e quatro anos. Aos cinco, dizem os especialistas, a gente gosta de imitar os pais e descobre o medo. 

São dessa época os recortes que Luiz Schwarcz escolheu para explicar grande parte de sua história — para o leitor, no livro O ar que me falta, mas, fundamentalmente, para ele mesmo; um homem que passou por terrores em família e, ou apesar disso, tornou-se o mais ilustre editor do país. 

Ainda pequenininho, Luiz começou a perceber o peso das tintas que a família iria imprimir à sua existência. Do pai, André, uma das memórias escolhidas é: “Fui agredido por um menino mais velho e voltei para casa chorando. Meu pai perguntou o que ocorrera. Quando relatei que tinha levado um tapa na cara e não havia reagido, André perguntou onde deram o tapa, e esbofeteou com força a outra face. Falou que era para eu aprender a nunca trazer ofensa para casa”. Da mãe, o carimbo foi: “A batalha de Mirta para engravidar durará em torno de uma década, incluindo meses seguidos na cama, vi­sando evitar a perda dos filhos. […] Eu passava horas ao seu lado. […] Em suas lembranças, eu a alimentava com leite em conta­-gotas”.

Não é justo, apesar de ser reconfortante, filhos adultos culparem apenas os pais por uma vida torturada. Mas há histórias em que o sofrimento parental é tão onipresente que ele não só formata a personalidade do filho como faz dos ares tristes daquela casa os pilares da sua vida. Parece ser esse o caso de Luiz. Seus pais eram judeus fugitivos do nazismo. E o casamento que construíram tinha bases perturbadoras

André Schwarcz sobreviveu a Hitler na Hungria, fugindo do trem que o levava ao campo de extermínio de Bergen-Belsen. Seu pai, Láios, ou Luiz, permaneceu no trem e nunca voltou do campo. Salvou a vida do filho, então com dezenove anos, dando-lhe uma ordem: “Foge, meu filho, foge”. 

“O som das pernas dele, batendo na cama sem parar, onde meu pai penava para dormir […], vazava das paredes, pá, pá, pá. […] Não lembro quando ouvi o tambor aflitivo pela primeira vez, ou sim, acho que sei, foi também quando me deprimi pela primeira vez”, conta Luiz, no livro, a respeito de um pedaço importante de sua herança: a depressão. No pai, a doença se desenvolveu a partir do trauma nazista. Nele, o caldeirão de ingredientes, para além da massa central pai/avô, levou punhados de culpa e arrogância.

Traço comum em escritores nascidos de pais judeus que emigraram por causa da guerra, a culpa de viver bem e numa sociedade próspera é dilatada em Luiz, por uma percepção primitiva de que ele era o responsável pela felicidade do pai e da mãe. “[…] Se András [André, em húngaro] havia fracassado […] aceitando que o pai lhe salvasse a vida, eu tinha que acertar, salvar a vida de meu pai da tristeza. […] Eu ganhara o nome do meu avô, visando repor uma existência que se perdera tragicamente”, escreve. “Missão em que fracassei por completo.”

As expressões “André” e “pai” aparecem duas vezes em cada página do livro. À enorme parte delas, Luiz associa fatos que mostram como o comportamento paterno lhe gerava remorsos. Um dos mais pungentes remonta a uma tentativa de separação dos pais, quando ele tinha cinco anos: “André me usava para constranger Mirta a aceitá-­lo no apartamento. […] Num determinado domingo, me pus a socar a barriga da minha mãe, culpando­-a. Abalada, Mirta tomou um porre de uísque sozinha e chamou meu pai de volta. […] Até hoje, a responsabilidade recai sobre as minhas costas. Sempre os ouvi repetir que voltaram a se unir por minha causa”. 

Luiz é diagnosticado como portador de depressão e transtorno bipolar. Há décadas toma remédios — hoje, o lítio está entre eles — e por treze anos fez tratamento psicanalítico. A pior das crises depressivas aconteceu em 1999. Os contornos desse tempo passam por uma internação, três meses sem sair de casa e cortes nos braços. Hoje, as crises são menos intensas e sem um enredo específico. “A velha senhora chega sorrateira. E tira minha respiração”, conta.

Os efeitos das piores depressões recaíram essencialmente sobre a família — a mulher, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, e os dois filhos. Já os efeitos da bipolaridade foram responsáveis por atos de violência. Em um deles, Luiz socou um homem que o insultou durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2019 (com expressões como “filho da puta” e “você tem cara de deprimido”); em outro, empurrou pelas escadarias do Estádio do Pacaembu um torcedor que se recusava a sentar. E foi com a mãe que os sinais da bipolaridade afloraram. Na juventude, durante brigas com Mirta, ele quebrava o que via por perto. Certa vez, mandou uma voadora no vidro da janela do quarto. Era a véspera do seu casamento. 

