A Feira do Livro, Literatura brasileira,

Estreantes Iara Biderman e Odorico Leal falam sobre como a realidade infiltra a literatura

Lançando seus primeiros livros, escritores comentaram sobre como a realidade recente – e turbulenta – do país acabou atravessando seus contos

30jun2024 - 19h15 • 01jul2024 - 13h02
(Filipe Redondo)

Dois estreantes na literatura – porém experientes em outros campos – juntaram-se neste domingo (30) na mesa “Tantras e canibais”, n’A Feira do Livro. A jornalista Iara Biderman e o crítico e tradutor Odorico Leal falaram sobre sua estreia na ficção com os livros de contos Tantra e a arte de cortar cebolas (Editora 34) e Nostalgias canibais (Âyiné), respectivamente.

Com obras escritas durante um período turbulento da história do país, e com certa inquietação perceptível nos textos, os autores foram questionados pela mediadora Maria Carvalhosa sobre como a realidade se infiltrou nos livros em um momento em que “fatos desesperadores” batiam à porta a todo momento, como o assassinato da vereadora Marielle Franco em 2018, que aparece no conto “Manifestação”, de Biderman.

A escritora e jornalista Iara Biderman (Filipe Redondo)

“Esse conto em que aparece a Marielle foi escrito muito a quente, e até falo no conto que escrever a quente não é recomendável”, contou a autora. “Escrevi logo depois daquela primeira manifestação no Masp. E acho que tem muito isso, daquela situação enlouquecedora que a gente estava vivendo na época. Eu uso muito o DSM, o manual de diagnósticos, tentando enquadrar os sintomas do que a gente estava vivendo. Mas na realidade a doença é o país”, concluiu.

Leal, cujo conto que dá título a seu livro tem como protagonista um canibal imortal que atravessa a história do Brasil, de 1500 ao presente, também vê reflexos da realidade do país em seus textos. “O primeiro conto traz o leitor até o presente, de onde os outros partem, e todos dialogando com questões decisivas da nossa época”, afirma.

Ele vê essa conexão de forma muito direta nos dois contos que têm com personagens os “getulinhos”, um grupo político que o autor define como “ao mesmo tempo uma velha esquerda, meio Ariano Suassuna, que tem um elemento sebastianista, mas também é um pouco conservadora”. “Esses dois contos dialogam muito com essa situação política que se agravou nos últimos anos, com o tecido social que vai se desfazendo. Parte disso foi escrito ainda durante a pandemia, em que pessoas estavam morrendo e a gente via esses embates de ideologias”, contou.

Influências

Os autores também falaram sobre a relação da escrita de ficção com suas outras atividades profissionais. Leal brincou que cometeu uma indelicadeza profissional. “Esses editores são seus empregadores [como tradutor], e você não quer abalar uma boa relação com um empregador enviando um original. É a suprema deselegância, no meio editorial, mandar um original, mas eu mandei”, disse.

O professor, crítico literário, escritor e tradutor Odorico Leal (Filipe Redondo)

Já Biderman admitiu que seu estilo tem muito do jornalismo. “É muito influenciado pelo jornalismo, sim. São textos curtos, é quase um vício profissional. No jornalismo, a gente corta, corta, corta. Essa coisa mais seca e curta, de ter poucos adjetivos, também tem a ver com o jornalismo.” Mas ela vê vantagens na ficção que o jornalismo não permite. “É feio, mas eu gosto de falar da vida dos outros. E na ficção você pode fazer isso sem ser uma coisa socialmente reprovável. Eu gosto de ouvir o que as pessoas falam e criar uma história, pegar pedaços de conversas e inventar.”

A escritora acredita inclusive que o fato de muitos de seus contos terem finais em aberto, não conclusivos, tem a ver com isso. “Na ficção você não precisa provar, não tem outro lado, não precisa explicar. Essa coisa de eu não explicar talvez tenha a ver com isso.”

Inteligência artificial

Questionados pelo público, os escritores também comentaram sobre as possibilidades da inteligência artificial para a escrita criativa. “É a pergunta de um milhão de dólares”, respondeu Iara. “Eu não sei, mas não acho que substitui, dá pra perceber. Mas não sei se vai se sofisticar a ponto de quase ficar imperceptível.”

Leal concorda que a questão é a qualidade do texto. “No momento, a qualidade do texto da inteligência artificial ainda é baixa. Mas em termos de escrita criativa, eu não consigo ver isso acontecer. Só se acontecesse a singularidade e a inteligência artificial passasse a ter uma angústia existencial, um enorme medo de ser tirada da tomada. É engraçado que a nossa grande vantagem diante da inteligência artificial é o nosso medo de morrer, nossa mortalidade.”

Quem escreveu esse texto

Natalia Engler

É jornalista e pesquisadora de comunicação e gênero.