‘Eu fui me formando um homem muito seguro, mas na depressão a situação se inverte, fico dependente’

Mirta, que fugiu do terror na Iugoslávia, vivia com o marido uma união desequilibrada. Era mais culta que ele e não gostava de seus amigos húngaros. Além de ficar com eles durante os fins de semana, apreciavam práticas como o haus freund, um tipo de ménage à trois. Por essas delicadezas da vida, foi por causa das convalescenças após os abortos de Mirta que Luiz começou a ler. Incentivado por ela, e ao pé de sua cama, recebeu indicações iniciais de leitura; caso das obras de Charles Dickens, cujas tragédias juvenis reverberavam nele.

Os 65 anos deram a Schwarcz a capacidade de perceber que essa teia familiar causa muitos matizes de sofrimento, entre eles o que chama de autopiedade do filho único. “Você sente ‘ai, coitado de mim’; por outro lado, você quer ser coitado”. E vai mais longe. Sugere que a sensação de poder que desenvolveu por ser filho exclusivo fez dele um homem arrogante e com uma “quantidade de certezas insalubre”: um prato cheio para a depressão que o derrubou.

Não é possível avaliar quanto a experiência pessoal ajudou na trajetória empresarial de Luiz. Além do amor pelos livros passado pela mãe, ele conjectura que, nos anos iniciais da Companhia das Letras, sua bipolaridade não medicada fez dele um profissional “terrivelmente cheio de energia”. Aos 35 anos, a editora conta com 1.300 autores — Luiz é próximo de alguns deles, como Salman Rushdie e Chico Buarque —, comprou casas concorrentes e vendeu a maior parte de suas ações para a gigante mundial Penguin. 

André morreu há catorze anos, por causa de um misto de vaidade e avareza. Àquela época, a relação de Luiz com os pais havia tido evoluções importantes. Mirta e André permaneceram casados até a morte dele. Tempos antes, o filho precisou lidar com um episódio tão traumático quanto redentor: o pai dera um tapa na mãe. Chamado, mais uma vez, para resolver o problema do casal, Luiz criou coragem e pela primeira vez disse: “Isso não se faz, com nenhum filho”. Foi embora e só chorou quando eles não podiam mais vê-lo. 

Leia abaixo os principais trechos da entrevista que ele concedeu à Quatro Cinco Um, por Zoom, em março. 

“Mini-Messias familiar” é uma das expressões que você usa para descrever o modo como seus pais o enxergavam até a juventude. Já adulto, na fase da depressão, você diz ter virado um “totalitarista”; que queria “atenção exclusiva” dos filhos, não aguentava ver sua mulher conversando com amigas e que se cortou “para chamar a atenção”. É certo dizer que, na doença, você se recolocou no centro dos anseios familiares, o lugar que tanto o perturbou?

Pela forma como entendi meu papel na família, por exemplo, forçando minha mãe a aceitar meu pai de volta e sofrer bullying na colônia de férias e não contar aos meus pais [numa ocasião, ele sujou a cama porque o monitor não o deixou ir ao banheiro e, por isso, foi humilhado durante anos], fui vendo meu poder de criança e criando a pretensão de que, se falasse alguma coisa, o mundo deles ia desmontar. É uma arrogância grande para um menino achar que se ele disser a verdade os pais não suportarão. Eu fui me formando um homem muito seguro, que tinha certeza das coisas, mas na depressão a situação se inverte. Você se torna 100% dependente e, se for arrogante como eu fui, ela baixa sua bola. Tem gente que acha que eu continuo a ser. Mas acho que melhorei muito.

A sensação de uma crise depressiva é, segundo seu relato, “um obstáculo que torna mais exíguo o espaço para o ar, que dificulta o ato de respirar”. A despeito do título O ar que me falta, e por causa do sofrimento contado, fica a impressão de que você tem é muito ar preso no peito, e que o livro foi um jeito de colocá-lo para fora. Faz sentido?

É uma interpretação bonita. Mas tenho a impressão de que durante a análise, eu “coloquei para fora”. Embora guarde muita coisa dentro de mim. E fale pouco. Minha interpretação é que eu quis transformar minha história em uma narrativa literária. Essa é a atividade que eu venero. Mas talvez você esteja certa, e o que eu quero é tornar minha história extremamente pública.

Tornar seu sofrimento conhecido fez a dor diminuir?

Dói muito menos. Eu me sinto melhor. Houve temor em torno do livro. A minha família e os editores que leram tiveram vontade de me proteger. Sugeriram, por exemplo, que eu não falasse de como os remédios afetaram minha vida sexual [ele conta que teve perda de libido e que ejaculava “sem sentir nada”]. A minha resposta era: ou eu faço com tudo ou eu não faço. É claro que o meu tudo é selecionado. Mas acho que se eu não fizesse o capítulo sobre a violência [em que fala das agressões], não estaria sendo verdadeiro. Estou muito emocionado com o resultado. 

A condição bipolar é usada para explicar atos violentos que cometeu. Por que o leitor deve acreditar que não passaram de irascibilidade?

Minha psiquiatra disse que não teve nada de bipolar na Flip. Que muitas pessoas no meu lugar teriam dado aquele soco. O sangue sobe na cabeça e você perde o controle. É discutível se isso é bipolaridade? Para mim, é. E me culpo. Enxergo como defeito.

Há teses de que pessoas com doenças psíquicas têm dificuldade de melhorar porque no sofrimento encontram um lugar conhecido e, assim, um tipo de conforto. Isso acontece com você?

Esse é o raciocínio que utilizo para falar do vício da solidão. Eu não reclamo de estar sozinho? Sim, mas eu quero voltar para isso. Agora, eu não sinto isso em relação à depressão, porque a minha teve momentos trágicos e eu tenho medo. E sou contra esse orgulho de ser deprimido. Os livros que mostram que a bipolaridade é um caminho para a genialidade, que Nietzsche e Beethoven foram bipolares, não li e não gostei.

O silêncio dos abortos da sua mãe, da dor do seu pai e da sua depressão deixou marcas ruins. No entanto, você diz viver hoje em silêncio. Que ele é “a alternativa menos perigosa”, mas também é “opressor”. Afinal, ele te faz bem ou mal?

São sinais ambíguos. O silêncio para mim é um vício, me tranquiliza. Quando dava festas em casa para os editores que vinham ao Brasil, eu me sentia muito mal. Ficava transtornado. Tem também uma autopiedade do filho único, que é de sinais trocados. Você se sente diferente dos outros porque não tem irmãos; por outro lado, quer ter a exclusividade dos pais, está acostumado com ela. Busquei esse tipo de sinceridade no livro. 

Por que você dedica o livro ao seu avô e não também ao seu pai?

Eu quis escrever um livro sobre meu pai por décadas. Uma das tentativas, de 250 páginas, virou uma ficção vagabunda que eu não soube arrumar direito. E este livro só virou sobre mim no ano passado. Ele se chamaria “O silêncio do meu pai”. Achei que dedicar o livro ao meu avô era mais eloquente, porque apontava a origem do relato que eu fiz.

Qual foi a reação da sua mãe ao ler o livro?

Ela ficou chocada. Nunca falei pra ninguém que escutava as pernas do meu pai batendo. Só para Lili, quando eu mesmo fiquei batendo a perna muito forte durante a minha depressão. O que houve de bonito é que, quando minha mãe pegou Covid, como eu já tinha tido a doença, cuidei dela. Nós revivemos a situação de sessenta anos atrás, quando eu ficava na cama, lendo e cuidando dela.

Você conseguiu reclamar, brigar com seu pai por causa do peso que ele impunha?

Nas festas religiosas, as famílias judias fazem de tudo para brigar. Eu e meu pai brigávamos em todas. Mas só por causa de Israel. Um de nós sempre ia embora antes de o jantar terminar. Uma pessoa famosa me disse que, se meu pai lesse a passagem em que agride minha mãe, ele não ficaria bravo. Meus pais não se separaram, principalmente, porque ele tinha medo de ficar sozinho e não saber tomar conta de si.

E ele morreu, muito em parte, porque não tomou conta de si. Não quis trocar a prótese dentária fixa por uma móvel — era vaidoso e não queria deixar um dente no copo do banheiro —, teve uma infecção dentária, que migrou para o coração e o matou, por septicemia. Foi por vaidade e sovinice. Ele queria um tratamento mais barato. Meu pai era um homem lindo, tinha olhos verdes, uma covinha no queixo e, quando estava alegre, cantava música cigana. Minha mãe também é bonita, elegante, fofa. [Luiz mostra uma foto dela e sorri, na única vez na entrevista].    

Quem escreveu esse texto

Juliana Linhares

É jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #44 em março de 2021.